Nobel 1988: Maurice Allais | por Bruna Cataldo

O ponto de vista que expresso é o de um teórico liberal e socialista. Ambos são inseparáveis ​​em minha mente porque sua oposição me parece falsa, artificial. O ideal socialista é focar na equidade da redistribuição de riqueza, enquanto os verdadeiros liberais preocupam-se com a eficiência da produção dessa mesma riqueza. Na minha opinião, eles constituem dois aspectos complementares da mesma doutrina. E, precisamente como liberal, me permito criticar as posições repetidas dos grandes organismos internacionais a favor do livre comércio aplicado cegamente. 

A VIDA:

Maurice Allais nasceu em Paris, na França, em 31 de maio de 1911. Cresceu em meio à classe trabalhadora francesa, com pais produtores e vendedores de queijo. Teve uma infância difícil após a morte do pai na Primeira Guerra Mundial. Allais afirmou sobre o evento: “Minha juventude, na verdade toda a minha vida, foi profundamente marcada por isso, direta e indiretamente.” . Foi à despeito dessas dificuldades que Allais seguiu seus estudos, alcançando a celebrada École Polytechnique e se formando primeiro da turma em 1933. Ele ficou um ano no serviço militar e dois na École Nationale Supérieure des Mines de Paris. Ao fim desse ciclo e com os títulos de Físico e Matemático, entrou no serviço público francês como engenheiro em 1936 e atuou tanto em serviços administrativos como no front durante os anos da Segunda Guerra Mundial. Também nesse período começou a publicar seus primeiros trabalhos em economia. O final da década de 1930 e início da 1940 foram fundamentais para estabelecer seu futuro na área: até então um físico e matemático trabalhando como engenheiro, a Grande Depressão e convulsões sociais na França o levaram a estudar economia como autodidata a fim de pensar como seria possível reconstruir uma sociedade depois de crises como as que estava vendo. 

Em 1948, foi liberado de todas as funções e pôde se dedicar exclusivamente à vida acadêmica. Em seu currículo de professor e pesquisador constam múltiplas instituições, mas duas se destacam: a École Nationale Supérieure des Mines de Paris e o Centre de la Recherce Scientifique (C.N.R.S), onde continuou a desenvolver atividades mesmo após se aposentar formalmente em 1980. Allais trabalhou até o fim da vida e, após sua morte, uma fundação foi criada em seu nome por sua filha para propagar seu legado e promover a pesquisa econômica criando, inclusive, um prêmio nomeado em homenagem ao autor.  

Apesar de menos conhecido e celebrado que outros laureados, a filha de Allais tinha motivo para desejar manter o legado do pai vivo: foram 14 prêmios entre 1933 e 1987, incluindo a maior honraria da ciência francesa, a medalha de ouro do C.N.R.S. O prêmio não diferencia por áreas e todos os cientistas concorrem entre si. Allais foi o primeiro a recebe-la por economia em 1978. O feito é tão representativo que apenas mais um pesquisador o igualou e somente 29 anos depois: Jean Tirole, vencedor do Nobel de 2014, ganhou a medalha por sua pesquisa em economia em 2007.

A condição de vida do autor foi preponderante para sua obra porque foi o que o aproximou da economia em primeiro lugar. A paixão por história, a perda do pai para a guerra e sua própria vivência em uma enquanto ocupava cargos no serviço público foram, de acordo com o próprio, determinantes: “(…) minha vocação como economista não foi determinada pela minha educação, mas pelas circunstâncias. O objetivo era procurar estabelecer as bases sobre as quais uma política econômica e social poderia ser validamente construída.”. Sendo assim, Allais fez de suas experiências de vida a inspiração de seus trabalhos e visão política e por isso estabeleceu como questão fundamental da economia encontrar formas de promover o máximo de eficiência possível que fosse compatível com um nível aceitável de distribuição de renda. O tema era de tal importância em sua vida que passaria toda ela defendendo um liberalismo social e que o liberalismo não poderia ser reduzido ao “laissez-fairismo”. É quase literal dizer que passou toda a vida defendendo essa visão: em 2009, apenas um ano antes de sua morte, escreveu uma carta aos franceses de onde a epígrafe deste perfil foi retirada. Ele tinha 98 anos no momento. 

A OBRA E CONTRIBUIÇÃO:

A obra de Allais teve um impacto de grande proporção, principalmente considerando que não ficou no imaginário público como outros laureados. Ele influenciou diretamente grandes nomes que ganharam o Nobel antes dele, como Paul Samuelson e Gérard Debreu. O primeiro chegou a explicitamente reconhecer a importância de Allais afirmando – dentre outras coisas – que deveria ter ganho o prêmio antes e que “Se os primeiros escritos de Allais tivessem sido em inglês, uma geração de teoria econômica teria tomado um rumo diferente.”. Gérard Debreu, outro queridinho da profissão, foi pupilo de Allais. Essas menções já indicam a importância do autor para o futuro da economia não só pela sua própria produção, mas pela influência a outros grandes nomes.

A obra de Allais é ampla e cobre diversos temas. Ele ganhou o Nobel pela contribuição para teorias do mercado e utilização eficiente de recursos a partir do uso rigoroso de formulações matemáticas. A frase já evidencia as duas frentes em que Allais transformou a ciência que aprendeu sozinho porque almejava mudar a sociedade que via ao seu redor: avançou a teoria de mercados e eficiência e foi um dos pioneiros a aplicar a visão que economia é uma ciência para qual métodos quantitativos e de modelagem contribuíam em larga escala desde que acompanhados de sólida teoria e interdisciplinaridade com a sociologia, psicologia, ciências políticas e história.

Começando pela sua obra teórica, o desenvolvimento dos trabalhos se deu em 5 frentes principais: equilíbrio geral e eficiência social dos mercados, teoria do capital, teoria do risco, moeda e juros, e indexação da dívida. Como é muito extensa, aqui estão apenas alguns destaques. O ponto de partida foi o livro de 1943: “A la recherche d’une discipline économique. L’economie pure”, que foi inspirado por grandes economistas que Allais considerava suas principais influências: Leon Walras, Vilfredo Pareto e Irving Fisher. O autor chegou a afirmar que o livro é de um amador, dado que estudou economia por conta própria, mas considerava isto uma vantagem porque amadores não estão presos a verdades estabelecidas ensinadas nas universidades e possuem o olhar sem preconceitos. Já na obra inicial, trouxe importantes contribuições ao descrever o comportamento do consumo, da produção e do sistema econômico alcançado a partir da relação entre os dois. Foi neste livro que se tornou o primeiro a demonstrar com rigor matemático e generalidade que qualquer estado de equilíbrio de uma economia de mercado é uma maximização de eficiência e que a recíproca é verdadeira (teoremas de equivalência). No processo, conseguiu mostrar o caráter arbitrário da distribuição de renda e a formulação dos valores descontados como condição para maximizar eficiência.

Outra obra importante foi o livro, “Economie et Interêt”, publicado em 1947. A inspiração para o livro foram as teorias do capital de Bohm-Bawerk e Jevons assim como de Fisher e Hayek. Aqui, Allais moveu a fronteira ao criar uma teoria do estoque ótimo de capital e taxa de juros ótima seguindo a definição de Pareto do termo, que chamava de eficiência social máxima. Neste livro, desenvolveu um conceito que seria posteriormente atribuído a Samuelson: o de gerações sobrepostas, ou seja, que diferentes gerações coexistem na mesma economia e que suas características não serão as mesmas em termo de renda e riqueza nem no tempo presente e nem depois. Allais também concluiu neste trabalho que a taxa de juros ótima na economia estacionária é zero, desenvolvendo em seguida que para economias em crescimento a taxa de juros “pura” deveria ser igual a de crescimento. Esta foi a primeira menção ao que seria posteriormente chamado de “regra de ouro” e mais associado ao trabalho de Phelps. Allais ainda formulou no livro de 1947 uma versão inicial do modelo transacional da moeda que seria associado a Baumol em 1952. Em produções posteriores, inclusive, Allais fez o esforço de associar seus resultados sobre estoque ótimo de capital com teorias monetárias para gerar uma contribuição mais geral que a de Hayek sobre flutuações econômicas. 

Na mesma época, Allais escreveu trabalhos sobre teoria do risco e desenvolveu o conceito que receberia seu nome – o Paradoxo de Allais – tendo sido o único contemporâneo de Von Neumann e Morgenstern a contrapor suas ideias. Ele se opunha veementemente à concepção de racionalidade por trás da teoria da maximização da utilidade esperada e buscou mostrar que o sistema de axiomas não era condizente com o comportamento observado no mundo real. Em 1948, Allais começou a operacionalizar algo que se tornaria celebrado na economia do século XXI e daria a diversos pesquisadores seus próprios prêmios Nobel: o uso experimentos. Buscou criar algum que pudesse mostrar os erros da teoria da utilidade esperada e o processo gerou as publicações “La psychologie de l’homme rationnel devant le risque. La théorie et l’expérience” e “Le Comportement de l’homme rationnel devant le risque: critique des postulats et axiomes de l’école américaine”.

O paradoxo de Allais, resultado dos dois trabalhos mencionados, funciona como um contra exemplo da teoria da utilidade esperada e parte de duas perguntas. Na primeira, uma pessoa deve optar entre um lucro garantido de 100 reais (opção A1) e uma aposta que oferece 89% de chance de ganhar 100, 10% de ganhar 500 e 1% de não ganhar nada (opção A2). Na segunda pergunta, a pessoa deve escolher entre uma aposta com 89% de chance de ganhar zero e 11% de chance de ganhar 100 (opção B1), ou uma com 90% de chance de zero vitória, mas 10 % de ganhar 500 (B2). Os testes foram repetidos milhares de vezes em condições de e os resultados foram considerados robustos: entre 66% e 75% dos entrevistados escolhia A1 na primeira pergunta e B2 na segunda e o simples fato de que as duas escolhas eram feitas pela mesmo pessoa ao mesmo tempo era apontado como suficiente para invalidar a regra da utilidade esperada. Desse resultado surgiram desenvolvimentos importantes de outros autores, mas apenas após a publicação do artigo “Expected utility hypotheses and the Allais paradox” em 1979. Esta publicação gerou uma escola de pensamento para buscar alternativas melhores que a teoria da utilidade esperada e abriu espaço para o desenvolvimento da economia experimental e inclusão da psicologia na compreensão de fenômenos econômicos, área que seria desenvolvida por Daniel Kahneman e o traria o Nobel de economia em 2002. 

Nos anos 1960, em diversas publicações, Allais também desenvolveu a teoria geral dos excedentes do consumidor. Já em 1943 desenvolveu os conceitos de excedente e perda, mas a relação que estabeleceu posteriormente entre estes e equilíbrio que o levou a uma generalização original do modelo de comportamento econômico. Seu ponto de partida foi a dificuldade em calcular os custos marginais em estudos de mobilidade. Ele criou uma fábula chamada o “Viajante de Callais” para questionar as hipóteses de preço único e convexidade geral das funções de custo total e marginal que sustentavam o equilíbrio Walrasiano. Segundo Allais, economistas se concentravam demais na existência de um equilíbrio e suas consequências. Para ele, o foco deveria estar nos processos pelos quais o equilíbrio econômico é ou não alcançado. Afirmou que a dinâmica econômica é uma série de desequilíbrios até que um equilíbrio seja – talvez – alcançado e definiu que quem movimenta a economia é a busca, exploração e realização de excedentes, cuja definição não depende das hipóteses restritivas mencionadas. O desenvolvimento deste raciocínio gerou pelo menos 7 demonstrações fundamentais para o futuro da área. 

A realidade é que a contribuição de Allais é ainda mais extensa que a aqui descrita e não caberia em um perfil tão curto. O fato de ter publicado boa parte da carreira em francês fez com que seu trabalho fosse menos conhecido que o dos economistas ensinados e influenciados por ele, mas muitas das inovações que determinaram as rotas da economia no século XX e até no século XXI tiveram sua influência direta ou indireta. Uma de suas contribuições que teria feito muita diferença se mais disseminada é a visão da economia enquanto ciência. Allais sempre defendeu a importância do rigor matemático (o que lhe garantiu o Nobel) e da interdisciplinaridade (que gerou o conceito que leva seu nome). Considerava ambos indissociáveis. É uma visão que contribui para um debate extremamente atual, já que economistas vêm enfrentando críticas sobre a capacidade de realizar pontes com outras ciências sociais por conta da visão excessivamente focada em modelos e experimentos. Talvez seja necessário olhar mais para a vida e obra de Allais para pensar (e mostrar) como trabalhar as duas coisas juntas. Sua visão é bem delineada por duas de suas frases: “Nenhuma solução pode ser encontrada para problemas econômicos recorrendo exclusivamente à teoria econômica e aos aspectos quantitativos da vida na sociedade e “(…) a análise das sociedades exige manifestamente uma síntese de todas as ciências sociais: economia, direito, sociologia, história, geografia e política.

Allais era um opositor importante da matematização da economia enquanto um fim em si mesmo. Defendia que a matemática é apenas uma ferramenta, ainda que importante, e que o central do trabalho deveria ser sempre a interpretação social. Opunha-se também à sofisticação excessiva, defendendo que modelos complexos deveriam ser evitados a não ser que fossem indispensáveis. Além disso, afirmava que mesmo os modelos matemáticos mais perfeitos não serviriam ao propósito da economia se sua construção e postulados não fossem adequados à natureza real do fenômeno observado. O mesmo autor que foi responsável por tantos avanços quantitativos da economia também foi um grande defensor da sabedoria e parcimônia em seu uso. Um físico e matemático, ou seja, um homem com origem nas ciências duras que tantos economistas almejam reproduzir, dedicou parte da carreira a lembrar que nossa ciência é social por natureza, interdisciplinar por natureza, que não somos só matemáticos aplicados. Entre muitas teses e antíteses, Allais se mostrou um homem de síntese: buscou mostrar a compatibilidade entre liberalismo e socialismo com o mesmo vigor que entre rigor matemático e interdisciplinaridade.

Ele também usou seu espaço para defender que não se pode sucumbir à tirania das ideias dominantes, principalmente quando o observado no mundo questiona as premissas sobre as quais elas estão construídas, usando frases fortes como: “Qualquer que seja o preço que ele possa pagar em sua carreira, o cientista nunca deve orientar seu curso de acordo com as modas do dia, ou com a aprovação ou desaprovação de seus contemporâneos”. Allais foi, portanto, um homem muito à frente de seu tempo e cujo trabalho um texto de algumas páginas jamais fará jus. Economistas que inovadores estão sempre em ombros de muitos gigantes. Ele é um dos menos conhecidos, mas está lá. Suas contribuições teóricas e as agendas de pesquisa que levantou estão vivas até hoje. Sua contribuição metodológica e sobre a economia enquanto ciência alimentam o debate mais atual que a profissão vem enfrentando. Allais ainda tem muito o que dizer em 2020.

Bruna Cataldo

 Doutoranda do PPGE/UFF.

ALGUNS TRABALHOS DE MAURICE ALLAIS:

Allais, M. (2006) [1999]. Globalization, Unemployment and the Imperatives of Humanism. Momagri (Paris). [Translation of presentation at Un Siècle de Prix Nobel: Science et Humanisme, UNESCO (Paris), April 10, 1999.

Allais, Maurice. (1992) [1989]. An Outline of My Main Contributions to Economic Science. In Nobel Lectures: Economic Sciences, 1981-1990, ed. Karl-Göran Mäler,233-252. Singapore: World Scientific Publishing Company.

Allais, M. (1989). Autobiography. In Les Prix Nobel: The Nobel Prizes 1988, ed. Tore Frängsmyr. Stockholm: Nobel Foundation.

Allais, M., Hagen, O. (1979). Expected utility hypotheses and the Allais paradox. Dordrecht: Springer

Allais, M. (1959). Manifesto for a Free Society. (Manifeste pour une Société Libre).Paris: Secrétariat Général du Mouvement.

Allais, M. (1953). Le Comportement de l’Homme Rationnel devant le Risque: Critique des Postulats et Axiomes de l’Ecole Americaine. Econometrica, 21(4), 503-546. doi:10.2307/1907921

Allais, M. (1953). La psychologie de l’homme rationnel devant le risque : la théorie et l’expérience. Journal de la société française de statistique. 94, 47-73. 

Allais, M. (1943). A la recherche d’une discipline économique : l’economie pure. Paris.

Notas

Allais, M. (1997) [1989]. An Outline of My Main Contributions to Economic Science. In Nobel Lectures: Economic Sciences, 1981-1990, ed. Karl-Göran Mäler,233-252. Singapore: World Scientific Publishing Company.

Allais, M. (1989). Autobiography. In Les Prix Nobel: The Nobel Prizes 1988, ed. Tore Frängsmyr. Stockholm: Nobel Foundation.

Fondation Maurice Allais. (2020). Introduction to Maurice Allais’s work as an economist global vision and seeds of renewal. Recuperado em 5 de julho de 2020, de: http://www.fondationmauriceallais.org/the-economist/?lang=en

Fondation Maurice Allais. (2020). General economic equilibrium, Social efficiency and the Economy of markets. Recuperado em 5 de julho de 2020, de: http://www.fondationmauriceallais.org/the-economist/general-economic-equilibrium-social-efficiency-and-the-economy-of-markets/?lang=en

Fondation Maurice Allais. (2020). The theory of capital. Recuperado em 8 de julho de 2020, de: http://www.fondationmauriceallais.org/the-economist/the-theory-of-capital/?lang=en

Fondation Maurice Allais. (2020). The theory of risk. Recuperado em 8 de julho de 2020, de: http://www.fondationmauriceallais.org/the-economist/theory-of-risk/?lang=en

International Statistical Institute. (2020). Maurice Allais. Recuperado em 5 de julho de 2020, de:https://www.isi-web.org/index.php/about-isi/who-is-isi/members/in-memoriam/29-joinustag/491-2010-maurice-allais

Klein, D., Daza, R., Mead, H. (2013). Ideological Profiles of the Economics Laureates. Econ Journal Watch. 10(3), 264-267

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