Nobel 1974: Gunnar Myrdal | por Pedro Amaral

Gunnar Myrdal, Prêmio Nobel de 1974

O economista sueco Gunnar Myrdal dividiu em 1974 o Prêmio Nobel de Economia com Friedrich von Hayek. A contribuição de seu trabalho que o levou à premiação foi, conforme anúncio oficial, sua pesquisa sobre as inter-relações entre processos econômicos, sociais e políticos. É interessante ressaltar que a própria vida de Myrdal representa uma intensa inter-relação entre a economia, as questões sociais, como problemas raciais e o subdesenvolvimento, e a política.

Seu posto acadêmico mais longevo foi de professor de economia na Stockholms Högskola. Durante esse período, Mydal foi também membro eleito do parlamento sueco pelo Partido Social Democrata e posteriormente ocupou o cargo de Ministro do Comércio. Em 1938, Myrdal coordenou um estudo sobre a questão racial nos Estados Unidos que resultou em seu trabalho mais conhecido internacionalmente: ‘An American Dilemma: the Negro problem and modern democracy’. Trata-se de trabalho fortemente multidisciplinar, examinando fatores econômicos, políticos, institucionais, demográficos, históricos, educacionais e de saúde, e que teve grande impacto social. Foi inclusive citado no famoso caso Brown vs. Board of Education na Suprema Corte dos Estados Unidos, caso esse que culminou com a declaração de que segregação racial em instituições públicas naquele país era inconstitucional [1]. Myrdal atuou ainda como Secretário Executivo da Comissão Econômica para a Europa da Organização das Nações Unidas (ONU) e estudou profundamente o subdesenvolvimento, principalmente na Ásia, e suas causas.

Os anos iniciais da carreira acadêmica de Myrdal são reconhecidos principalmente por uma crítica à tendência da teoria econômica convencional de incorporar julgamentos implícitos de valor em sua estrutura conceitual. Myrdal questionou enfaticamente a mistura feita pelos economistas tradicionais, ou mainstream, entre aspectos positivos, ou seja, a realidade como ela é, com aspectos normativos, ou como eles achavam que deveria ser. Em suas palavras, “um estudo da realidade empírica não permite uma compreensão do summum bonum, ou seja, um julgamento de valor social objetivo verdadeiro” [2]. Essa crítica englobou conceitos centrais da economia como equilíbrio, ponto ótimo e maximização, fazendo com que a obra de Myrdal fosse rechaçada à época como um trabalho que virava suas costas à economia [3]. Cabe ainda ressaltar a ênfase de Myrdal sobre a necessidade de se considerar os aspectos distributivos do sistema tributário e seus impactos sobre o sistema de preços. Para ele, as implicações distributivas da tributação deveriam vir em primeiro plano. As implicações produtivas seriam secundárias. Em suas palavras: “a tributação é um instrumento muito flexível e eficaz, mas também um perigoso instrumento de reforma social” [4].

Myrdal é ainda reconhecido por sua enfática defesa do papel central do Estado e dos gastos públicos em períodos de crise econômica. Todavia, sua principal obra sobre o tema, Monetary Equilibrium, apesar de ter sido publicada em 1932, antes da famosa Teoria Geral de Keynes, de 1936, só foi traduzida para o inglês em 1939, custando ao autor o protagonismo de muitas das ideias comuns entre ambos autores.

Uma das obras mais estudadas de Myrdal nos cursos de economia do Brasil é ‘Economic Theory and Underdeveloped Regions’, publicada em 1957, traduzida como ‘Teoria econômica e regiões subdesenvolvidas’ [5] em 1972. Nela, Myrdal se propõe a apresentar “uma visão da teoria geral do desenvolvimento e subdesenvolvimento”, baseada em seu conceito de “causação circular de um processo acumulativo”, ou causação cumulativa.

A teoria sobre regiões subdesenvolvidas de Myrdal nasce de sua inquietação com a constatação da existência de um grande número de países pobres no mundo em relação a um pequeno número de países ricos. Enquanto a teoria econômica preconizava que as forças de mercado, estimuladas pelos retornos desiguais, levariam a economia mundial ao equilíbrio, Myrdal argumentava que eram essas mesmas forças de mercado as responsáveis por exercer efeitos regressivos que tornavam os países ricos mais ricos, e os pobres mais pobres. Ou seja, as desigualdades econômicas teriam tendência a aumentar, não a reduzir.

Aproveitando de seus relevantes estudos sobre a questão racial americana, Myrdal exemplifica essa causação cumulativa com o problema da pobreza concentrada na população negra. A realidade de pobreza e piores condições de vida dessa parcela da população gera preconceito por parte da parcela branca, o que limita o acesso dos negros ao mercado de trabalho e, consequentemente, reforça ainda mais sua condição de pobreza, fechando um ciclo vicioso cumulativo de mais pobreza e mais preconceito.

Essa mesma causação cumulativa pode explicar ainda a diferença nos níveis de desenvolvimento entre países. Independente do motivo pelo qual um país tenha atingido um nível de desenvolvimento superior aos demais, esse nível superior permite à economia desenvolvida potencializar seus ganhos. Um nível maior de produção permite maiores ganhos por economias de escala, ou seja, a possibilidade de reduzir o custo médio ao se aumentar o nível de produção. Esse aumento de produção permite ainda ganhos externos às firmas, como maior troca de informações entre as empresas, melhores condições de compras de insumos, infraestrutura para escoamento da produção, dentre outras vantagens, ampliando a produtividade desses centros.

Figura 1 – O processo de Causação Circular Cumulativa
Fonte: Costa, K. (2013) [6] .

A disparidade no nível de desenvolvimento é ainda reforçada por migração de mão-de-obra, capital e comércio, uma vez que os centros mais desenvolvidos apresentam melhores oportunidade de emprego, renda e lucros, e a concentração da produção tende a gerar um realinhamento do comércio. Desse modo, a disparidade no nível de desenvolvimento entre os países gera efeitos regressivos que explicam a ampliação do hiato entre os países.

Myrdal apresenta ainda o conceito de efeitos propulsores, que são responsáveis por reduzirem o impacto dos efeitos regressivos, por meio de maior disponibilidade de infraestrutura de transportes e comunicações também para a regiões atrasadas, comunicações, etc. Mas, nas palavras do autor, “em nenhuma circunstância os efeitos propulsores permitem estabelecer os pressupostos para uma análise do equilíbrio” [7]. Tais efeitos propulsores ou a própria mitigação dos efeitos regressivos só seria possível pela atuação de instituições fortes e pelo papel do Estado. As instituições representam, em sua análise, todos os fatores não econômicos, como estrutura política e social, instituições e atitudes, enfim, todas as relações interpessoais. Já o Estado e as políticas públicas possuem papel anticíclico central para que os efeitos regressivos sejam minimizados e os propulsores potencializados. Em suas palavras:

“Se as forças do mercado não fossem controladas por uma política intervencionista, a produção industrial, o comércio, os bancos, os seguros, a navegação e, de fato, quase todas as atividades econômicas que, na economia em desenvolvimento, tendem a proporcionar remuneração bem maior do que a média, e, além disso, outras atividades como a ciência, arte, a licenciatura, a educação e a cultura superior se concentrariam em determinadas localidades e regiões, deixando o resto do país de certo modo estagnado” [8].

O papel central que Myrdal atribui ao Estado e as fortes críticas que faz à teoria neoclássica, ao liberalismo econômico e aos pressupostos ideológicos escondidos em teorias econômicas ditas apolíticas tornam tanto quanto irônica a divisão de seu Prêmio Nobel com o economista austríaco Hayek, um dos principais expoentes do liberalismo e grande crítico das intervenções estatais. Ao anunciar a premiação, a Royal Swedish Academy of Science enfatizou que “uma qualidade que Myrdal e von Hayek têm em comum é a capacidade bem documentada de encontrar maneiras novas e originais de fazer perguntas e apresentar novas ideias sobre causas e políticas. Essa característica muitas vezes os tornou um tanto controversos” [9].

Todavia, a reação de Myrdal à premiação indica o quanto suas diferenças com Hayek eram bem mais relevantes que os pontos levantados pela Academia: “Se eu não estivesse um pouco sonolento quando me ligaram de manhã cedo nos EUA [para comunicar da premiação], eu a teria recusado” [10]. Em seu memorial, a própria filha de Myrdal reconheceu que a divisão do Nobel entre ambos teria sido “um banho de água fria”. “Muitos de seus colegas até supuseram que a escolha refletisse uma piada condescendente por parte dos membros do establishment econômico sueco” [11].

O cerne de muitas das críticas feitas por Myrdal à teoria econômica e ao tratamento político da questão racial nos Estados Unidos se mantêm absolutamente atuais. “Por quase 40 anos, Myrdal argumentou sua tese de que os economistas refletem seus próprios preconceitos sociais e tendem a errar ao reduzir a economia a números abstratos” [12]. Qualquer semelhança com parte do atual debate econômico brasileiro não é mera coincidência.

Pedro Amaral

Professor Adjunto do Departamento de Ciências Econômicas da UFMG e Fellow do Center for Spatial Data Science (University of Chicago). Ph.D. pela University of Cambridge, co-editor dos journals Spatial Economic Analysis, Journal of Spatial Econometrics e Regional Studies, Regional Science. Embaixador da Regional Studies Association no Brasil e bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.

Notas

[1] BARBER, W. Gunnar Myrdal: An Intellectual Biography, Houndmills: Palgrave Macmillan, 2008.

[2] MYRDAL, G. The Political Element in the Development of Economic Theory, p. 24. Tradução livre.

[3] HICKS, J. Review of The Political Element in the Development of Economic Theory. The Economic Journal, Vol. 64, No. 256, 1954, p. 796.

[4] MYRDAL, G. The Political Element in the Development of Economic Theory, p. 188. Tradução livre.

[5] MYRDAL, G. Teoria econômica e regiões subdesenvolvidas. Rio de Janeiro: SAGA, 1972.

[6] COSTA, K. Gunnar Myrdal e o princípio da causação circular cumulativa: uma análise a partir dos trabalhos de Allyn Young, Nicholas Kaldor e Thorstein Veblen. X Congresso Brasileiro de História Econômica, Juiz de Fora, 2013.

[7] MYRDAL, G. Teoria econômica e regiões subdesenvolvidas. Rio de Janeiro: SAGA, 1972, p. 59.

[8] MYRDAL, G. Teoria econômica e regiões subdesenvolvidas. Rio de Janeiro: SAGA, 1972, p. 51-2.

[9] BARBER, W. Gunnar Myrdal: An Intellectual Biography, Houndmills: Palgrave Macmillan, 2008, p. 163. Tradução livre.

[10] SWEDBERG, R., ‘Introduction to the Transaction Edition,’ The Political Element in the Development of Economic Theory. New Brunswick: Transaction Publishers, 1990, p. vii, apud BARBER (2008).

[11] BOK, S. Alva Myrdal: A Daughter’s Memoir. Reading: Addison-Wesley Publishing Co., 1991, p. 305, apud BARBER (2008).

[12] New York Times, Gunnar Myrdal, analyst of race crisis, dies. 1987. Disponível em: https://www.nytimes.com/1987/05/18/obituaries/gunnar-myrdal-analyst-of-race-crisis-dies.html

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