Nobel 2019: entre dilemas técnicos e éticos, um prêmio à ousadia

Como os leitores já devem saber, o Prêmio Nobel de economia  de 2019 foi entregue a Esther Duflo, Abhijit Banerjee (um casal e parceiros de pesquisa no MIT) e Michael Kremer (Harvard). Os laureados foram reconhecidos pela contribuição deles na aplicação dos chamados RCTs (Randomized Controlled Trials) no campo da Economia do Desenvolvimento, o que “melhorou drasticamente nossa capacidade de combater a pobreza” (segundo o júri, em tradução livre).

A origem dos RCTs

Os RCTs são amplamente usados na medicina desde a década de 1960, com aplicações conhecidas mesmo antes disso. Nas ciências sociais, em especial, no campo das políticas públicas, os primeiros experimentos também remontam àquela década, mas de forma incipiente. Uma das aplicações pioneiras e cujos resultados ainda são analisados mais de meio século depois é o programa Perry Preschool (1958-62), que buscou avaliar os efeitos de estímulos educacionais na primeira infância sobre a trajetória de vida dos indivíduos.

Muito do que se sabe hoje sobre o papel crucial desta fase do desenvolvimento humano e os seus impactos de longo prazo sobre diversos aspectos das vidas das pessoas é fruto deste experimento pioneiro e de similares feitos em outras localidades. 

A ideia do experimento aleatório (RCT) é bastante simples: ter dois grupos parecidos de indivíduos, um que receberá o tratamento (a política pública ou o medicamento) e um de controle, para quantificar o impacto da intervenção. Se bem feito, o RCT tem o potencial de eliminar na origem um dos pesadelos dos economistas e, há décadas, objeto de estudo da econometria: o viés de seleção. Este é o fator que nos impede (ou deveria impedir) de fixar causalidades a partir de simples correlações. 

Tomando o caso da pré-escola: se o programa não for alocado de forma aleatória (por exemplo, com a adesão voluntária das famílias), uma avaliação dos resultados da política será viesada e pouco informativa. Os mais variados fatores que levam as famílias a aderirem ao programa também impactam o desempenho dos alunos, de modo que o efeito da política e destes fatores externos se misturam. Por outro lado, se o desenho for feito, inicialmente, de forma aleatória, estes fatores estarão balanceados e os dois grupos se diferenciarão ao longo do tempo apenas pela ocorrência da intervenção. Bons resultados encontrados, avaliação custo-benefício feita, cabe ao governo ou à ONG em questão a decisão de escalar ou não o programa.

Esta orientação ao resultado, frente à escassez de recursos públicos e de dados, fez com que a proposta dos laureados de aplicar os RCTs no combate à pobreza fosse bem recepcionada em países em desenvolvimento. Esforços conjuntos de ONGs, institutos de pesquisa, governos e organismos multilaterais fizeram com que diversos experimentos se transformassem em políticas públicas, melhorando a vida de milhares de indivíduos. 

Padrão-ouro fosco?

Duflo e Banerjee falaram na conferência de imprensa que o prêmio era, sobretudo, um reconhecimento ao trabalho de centenas de pesquisadores que vêm atuando para entender as causas intímas da pobreza e elaborar as melhores formas de combatê-las. Como bem colocou Esther, “trata-se de um movimento que vai muito além de nós três”. 

Esta onda experimental que tomou conta dos estudos sobre o desenvolvimento econômico, desde a década de 19,90 colocou a área de novo entre as mais frutíferas da economia e pôs acadêmicos em campo, das escolas públicas do Quênia às favelas de Délhi. Hoje, universidades de ponta, think tanks e organismos internacionais contam com centros especializados em avaliação de políticas públicas e que, em geral, tentam fazer RCTs.

O Banco Mundial chegou a classificar a metodologia como o padrão-ouro de avaliação. Dados os esforços dos econometristas no combate ao viés de seleção – quanto mais próximo de um experimento aleatório, mais robusto é considerado o método. O prêmio, neste sentido, pode ser visto como um reconhecimento à ousadia do “por quê então não fazemos logo um RCT?” do trio.

É claro que, como tudo na economia, a premiação não passou sem polêmica: pipocaram diversos artigos após o anúncio do prêmio sobre os méritos e, principalmente, as falhas da metodologia. Um deles, que destaco aqui , é o da economista Deirdre McCloskey ao The Washington Times. A crítica bastante dura da intelectual centra-se em dois pontos principais: i) a alegação de que os experimentos tendem a avaliar políticas óbvias; e ii) a afirmação de que estes seriam antiéticos.

Em relação ao primeiro ponto, uma pesquisa sobre os estudos que vem sendo feitos ou a leitura do excelente Poor Economics [1] – de Duflo e Banerjee e para o qual há uma bela resenha aqui no Terraço – já revela que o argumento não é bem a regra. Na realidade, uma excelente lição que se tira ao estudar trabalhos da área é a de que não existe uma bala de prata. Ideias tidas como boas nem sempre se mostram efetivas em determinados contextos, com incentivos atuando de modo distinto do esperado. Os resultados decepcionantes do microcrédito, prometido como revolução, são um dos temas abordados no livro.

Para ilustrar seu ponto, Deirdre menciona um RCT que julga ser uma obviedade, ela também faz alusão as críticas de Heckman à metodologia. Contudo, deixa de lado o pequeno fato de que boa parte do trabalho de Heckman sobre primeira infância (dá uma olhada no meu artigo) é baseado em experimentos aleatórios feitos na área [2]. Entre eles, o já mencionado Perry Preschool. A autora também não menciona que diversas políticas públicas hoje aclamadas tiveram o desenho testado em experimentos pilotos. O Bolsa Família e outros programas de transferência condicional de renda se sustentaram nos achados de um grande RCT feito pelo governo mexicano, com apoio do Banco Mundial, na década de 1990: o PROGRESA. 

Muitas vezes sabemos o que deve ser feito, mas não como entregar da forma mais eficiente. A água contaminada, que ainda põe em risco a vida de milhares de crianças, é um exemplo interessante. É claro que o ideal seria que esta chegasse de forma canalizada em todas as residências, mas diante da ausência do Estado em diversas localidades, da escassez de recursos e frente à urgência do tema, qual a melhor saída? Distribuirmos o cloro para as famílias colocarem na água? Fazermos mutirões de água potável? Colocarmos o cloro do lado do fosso? (para quem tiver interesse, o livro discute esse caso).

Quanto à questão ética, acredito que esta deva ser levantada em todo experimento feito. Sem dúvida há um delicado balanço na decisão entre restringir uma política (que não necessariamente funciona) a um grupo ou gastar recursos escassos em programas pilotos, mas prezar pela igualdade. 

Estes experimentos, contudo, geralmente são feitos em escala pequena, pela ação de ONGs ou governos locais – que nem sempre possuem recursos para disponibilizar o programa a todos e que querem testá-lo e depois buscar meios de ampliar o acesso. Além disso, são muitos os casos (em que havendo recursos para ‘tratar’ mais indivíduos) o experimento é feito em fases – com o grupo de controle recebendo o tratamento em um segundo momento. Em resumo, assim como na Medicina, existe uma série de cuidados que devem ser tomados na elaboração de um RCT de políticas públicas. Há ainda situações em que a avaliação deve ser feita por outro método – como quando há um risco de prejuízo aos indivíduos de controle.

Deirdre, neste artigo, parece defender uma economia baseada no bom senso e na observação histórica. Os argumentos apresentados não me convencem do caso. Ao contrário, fico com a opinião de outros dois antigos laureados, Amartya Sen e Robert Solow, sobre o trabalho dos recém-laureados:

Abhijit Banerjee e Esther Duflo são alérgicos a grandes generalizações sobre o segredo do desenvolvimento econômico (…) há muitas pequenas vitórias a serem vencidas, algumas através da ação privada e outras da pública, que juntas podem gerar grandes ganhos aos mais pobres e mesmo inverter o cenário. Fiquei fascinado e convencido”.

R. Solow sobre a obra Poor Economics, tradução livre.

 

Um livro maravilhosamente perspicaz, de dois pesquisadores notáveis, sobre a verdadeira natureza da pobreza”.

Amartya Sen sobre a obra Poor Economics, tradução livre.

Indicações de leitura

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[1] Abhijit Vinayak Banerjee & Esther Duflo – Poor Economics: A Radical Rethinking of the Way to Fight Global Poverty

[2] James J. Heckman – Giving Kids a Fair Chance

Daniele Chiavenato

Formada em Economia pela FEA-USP, é mestre na mesma área pela Universidade de Leuven (Bélgica). No Brasil, trabalhou em consultorias econômicas com pesquisa macro e com microeconomia aplicada. Atualmente, na boa companhia das cervejas e chocolates belgas, trabalha na Comissão Europeia com políticas de emprego e inclusão social.
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