Poucos empreendedores – principalmente os mais novos – se recordam dos momentos econômicos delicados que passamos nas décadas de 80 e 90 no Brasil. O autor que vos escreve, por exemplo, não viveu esse período, mas conhece, por meio de leituras e estudos, o período da hiperinflação[1] brasileira. Um período louco, no qual os preços oscilavam algumas vezes em um mesmo dia. Os salários rapidamente se transformavam em mercadorias estocadas. O que não fosse gasto em consumo deveria ser aplicado rapidamente no overnight[2] ou na poupança. A confiança no governo era muito baixa, pois a todo momento surgia rumores de novos e mirabolantes planos econômicos que prometiam acabar com a inflação. Filas quilométricas na porta dos bancos ainda estão na lembrança daqueles que passaram por esse momento conturbado, seja do momento do confisco e das famosas “torneirinhas”[3].
Desde jul/1964 até jul/1994, observamos uma inflação acumulada de nada mais nada menos que 13.342.346.717.617,70%, ou 1 quatrilhão e 302 trilhões por cento. Fonte: Saga Brasileira/Miriam Leitão. Foto: FGV/Café Colombo.
Uma saga para a moeda estável
Quem sofreu muito com os planos e famosos “cortes de zero” foram os empreendedores. Como fazer o planejamento para o próximo mês se os preços possivelmente já estariam 70 – 80% superiores? E se os custos provenientes de seus fornecedores aumentassem mais do que os consumidores estivessem dispostos a pagar?
Supermercado, em tempos de inflação, à esquerda. A frenética remarcação de preços, à direita. Fotos: Chico Ferreira/Agliberto Lima, Acervo Estadão.
Além da dificuldade encontrada para o planejamento, o empresário encarava mais dois problemas. Primeiro, era a época de congelamento de preços. São poucos os empresários que não tem pesadelos com a obrigatoriedade prevista em lei do não reajuste de preços. No plano Cruzado, em 1986, muitos donos de negócio simplesmente foram pegos desprevenidos e seus preços, congelados, ficaram desalinhados com o resto dos bens da economia. Como resultado, alguns produtos simplesmente sumiram das prateleiras, como mostra a imagem acima.
Em segundo lugar, existia um ambiente hostil quanto à atuação do empresário. O governo propagava a ideia de que a culpa era do empresário que, motivado por instintos egoístas e pouco sociais, não hesitava em elevar seus preços, prejudicando os cidadãos e alimentando o ciclo vicioso da inflação. Eram comuns episódios de prisão de gerentes de bancos e supermercados acusados de elevar os preços acima do habitual. Esse mesmo governo, que jogava a culpa nos empresários, queimava recursos públicos sem parar e sem a menor cerimônia, não cumpria suas obrigações financeiras (deu 2 calotes externos e 1 calote interno) e desfavorecia o investimento produtivo…. afinal, qual é a motivação para investir em um ambiente desse?
Mas o pior ainda estava por vir: o dia 16 de março de 1990 é uma data difícil de ser esquecida por quem vivenciou a história. Até a ministra da Fazenda – Zélia Cardoso de Mello – tinha dificuldades de explicar o mirabolante Plano Collor, incluindo o confisco absurdo de 80% de todos os depósitos do overnight, das contas correntes ou das cadernetas de poupança que excedessem a NCz$50mil. Muitos empresários não conseguiram pagar seus funcionários e fornecedores. Empresas fecharam as portas. Há casos de pessoas comuns que haviam economizado por 10 ou 15 anos para comprar a casa própria, ou abrir o próprio negócio e tiveram esses sonhos postergados e em certos casos, cancelados. A incerteza reinava na vida de qualquer um.
O confisco foi o momento de maior desespero e desentendimento de todos os planos econômicos. Foto: IstoÉ Independente – 35 anos.
Um excelente livro para entender esse período é Saga Brasileira: a longa luta de um povo por sua moeda, escrito pela jornalista Miriam Leitão (476 páginas, Editora Record). É um livro de economia para não economistas. Por meio de histórias contadas por pessoas comuns, suas aflições e desafios, Miriam revisita os momentos mais críticos, que vão desde a farra do consumo provocada pelo Plano Cruzado, as desilusões do Plano Bresser e Verão, o total descabimento do confisco provocado pelo Plano Collor e, por fim, o sucesso do Plano Real.
E como estamos hoje?
Desde jul/1994 até jul/2014, a inflação acumulada é de 360%. Para se ter uma ideia do que isso significa, os cinco meses anteriores à implementação do Plano Real, isto é, de fevereiro a junho de 1994, a inflação foi de 506,66%. Em poucas palavras, a inflação acumulada em 20 anos foi inferior ao observado nos 5 meses anteriores à jul/94. A média ao ano, desde 94, é de 8%, uma inflação muito menor que observado nos anos anteriores, mas que ainda suscita algumas preocupações.
De maneira geral, a inflação no resto do mundo é muito mais baixa que o observado no Brasil. Nos EUA, a inflação não passa de 3%. Na Europa, fica próxima dos 2% ao ano. Nos últimos anos, a inflação brasileira tem ficado próximo ao teto da meta de inflação, próximo dos 6,5%. É superior inclusive ao observado no restante da América Latina:
Fonte: LatinFocus Consensus Forecast
Cabe ressaltar aqui um ponto importante: inflação controlada é um bom sinal. Significa que a demanda por bens e serviços está aquecida, embora não necessariamente signifique que a economia está crescendo com vigor. No caso do Brasil, estamos em período de quase estagflação, que é a combinação de estagnação (crescimento baixo) com alta inflação.
Quanto a pergunta do título do artigo, acredito que não: o fantasma da inflação não ronda mais o mundo dos negócios. O fato é que passamos por momentos muitos difíceis em que a sociedade conquistou – por meio de acertos e erros – uma economia com moeda estável. Os empresários de hoje devem olhar para o passado e notar que a vida empreendedora tinha um obstáculo a mais, que era a de trabalhar e vender seus produtos em meio ao caos inflacionário. O controle da inflação é um processo contínuo e, como mostra a história recente, não é resolvido com um tiro de canhão (congelamento de preços, confiscos aleatórios, etc.). Consumidores e empresários devem permanecer alertas para que os benefícios da moeda estável permaneçam por muitos anos na economia brasileira.
Glossário
[1] Hiperinflação – É um aumento contínuo do nível de preços acima dos níveis considerados adequados. De acordo com muitos economistas, pode-se considerar hiperinflação quando o índice mensal fica acima de 50%. Um país que passa por um processo hiperinflacionário sofre com a alta elevada dos preços dos produtos e forte desvalorização da moeda. A recessão econômica (retração do PIB) também pode ser um dos efeitos da hiperinflação. Além do caso brasileiro, são lembrados o caso da Alemanha em 1923 e do Zimbábue, que perdura até os dias atuais.
[2] Overnight – Aplicações feitas num dia para sacar no dia seguinte. Remunerava a inflação observada no dia. Como demandava altos valores para aplicação, muitos ficavam apenas com a poupança, que muitas vezes não acompanhava o ritmo da inflação galopante.
[3] “Torneirinhas” – Quando foi determinado o confisco das contas da poupança e das aplicações do overnight até o valor de NCz$50mil, esses valores represados seriam devolvidos em 18 meses. Contudo, foram surgindo leis e determinações para que determinados públicos recebesses esses valores, como aposentados, funcionários públicos, etc. Na realidade, em apenas seis meses, a política econômica tinha basicamente voltado ao modelo anterior ao plano.