Como “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, pode nos ajudar a entender o debate econômico?
Quando comento com meus alunos que estudei Economia e Letras, a reação deles costuma ser uma mistura de deboche e desconfiança. Como assim, professor?
Um hobby, minha paixão pelos livros, poderia perfeitamente ter me levado até o curso de Letras, é claro. A verdade, no entanto, é que, para mim, o debate econômico sempre guardou muita semelhança com a literatura de ficção.
Sim, sim, os fatos, os dados e as evidências estarão sempre lá, em algum lugar… na maior parte das vezes, porém, encobertos pelo som e pela fúria das narrativas econômicas.
A ideia da Economia como uma disputa de narrativas não é nova e até foi tema do ótimo artigo escrito por Paulo André Silveira Jr. e publicado aqui mesmo no Terraço Econômico.
Um dos principais entusiastas desta Economia da Narrativa é o Prêmio Nobel Robert Shiller, para quem as narrativas seriam capazes de criar crenças e afetar as expectativas, as quais, por sua vez, poderiam influenciar as decisões dos agentes e gerar, com isso, verdadeiras profecias autorrealizáveis.
A crença de que imóveis sempre se valorizam, por exemplo, estaria por trás da bolha no mercado imobiliário norte-americano dos anos 2000, segundo Shiller.
O mesmo Shiller, conforme bem lembrado por Paulo André em seu artigo no Terraço, cita o exemplo da Curva de Laffer – teoria segundo a qual a relação entre a arrecadação tributária e a alíquota média dos impostos teria o formato de “U” invertido –, que não tinha qualquer embasamento empírico, mas ganhou popularidade a partir do final de década de 70 com a ascensão do neoliberalismo e passou a ser utilizada como justificativa para cortes de impostos.
Conforme escreveu Victor Hugo, nada é mais poderoso do que uma ideia cujo momento tenha chegado…
Há também as diferentes narrativas para explicar a atual crise brasileira. Há quem diga, por exemplo, que na raiz da crise estaria o desequilíbrio fiscal estrutural, o qual teria minado a confiança de consumidores, empresários e investidores. Há quem diga, por outro lado, que o ajuste das políticas fiscal e monetária desde 2015 teria apenas aprofundado a crise, derrubado a arrecadação e, com isso, agravado o quadro fiscal.
A narrativa vencedora – até o momento – está sintetizada no famoso artigo O ajuste inevitável, de Mansueto Almeida, Marcos Lisboa e Samuel Pessoa, que resume um diagnóstico da atual crise brasileira e vem servindo de base para a defesa da austeridade fiscal, das reformas estruturais (Previdência, Trabalhista) e das privatizações.[1] A ideia é que políticas responsáveis, que garantissem a sustentabilidade da dívida pública, viabilizariam a retomada da confiança, dos investimentos e do crescimento – ideia esta ironicamente chamada pelo Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman de fé na fada da confiança.
O meu objetivo aqui, porém, não é tratar exatamente de narrativas, mas de narradores, de foco narrativo.
Afinal, neste verdadeiro teatro que é o debate econômico, os narradores têm um papel fundamental não somente na construção, mas também na disseminação das narrativas.
As narrativas econômicas, de maneira geral, parecem utilizar o foco narrativo de terceira pessoa. Os economistas mais arrogantes apresentam-se como narradores oniscientes neutros, conhecedores do presente, do passado e do futuro, únicos detentores da verdadeira sabedoria econômica.
Ainda que onisciente, porém, este tipo de economista narrador tende inevitavelmente a ser seletivo, apresentando apenas os dados e os argumentos que levem os leitores a se posicionar a seu favor, a concordar com a tese defendida por ele.
Já economistas mais humildes portam-se como meros narradores observadores, que assumem não conhecer plenamente toda a história, mas garantem manter uma posição imparcial em relação aos fatos narrados.
O fato, porém, é que qualquer economista, por definição, é um narrador personagem, visto que, enquanto narra, ele também pode influenciar a história. A Economia, afinal, é um tipo de conhecimento diferente daquele das ciências naturais, como a Física ou a Química, uma vez que o comportamento do mercado, objeto de análise dos economistas, pode ser afetado pelas conclusões dos próprios economistas a respeito do funcionamento do mercado.
Além disso, as narrativas econômicas vencedoras têm a capacidade não apenas de influenciar as expectativas do mercado, mas também de criar consensos e definir as políticas públicas que serão implementadas. Estas, por sua vez, embora supostamente direcionadas a um genérico benefício geral da população, sempre podem favorecer um grupo em detrimento de outro.
Ao tratar de narradores personagem, é impossível não lembrar de Bento Santiago, o Dom Casmurro de Machado de Assis, talvez o mais importante narrador personagem da literatura brasileira, também responsável pela maior polêmica das nossas letras: Capitu, afinal, traiu ou não traiu Bentinho?
No foco narrativo de primeira pessoa costuma ficar mais evidente ao leitor que ele está diante apenas de uma versão da história, entre as tantas existentes – no caso, a versão do narrador, que não conhece perfeitamente os fatos e fica, muitas vezes, refém da própria imaginação, como parece ser o caso em “Dom Casmurro”.
Os economistas não são necessariamente amargurados, rancorosos ou ciumentos como Bento Santiago, que nos apresenta uma Capitu dissimulada e manipuladora, mas também eles estão sujeitos às próprias crenças e ideologias, aos próprios interesses e, principalmente, aos interesses dos que pagam seus salários.
Assim, da mesma forma que temos razões para duvidar da versão da história contada por Bento Santiago em “Dom Casmurro”, não nos faltam motivos para desconfiar de medidas propostas por economistas, sejam elas quais forem.
Vale, aqui, a máxima do dramaturgo Bertolt Brecht – Pergunte sempre a cada ideia: serves a quem?
Por sinal, estariam os que ainda creem na fada da confiança sendo traídos pelo Capital?
Não serão os casmurros do mercado financeiro que nos ajudarão a responder esta questão.
Vitor Augusto Meira França – Economista pela USP, onde também cursou Letras, mestre em Economia pela FGV-SP e professor universitário. [1] Uma narrativa alternativa pode ser encontrada no estudo “Fragilidade financeira e a crise econômica brasileira: momento Minsky”, do economista Felipe Rezende.