“Economia é uma ciência social, então empobrecemos muito se todos
nós tivermos a mesma aparência.” (Esther Duflo, 2020)[1]
Qual é a aparência de um economista? Se você pesquisar no Google, o resultado não é nada inesperado: um homem, branco, vestindo roupa social. Caso pergunte no grupo da sua família, uma imagem semelhante será descrita – a não ser que uma das suas tias cite o Gil do Vigor. Passeando pelos escritórios da Avenida Faria Lima, em São Paulo, a percepção é a mesma.
Mas estamos em um século que se iniciou trazendo consideráveis mudanças. Assuntos como diversidade, inclusão e representatividade estampam colunas de grandes jornais, painéis em grandes eventos, agenda de reguladores e reuniões nas equipes de RH, gestão e comunicação das grandes empresas.
E o que tudo isso tem a ver com o Nobel? Em 2019, o Prêmio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel foi concedido a um trio de economistas: Abhijit Banerjee, Esther Duflo e Michael Kremer. Dos 86 economistas já laureados, Esther Duflo foi a pessoa mais jovem e apenas a segunda mulher, após Elionor Ostrom, a receber o maior prêmio de Economia do mundo. Concomitantemente, Abhijit Banerjee se tornou o segundo homem indiano (após Amartya Sen) a ser laureado. Michael Kremer, por sua vez, é um norte-americano descendente de imigrantes judeus – tornando esse trio um tanto diverso.
O motivo da premiação também está alinhado com esse assunto. Os três professores foram premiados por sua “abordagem experimental para aliviar a pobreza global”[2], construída através de estudos empíricos realizados em países em desenvolvimento. A metodologia utilizada pelo trio é composta pelos denominados “ensaios controlados randomizados”, que procuram aplicar métodos estatísticos para a resolução de problemas sociais. Ao divergir das óticas tradicionais, Duflo, Banerjee e Kremer contribuem para a redução das desigualdades, tanto pela diversificação dos métodos de pesquisa econômica, quanto por seus esforços para promover a redução da pobreza em todo o mundo.
Ensaios controlados randomizados (RCT)
Os ensaios controlados randomizados (randomized controlled trial, RCT) surgem na área da saúde, ao final do século XIX, mas sua popularização e maior utilização se dá apenas após a segunda metade do século XX, ainda no campo da medicina.
Mesmo sendo um método composto por critérios estatísticos rigorosos, que garantem o poder estatístico, i.e., permitem que o resultado seja atribuído a um efeito específico e não ao simples acaso, a intuição dos RCTs não é complexa.
A partir da população total, seleciona-se o público elegível ao tratamento, ou seja, aquele que poderá receber determinado tipo de intervenção. Dentro deste grupo, de maneira aleatória, é realizado um sorteio da amostra na qual o estudo será aplicado — lembre-se, existem custos envolvidos e nem sempre toda população elegível poderá participar da pesquisa. Na sequência, dentro da amostra, um novo sorteio é realizado, dividindo os indivíduos entre o “grupo de tratamento” e o “grupo de controle” (que não recebe a intervenção). Com isso, o pesquisador é capaz de mensurar os resultados dos dois grupos e produzir uma comparação.
Na medicina, quando abordamos estudos randomizados, a compreensão de como mensura-se o impacto é bastante intuitiva. Por exemplo: ao medicar o grupo de tratamento e administrar um placebo (substância sem efeito algum) na outra parcela da amostra — sem que nenhum dos grupos tenha conhecimento se está recebendo uma substância ou a outra; é possível aferir o funcionamento do medicamento, comparando os resultados dos dois grupos. Já nas ciências sociais, essa percepção é mais difícil. A checagem se os efeitos encontrados aconteceram por conta da intervenção ou foram causados por outro fator qualquer não é tão simples e exige distintas variáveis de controle no experimento.
Quando utilizado corretamente, contudo, o ensaio controlado randomizado é capaz de auxiliar na mensuração de benefícios, efeitos colaterais, rentabilidade e outros aspectos de um programa social[3]. Para contornar as dificuldades de implementação do experimento, Duflo (2019) salienta o fator de maior importância: fazer as perguntas de pesquisa corretas – “uma vez que você tiver perguntas muito bem definidas, você pode elaborar um experimento muito parecido quando você testa a eficácia de um remédio em medicina”[4].
Experimentos aleatórios para redução da pobreza
Michael Kremer relata que a sua primeira vivência no uso de experimentos aleatórios foi em meados dos anos 90, com um trabalho no Quênia, em apoio à International Child Support (ICS), onde se buscava mensurar o impacto de um programa de apadrinhamento em distintas escolas da região.
Ao final dos anos 90, Kremer se associou a Banerjee, e posteriormente a Duflo, para conduzir estudos na Índia utilizando ensaios randomizados. Através do aprimoramento dos métodos de avaliação aleatória, o trio encontrou possibilidades de novos olhares para a realidade de grupos que anteriormente não foram o centro dos estudos na teoria econômica.
A partir de 2000, os trabalhos realizados por eles tornaram-se conhecidos em ONGs e institutos em todo o mundo. O grupo de pesquisadores utilizando esse tipo de abordagem — os quais foram denominados posteriormente de “randomistas”, também se expandiu gradativamente.
Em 2003, Duflo, Banerjee e Sendhil Mullainathan, professores do Massachusetts Institute of Technology (MIT), fundaram o Abdul Latif Jameel Poverty Action Lab (J-PAL), um centro de pesquisa com objetivo de “transformar a forma como o mundo vê os desafios da pobreza global”. O primeiro grupo de afiliados contou com cinco professores (entre eles, Michael Kremer). Atualmente, possuem cerca de 260 professores afiliados, responsáveis por realizarem mais de 1.000 experimentos aleatorizados em todo o mundo[5].
Essa abordagem mudou radicalmente a vida cotidiana de muitos economistas. Ela ampliou a concepção do que economistas fazem, desde analisar dados e escrever modelos, até conversar com fazendeiros e inspecionar latrinas. O conhecimento que aprendemos está ajudando a melhorar a vida de centenas de milhões de pessoas em todo o mundo em desenvolvimento. (KREMER, 2013) [6]
Um apanhado dos trabalhos dos experimentos randomizados realizados por Duflo, Banerjee, Kremer e centenas de pesquisadores do J-PAL pode ser encontrado no livro Poor Economics (2011).
Poor Economics
Mesmo sendo compostos por métodos estatísticos e objetivarem replicar experimentos clínicos, algo não pode ser controlado nos RCTs voltados para ciências humanas: o comportamento dos beneficiários das intervenções. Esse é o tema de Poor Economics, livro de Banerjee e Duflo, que aborda como pessoas pobres se comportam.
Com objetivo de auxiliar na solução de problemas, e não necessariamente descobrir os porquês de eles existirem, Duflo e Banerjee dão luz ao comportamento de pessoas pobres sob diferentes incentivos — por que após um aumento de renda eleva-se o consumo de calorias e não de comida ingerida? Por que mesmo sob vulnerabilidade econômica as famílias gastam com festas e televisões? O que leva uma família optar por enviar seu filho para escola ou não? Ao prover determinada quantidade de água para uma família, ela a utilizará para beber, cozinhar ou para o banho? Ou seja, para os autores, apenas compreendendo o comportamento dos beneficiários boas políticas públicas podem ser elaboradas.
Para isto, Poor Economics reúne estudos randomizados abordando distintos aspectos da vida de pessoas em países em desenvolvimento: o comportamento de agricultores com acesso à fertilizantes[7], os reais impactos dos microcréditos de Muhammad Yunus[8] e até mesmo políticas de prevenção ao HIV[9]. Também passa por análises de programas de estímulo à vacinação e transferência de renda. Por meio de um olhar acurado para os impactos dos variados programas, Banerjee e Duflo identificam numerosos casos de programas com incentivos inadequados, nos quais os formuladores das políticas e os beneficiários possuíam óticas distintas e expectativas divergentes para os resultados dos programas. Se não havia expectativa dos pobres de que os projetos sociais iriam funcionar e melhorarem suas vidas, por que se comportariam como os formuladores de políticas esperavam quando desenharam tais projetos?
Através dos experimentos e da observação comportamental dos beneficiários, a mensagem de Duflo e Banerjee é clara: existem formas mais e menos eficazes de se trazer informações e formar expectativa de pessoas mais pobres. Muitas ideias “geniais” são incríveis no papel, mas na prática não necessariamente funcionam. Dessa forma, apenas por meio das observações, operacionalizadas pelos experimentos aleatórios, é possível melhor desenhar programas sociais e econômicos para redução da pobreza e das desigualdades sociais.
“Na medida em que saibamos como remediar a pobreza, não há razão para tolerar o desperdício de vidas e de talentos que a pobreza arrasta consigo.”(BANERJEE; DUFLO, 2021, p. 342)[10]
Quem são?
Michael Kremer é norte-americano, filho de judeus imigrantes. Formou-se em Estudos Sociais em Harvard (1985), onde também se tornou Doutor em Economia (1992). Atuou como professor visitante na Universidade de Chicago em 1993 e professor no Massachusetts Institute of Technology (MIT), entre 1993 e 1999. Em 1999, Kremer retornou a Harvard, onde lecionou até 2020. Atualmente é professor no Departamento de Economia da Universidade de Chicago.
Abhijit Banerjee é indiano, naturalizado norte-americano. Filho de economistas, Banerjee se formou em Economia na Universidade de Calcutá (1981), se tornou Mestre na Universidade de Jawaharlal (1983) e Doutor em Harvard (1988). Atuou como professor em Princeton (1988-1992), professor visitante em Harvard (1991) e desde 1993 é professor no Massachusetts Institute of Technology (MIT). Casou-se com Esther Duflo em 2005.
Esther Duflo é francesa, naturalizada norte-americana. Formou-se em História e em Economia na Ecole Normale Supérieure (1992), tornou-se Mestre em Economia na Escola de Economia de Paris (1995) e Doutora pelo MIT – Massachusetts Institute of Technology (1999), onde é professora até hoje. Também foi professora visitante em Princeton (2001) e na Escola de Economia de Paris (2007 e 2017).
Contribuições gerais
Os estudos randomizados são permeados de críticas e polêmicas. Em “Field Experiments and the Practice of Economics”, Banerjee (2020)[11] responde questionamentos acerca da metodologia – principalmente as críticas relacionadas a falta de generalização dos estudos com RCT e o excesso de estatística na atuação econômica dele e dos demais randomistas.
Contudo, sob uma ótica mais positiva, os estudos randomizados para redução da pobreza carregam a perspectiva de criação de soluções para problemas reais no mundo real. As obras de Duflo, Banerjee, Kremer e das centenas de economistas que trabalham com esta abordagem transportam uma mensagem simples: a mudança do mundo não é sobre soluções mágicas e teorias mirabolantes. Não existe uma fórmula que irá resolver todos os problemas. Fazendo aplicações em microespaços e avaliando os impactos das intervenções chegamos mais perto para mudanças significativas da redução da pobreza.
“Esse prêmio não é um prêmio apenas para nós e para o nosso trabalho, é um prêmio para todo um movimento de pessoas que têm feito coisas incríveis” (BANERJEE, 2019)[12]
Juliana Santos Oliveira – Bacharel em Ciências e Humanidades e Graduanda em Economia na Universidade Federal do ABC.
Com agradecimento a leitura e revisão de Igor Luiz de Oliveira.
[1]DUFLO, Esther. Apresentação em painel no evento “Expert XP 2020”.
[2]NOBEL PRIZE. The Prize in Economic Sciences 2019. Disponível em: <https://www.nobelprize.org/prizes/economic-sciences/2019/summary/>
[3]GIBSON, Michael. SAUTMANN, Anja. Introduction to randomized evaluations, 2021. Disponível em: <https://www.povertyactionlab.org/resource/introduction-randomized-evaluations>.
[4]DUFLO, Esther. Interview with the 2019 Laureate in Economic Sciences Esther Duflo. 6 December 2019.
[5]J-PAL. About Us. Disponível em: <https://www.povertyactionlab.org/about-j-pal>.
[6]KREMER, Michael. The Origin and Evolution of Randomized Evaluations in Development. Apresentação em painel do 10º aniversário do J-PAL, 2013.
[7]DUFLO, Esther. KREMER, Michael. ROBINSON, Jonathan. Nudging Farmers to Use Fertilizer: Evidence from Kenya. American Economic Review 101 (6): 2350-2390, October 2011.
[8]DUFLO, Esther. BANERJEE, Abhijit; GLENNERSTER, Rachel, et. al. The Miracle of Microfinance? Evidence from a Randomized Evaluation. American Economic Journal: Applied Economics, Vol. 7, No. 1, (pp.22-53), January 2015.
[9]DUFLO, Esther; DUPAS, Pascaline; KREMER, Michael, et. al. Education and HIV/AIDS Prevention : Evidence from a Randomized Evaluation in Western Kenya. Policy Research Working Paper; No. 4024. World Bank, Washington, DC.
[10] BANERJEE, Abhijit; DUFLO, Esther. A economia dos pobres. Temas e Debates. Edição Circulo de Leitores, Lisboa, 2012.
[11]BANERJEE, Abhijit Vinayak. Field Experiments and the Practice of Economics. American Economic Review, 110(7), 2020.
[12]DUFLO, Esther. BANERJEE, Abhijit. Interview with Esther Duflo and Abhijit Banerjee, Prize in Economic Sciences 2019.