Talvez escutar o termo metas de inflação seja algo completamente usual para quem acompanha a economia e os mercados hoje em dia. Isso é muito bom e tem como suporte teórico o desenvolvimento lógico de dois grandes economistas de nosso tempo: Edward C. Prescott e Finn E. Kydland, por acaso os dois prêmios Nobel de Economia em 2004. Esses grandes economistas ainda criaram um legado de contribuição para a RBC (Real Business Cycle Theory) e toda área de estudo de ciclos econômicos.
O trabalho em conjunto de título “Rules Rather than Discretion: The Inconsistency of Optimal Plans” publicado em 1977 na The Journal of Political Economy é uma das obras de arte tanto pela elegância quanto pela completude do assunto.
Finn Kydland
O economista nasceu em 1943 no sudoeste da Noruega, tendo uma educação liberal mesmo numa época de extremos e se interessado por matemática desde cedo. Fez seu bacharelado em economia na Norwegian School of Economics (NHH) e conquistou seu PhD na Carnegie Mellon em 1973. Seu orientador foi justamente seu futuro parceiro de conquistas, Ed Prescott, e sua tese tem como título “Decentralized Macroeconomic Planning “.
Edward C. Prescott
O economista nova-iorquino nasceu em 1940, pouco antes de seu parceiro, se formando inicialmente em matemática na Swarthmore College (inclusive outros 5 Nobels passaram por lá). Seu mestrado foi defendido em Case Western Reserve University em Pesquisa Operacional (em especial Métodos Analíticos Avançados) e seu PhD também na Carnegie Mellon em 1967. Deu aulas na University of Pennsylvania entre 1966 e 1971 até voltar para Carnegie neste último ano e se defrontar com Finn Kydland.
Contextualização e impacto em teorias
Desde a saída de grande depressão até o começo da década de 1970, as ideias que beberam da teoria keynesiana dominavam o incipiente cenário macroeconômico, apontando que política monetária, por exemplo, teria total sucesso e capacidade de atuar como ferramental de estabilização da economia, sobretudo atacando o desemprego.
Bem, a década de 70 colocou em dúvidas diversas certezas até então inabaláveis, com uma combinação perversa de recessão, alto desemprego, inflação e juros alto. Nesse meio tempo, críticas à teoria keynesiana começavam a ganhar coro, dentre elas, a famosa Crítica de Lucas (que possivelmente será tratada em outro artigo de Nobel).
Além de problemas técnicos envolvendo os parâmetros dos modelos, por trás de toda essa conversa estava a ideia de que uma análise de policy, como a da política monetária, precisava mudar. Era necessário levar em conta a mudança de comportamento no nível micro, dos indivíduos, baseado em decisões que incorporam novas informações sobre a economia e a próprias expectativas sobre o que estaria por vir.
Prescott foi um dos jovens economistas que foi impactado pelas ideias e pela presença de Lucas em Carnegie Mellon, depois influenciando Kydland.
Como síntese dessa mudança de ares que a academia sofria, fica mais claro a ineficácia da política monetária em afetar o produto e o emprego no curto e no longo prazo; os custos de desinflação que incidem sobre a atividade real; o problema de inconsistência temporal nas políticas discricionárias; a importância da reputação e da credibilidade para a autoridade monetária e suas políticas. Nesses últimos pontos que temos bela contribuição dos autores.
Regra, discricionariedade e inconsistência dinâmica
A ideia que estava sendo debatida era: o que é mais eficiente para a política monetária, um policy baseada em regras, bem estabelecidas e que os agentes tenham como um norte para mapear a Autoridade, ou então a velha discricionariedade, em que a Autoridade poderia atuar no mercado da forma como julgar necessária a partir dos instrumentos disponíveis.
Do lado da discricionariedade os formuladores identificam determinada situação e decidem a maneira mais adequada de agir sobre ela, mas há um certo incentivo e aumento de probabilidade para a chamada inconsistência dinâmica.
No artigo de 1977, Kydland e Prescott mostraram que num primeiro momento a Autoridade pode se comprometer com uma taxa de inflação baixa, o que tem impacto nas expectativas de inflação. Nesse momento, o policymaker pode ver uma janela de oportunidade e responder ao incentivo de intensificar a política expansionista (redução do juro), buscando reduzir o desemprego à custo de uma expectativa de inflação baixa.
Num primeiro momento pode parecer vantajoso se aproveitar das expectativas, mas o mercado reajusta na segunda rodada desse jogo, aumentando as projeções dado uma política monetária mais frouxa e sem necessariamente melhorar as expectativas de produto e desemprego. O tiro sai pela culatra.
No final da história, a possibilidade dos policymakers de operarem uma política discricionária resulta em uma inflação (e expectativa) maior adicional sem que haja nenhum aumento de produto. Como o próprio artigo ressalta: “discretionary policy for which policymakers select the best action, given the current situation, will not typically result in the social objective function being maximized”.
Erguendo as mangas e indo para a parte formal
Acredito que o conhecimento produzido é de tal sorte tão rico que vale a pena algumas descrições mais técnicas (talvez contrariando alguns artigos do Coleção Economistas: Nobel), sobretudo em 2020, ano em que há um forte aumento de discricionariedade e mudança na condução da política monetária do Federal Reserve, o Banco Central americano.
No artigo original há uma formalização teórica bastante interessante de como pode ocorrer inconsistência nas decisões de política, independente de qual for, mas que têm mais de um período. Vamos considerar um exemplo genérico em que temos uma sequência de policies para o período 1 ao T dada por e as correspondentes decisões dos agentes dado por . Dito isso, considere também uma função de objetivo social dada por . No caso em que T=2, o policy ótima deve maximizar
Sujeito à
e
O que nos mostra como as decisões dos agentes em T=2 depende das policies de T=1 e T=2, além das reações dos próprios agentes em T=1. Dito isso, assumindo as propriedades necessárias para S(.) e maximizando dado as restrições, temos que
Ou seja, há um certo desprezo pelo efeito de em x1. Assim sendo, a condição de primeira ordem é tal que (eu sei, parece grego, mas sinta-se provocado)
Desta forma, se ou se a expressão dentro da chave for zero, então a consistência da policy será ótima, do contrário não. Há toda uma consideração em Pollak (1968), do qual os autores beberam água, que sugere que isso ocorre quando uma regra de policy é conhecida.
Regra vs discricionariedade na política monetária
Indo para a vaca-fria do problema da política monetária, começamos inicialmente pela famosa curva de Phillips, que aponta o trade-off entre inflação e desemprego.
em que é o desemprego, é o desemprego natural, π a inflação, e a inflação futura (esperada), e é uma constante positiva. De certa forma, a relação mostra que uma inflação acima da esperada gera um desemprego abaixo do nível natural.
Até aquela oportunidade, o Banco Central “benevolente” assume que a inflação acima de um determinado patamar (π*) tem custo elevado, e que o próprio custo marginal da inflação é crescente com o aumento desta. Por outro lado, a Autoridade também dá valor para uma baixa taxa de desemprego. Dito isso, há uma conhecida função de perda de bem-estar que deve ser minimizada, sendo dada por:
no qual sugere que o Banco Central não aprecia inflação comparativamente ao desemprego. Esse problema pode ser conduzido pela ótica discricionária ou de regras.
No caso dicionário, o Banco Central escolhe uma dada taxa de inflação assumindo a inflação esperada como dada. Desta forma, com base na inflação esperada e na inflação efetiva, o desemprego passa a ser determinado. Substituindo a curva de Phillips na função perda do banco central temos que
Depois de alguma manipulação, a inflação que minimiza essa função de perda é dada por
Como nesse framework estamos trabalhando com agentes racionais, eles fazer uma leitura de mercado e dos movimentos do Banco Central e assumem que a taxa assumida pela Autoridade é exatamente essa que minimiza a função de perda, ou seja, , logo
Guarde essa expressão na cabeça. Ela sugere que quanto mais a Autoridade se preocupar com a inflação (sensibilidade dado pelo parâmetro beta), menor a inflação de equilíbrio. Por sua vez, quanto maior for o trade-off entre inflação e desemprego (dado por alfa) maior será a inflação de equilíbrio, dado que o Banco Central terá incentivos para buscar desemprego baixo a custas de uma expectativa de inflação baixa.
Por sua vez, no caso em que a política segue alguma regra, o Banco Central se compromete com um nível determinado de inflação e os agentes acreditam nisso. Dessa forma, a economia estará bem ajustada pois
implicando que . Substituindo na função de perda L temos que a inflação que minimiza a função de perda é justamente
Dessa forma, fica claro que no caso dicionário há um viés que sugere que a inflação será maior nesse regime. Esse viés acontece refletindo o fato de que a taxa de desemprego desejada pela sociedade é usualmente menor do que a taxa de desemprego natural da economia.
Como dito, há um incentivo para “enganar” (talvez essa não seja a melhor palavra) os agentes ao escolher uma taxa de inflação de tal sorte que gera uma taxa de desemprego menor que a natural.
Se os agentes são de fato racionais, esse equilíbrio não “dá certo” e então resultando no viés encontrado e em nenhuma alteração efetiva de desemprego abaixo do natural ou aumento de produto. Esse movimento pode custar a credibilidade da Autoridade e interferir de forma determinante na condução das expectativas nas rodadas seguintes da política monetária, ou seja, uma inconsistência temporal.
Por fim, a parte discricionária converge para o sistema de regras quando o Banco Central é muito avesso à inflação (alto), o que reduz o viés. Mas ainda assim pode não ser tão bom quanto o caso alternativo.
Toda essa análise pode ser feita por Teoria dos Jogos e por backward induction, mas aí é mais fácil ler o paper original do que acreditar nesse mero escriba.
Nem tudo são flores no sistema de regras
Mesmo dentro da política de regras havia uma enormidade de sugestões. A regra era a oferta de moeda? Para o juro? Para o que?
Por exemplo, os monetaristas apontavam uma regra em que o Banco Central deveria manter a oferta de moeda crescendo num ritmo conhecido e estável, o que deveria preços estáveis, baixa oscilação do produto e do emprego.
O problema era que se a velocidade da moeda (para quem se lembra da MV=PY) não for estável, o crescimento da oferta de moeda num ritmo conhecido não estabilizará a demanda agregada. Bom, e é justamente isso que acontece quando a economia sofre algum tipo de choque.
Imagine uma situação (tipo uma pandemia?) em que a demanda por moeda aumente. Como o Banco Central deveria atuar dado que ele assumiu um compromisso com uma regra na etapa anterior?
Nesse sentido, há outro tipo de regra que consegue acomodar um pouco melhor os choques: a meta de inflação. Essa outra opção é mais conhecida pelo óbvio motivo de ser o modelo seguido pelo nosso Banco Central. Dado uma meta de inflação anunciada previamente, a Autoridade ajusta a oferta de moeda (ou o juro) para atingir o seu objetivo, isolando a economia das variações da velocidade da moeda, além de ser mais fácil de explicar para os agentes econômicos.
Conclusão
A contribuição de Kydland e Prescott foi mostrar que há uma certa incapacidade da política discricionária superar de forma clara aquelas regidas por regras, e que tem um especial carinho dentro das teorias e ensinamentos da política monetária. O compromisso declarado da busca por uma taxa de inflação baixa pelos formuladores de políticas pode criar expectativas de taxas de inflação e desemprego baixas. Se a política monetária for alterada (de forma discricionária) e as taxas de juros forem reduzidas – por exemplo, para dar um impulso de curto prazo ao emprego – a credibilidade da Autoridade será perdida e as condições pioradas por conta do regime escolhido. Nesse sistema, estabelecer regras formais parece ser uma alternativa preferível e de menor custo.
Notas
KYDLAND, F.; PRESCOTT, E.; “Rules Rather Than Discretion: The Inconsistency of Optimal Plans”; Journal of Political Economy; vol 85; 1977.
MONTES, G. C.; “Reputation, Credibility and Monetary Policy Effectiveness”; Estud. Econ. Vol 39; 2009
POLLAK, R. A. “Consistent Planning.”; Rev. Econ. Studies 35, 1968.