Para o leitor que conseguiu domar as suas emoções – seja de raiva ou euforia – e começou a ler o presente texto, cabe a realização de uma pequena ressalva. Esse não é um texto de opinião, mas uma pequena síntese realizada acerca de um trabalho que é referência para a questão do efeito das armas sobre a criminalidade, tema que ganhou ainda maior destaque após o decreto que facilita a posse de armas. O trabalho a ser resenhado é de autoria de Daniel Cerqueira e João Pinho de Mello, dois autores de grande renome, referências na produção científica brasileira.
Começando efetivamente a resenha do texto, é destacado que na literatura que aborda a relação entre armas e crimes existem dois grupos: o de trabalhos que apontam que mais armas é igual a mais crimes, e o de trabalhos que apontam que mais armas implicam em menos crimes.
Dentro da argumentação do primeiro grupo – mais armas, mais crimes – está a de que os indivíduos com arma de fogo passam a ter poder para coagir, elevando as chances de responder a conflitos de forma mais violenta. Considerando o ponto de vista do criminoso, o aumento do número de armas eleva a produtividade das suas ações, além de baratear os custos de obtenção de armamento ilegal, devido a maior oferta gerada pelo mercado formal.
A argumentação do segundo grupo – mais armas, menos crimes – é centrada nos crimes contra o patrimônio, os quais tenderiam a reduzir, dado o aumento do custo esperado pelo criminoso, que se elevaria em razão do uso defensivo da arma de fogo pela vítima em potencial.
Como é destacado por Cerqueira e Mello, mesmo havendo vários trabalhos sobre o tema, ainda não existe um consenso acerca da causalidade entre armas e fogo e aumento da criminalidade. A razão para essa falta de consenso está nas dificuldades metodológicas impostas, como o de encontrar uma maneira confiável de medir o número de armas de fogo, e também por problemas mais técnicos como o de simultaneidade e de variáveis omitidas. Nessa parte, cabe complementar com o quesito confiabilidade da base de dados, algo na maior parte das vezes problemático, especialmente para o caso do Brasil.
Assim, a partir da implementação da política pública do Estatuto do Desarmamento (ED), foi realizado um modelo teórico com base em crimes e em informações sobre mortalidade, referentes aos 645 municípios do estado de São Paulo. As informações são de homicídios, homicídios dolosos, latrocínios, lesão corporal dolosa, roubo de veículos, crimes associados a drogas ilícitas, suicídios, suicídios perpetrado por perfuração de arma de fogo, além de projeções populacionais. Essas informações foram coletadas de bases como a da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo e do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), tendo periodicidade mensal para o período compreendido entre 2001 e 2007.
A intuição do modelo é apresentada da seguinte forma:
[caption id="attachment_14137" align="aligncenter" width="554"]O indivíduo pode escolher inicialmente por entrar ou não no mercado do crime, sendo que a decisão posterior seria a de comprar ou não uma arma. A opção por comprar uma arma definiria a existência do “criminoso armado” ou da “vítima armada”.
Dessa forma, a principal equação do modelo:
[caption id="attachment_14138" align="aligncenter" width="583"]Em relação a essa equação, deve-se destacar que para contornar o problema da simultaneidade e de variáveis omitidas – já citados – foram utilizadas variáveis de controle para o tempo e para as cidades. Mesmo com essas variáveis de controle, no que consiste a estimação do coeficiente (que capta o efeito da taxa de armas), foram utilizadas variáveis instrumentais.
A principal variável instrumental foi o ED, utilizada como fator exógeno ao modelo, devido ao seu efeito conhecido – positivo sobre o custo de se obter uma arma de fogo – e por não ser correlacionada com o termo de erro. Enquanto que as demais variáveis instrumentais – estoque de armas em 2003 e tamanho das cidades – foram utilizadas devido ao caráter uniforme (para todo o território nacional) da sanção do ED, que não permite uma comparação entre cidades com base em cidades “tratadas” (que teriam adotado o ED) e não “não tratadas” (que não teriam adotado o ED).
Depois de ter uma noção geral do modelo utilizado, é possível observar os seus principais resultados. Os principais resultados aqui expostos são relacionados com o efeito da taxa de armas de fogo acerca de variáveis que representam crimes violentos contra pessoas e contra o patrimônio. Cada coluna representa uma regressão, estimada pelo método de variáveis instrumentais por mínimos quadrados em dois estágios (IV-2SLS), que se altera em relação ao acréscimo de variáveis de controle.
- (1) efeito fixo por localidade
- (2) são acrescentados os controles de tempo
- (3) taxa de aprisionamento junto com a taxa de roubo de veículo
- (4) tendência temporal linear por tamanho da cidade
Notas: Erros padrão entre parênteses.
***-significativo a 1%; **-significativo a 5%;*-significativo a 10%.[/caption]
A partir dos resultados é possível observar que para a maior parte das variáveis dependentes, nos casos de crimes contra pessoa como homicídios dolosos e de homicídios por PAF, o efeito da taxa de armas de fogo foi positivo e significativo. Esse resultado indica que uma maior quantidade de armas de fogo tende a elevar a ocorrência desses crimes. Em relação a variável de latrocínios, que pertence à classe de crimes contra o patrimônio, o efeito das armas de fogo foi positivo ou não significativo. Isso indica a pouca relevância do efeito dissuasão pela vítima armada.
Dessa forma, tendo por base o caso dos municípios paulistas no período de 2001 a 2007, Cerqueira e Mello destacam que mais armas implicaram em mais crimes violentos contra a pessoa. Sendo o efeito das armas não significativo para o caso dos crimes contra o patrimônio, o que indica a pouca relevância do uso defensivo de armas de fogo.
Em relação ao trabalho, é necessário reafirmar a sua importância para a literatura sobre o tema e a grande robustez metodológica aplicada nas suas estimações. Mas em relação a limitações, poderia ser indicado a restrição da análise apenas para o estado de São Paulo, algo que é devido à pouca confiabilidade e/ou não disponibilidade de bases de dados sobre criminalidade para a maior parte dos outros estados brasileiros.