Há uma impressão quase generalizada de que o que chamamos, para alguns, de quarta revolução tecnológica, mais destacadamente o mercado digital e suas plataformas onipresentes, tem ofertado um mundo novo de inovações, de produtividade e, o que é mais importante, de aumento de bem-estar e de qualidade de vida.
É inegável, como apontam majoritariamente os especialistas, que a economia digital tem revolucionado os mercados. Custos baixos de criação de tecnologia e de distribuição de serviços e produtos, ganhos de escala e escopo, efeitos diretos e indiretos de rede, uso colossal de dados, embora características não necessariamente novas vistas pela literatura econômica, todas juntas, em mais intensidade e velocidade, têm proporcionado senão a completa “disrupção”, uma alteração significativa em mercados tocados pela tecnologia. Daí também a ideia de que este é o chamado mercado das plataformas, ou mercado de dois ou mais lados, que melhor congregam esses fatores, sejam grandes ou pequenas.
É, sim, portanto, destacável, por inúmeros estudos e evidências, ganhos significativos de usuários e consumidores contemplados, da aparência e a promessa de chegada de novos fornecedores e plataformas, da criação de valor ofertado pelo grande guarda-chuva dos mercados digitais. Mais em alguns submercados do que em outros, sejam redes sociais, sejam varejos de comércio online (marketplaces), buscadores e aglutinadores de informação na internet, plataformas de entretenimento e serviços.
No entanto, vale a pena tentar ver o cenário como um todo e se perguntar, de fato, se toda essa inovação, vista pontualmente e impactante em alguns casos, tem ofertado coletivamente ganhos substanciais de produtividade, por um lado, e bem-estar e qualidade de vida, por outro.
Algumas das ideias tratadas aqui combinam, com destaque, um dos capítulos do recente livro de dois dos ganhadores do prêmio Nobel de economia de 2019, Abhijit V. Banerjee e Esther Duflo, Boa Economia para Tempos Difíceis [1], com o igualmente recente Working Paper, de Ariel Ezrachi e Maurice E. Stucke, produzido para a Comissão Europeia, Digitalisation and its impact on innovation.
Uma primeira ideia comparativa, na linha dos estudos citados, é pensar a revolução atual face às revoluções industriais, como ponto destacável o século XIX, e todos os avanços produtivos e de bem-estar, da massificação produtiva, do preço de produtos e serviços, nas indústrias de óleo e gás, financeira, de transportes e de bens de consumo. Se pensarmos aqui na comparação com os “barões ladrões” do século XIX nos EUA, as plataformas big tech`s de hoje, de algum modo, emulam este poder onipresente. As grandes companhias tradicionais da transição do século XIX para o século XX foram combatidas pelo antitruste, por exemplo, revelando o excesso de poder que controlavam, inclusive político. No entanto, é inegável que as transformações que estas grandes companhias carregavam e refletiam permaneceram e modificaram substancialmente a qualidade de vida de todos nós. O século XX é pautado por esses avanços: na área de energia, combustíveis, comunicação, transporte e modelos de produção.
Nesse ponto, Banerjee e Duflo no capítulo intitulado “o fim do crescimento?” refletem sobre as condições de crescimento econômico, mas igualmente da qualidade de vida, dos últimos 40 anos. Da década de 1980 e para cá, em particular em comparação com os chamados anos gloriosos de 1940 a 1970. As condições macroeconômicas, e de mercado de trabalho, de choques do petróleo à inflação, não mais confortáveis, impuseram sérias restrições ao crescimento nesse intervalo de tempo mais recente. É neste período que também se identifica um aumento substancial nos índices de desigualdade em países desenvolvidos, como Estados Unidos e Reino Unido, como bem documentado, por exemplo, por Thomas Piketty [2] e por Branko Milanovic [3].
A revolução tecnológica apresentava-se como uma saída para a turbulência experimentada pelo capitalismo liberal, a partir dos anos 1970, com a estagflação e o despertar da desigualdade. Mas, também segundo Banerjee e Duflo, a entrega do atual ciclo de inovação – embora prometido como uma nova era – não proporcionou o impacto antes visto pelas inovações da revolução industrial, disruptivas na essência da ideia de Schumpeter. O ambiente dinâmico de destruição criativa, em que startups criadas em garagens dominariam o mercado, parece ter dado lugar a um mercado extremamente concentrado, em que agentes dominantes lançam seus tentáculos e absorvem empreendedores que tentam surgir com novas ideias.
Ou seja, aqui, aparentemente, a resposta à pergunta posta neste artigo é não, por incrível que pareça. Ou pelo menos não como seria esperado e em um nível subótimo. Uma ideia é que o que chamamos de revolução digital, se tivéssemos que contextualizá-la no tempo, coincide com a internet como hoje a conhecemos, ou seja, mais de 25 anos. Tempo suficiente para os ganhos todos propalados já começassem a se evidenciar quase plenamente. E isto é passível de medição. Como contra-argumento poderíamos pensar que a revolução digital, mesmo fortemente dinâmica, revela-se um processo contínuo, cujos efeitos mais disruptivos de fusão das tecnologias ainda não se deram totalmente. Seria questão de tempo. Ainda que eventualmente ainda seja, e não sabemos se será, efeitos nocivos da não-inovação estão ocorrendo agora e merecem reflexão.
Ou seja, não se pode dizer– ainda – que a atual transformação digital tenha trazido transformações que geram grandes avanços em termos de bem-estar. Ezrachi e Stucke, trabalhando com os modelos de inovação na literatura econômica, apontam a hipótese de Kenneth Arrow, que sugere que pressões competitivas levam a investimento em inovação, mas que, quando o mercado se depara com significativo “poder de mercado”, há nítido desincentivo em futura inovação. Daí a famosa relação de U invertida entre competição e inovação, estudada por Philippe Aghion [4], entre outros. Em um estágio inicial do mercado, de baixa competição, os incentivos ainda são fracos para a inovação. A inovação cresce estimulada pela maior competição, até chegar em um ponto ótimo. Depois tende a arrefecer se a competição se tornar ruinosa e, eventualmente, caminhar para um monopólio.
E isto parece estar acontecendo com os mercados digitais, segundo Ezrachi e Stucke. Não em todos os submercados do grande guarda-chuva dos mercados digitais, mas em muitos de forma evidente, as plataformas têm se tornado tão fortes e penetrantes, congregando usuários, publicidade, dados e vendas, quando possível medir esta variável, que níveis menores de inovação já começam a ser notados. Poderia ser só uma dinâmica do mercado em si, fator não controlável por assim dizer. Mas não parece ser isto que está acontecendo.
Algumas plataformas incumbentes, como Facebook, Apple, Amazon e Google têm, mais do que consolidado suas posições, eternizado a dominância do mercado, limitando entrantes importantes em suas áreas, o que afeta a dinâmica de inovação. Ao mesmo tempo, em muitas situações, estas plataformas funcionam como controladoras de acesso à economia digital. De fato, para ter acesso aos consumidores e usuários da internet, prestadores de serviço, desenvolvedores e toda sorte de agentes econômicos precisam passar pelas plataformas. Sem esse acesso, a concorrência é inviabilizada, já que o agente sequer consegue entrar no mercado. Em outras palavras, as plataformas funcionam como gatekeepers e têm, assim, ainda mais poder de mercado.
Outro ponto salientado por Ezrachi e Stucke é que a inovação até acontece e pode ser medida. No entanto, parece começar a existir uma inovação por assim dizer nociva, não benéfica a todos os participantes do mercado. Não cria bem-estar distribuível, mas sim só mais rentabilidade para as plataformas. São inventos, fortemente baseados em dados, orientados em tornar o comportamento dos consumidores mais atraído pela plataforma, mais aderente ou viciante, sem ganhos significativos de bem-estar. Poderiam ser chamadas de inovações simplesmente incrementais ou de sustentação. E a isto se associariam ainda condutas das próprias plataformas, criando sólidas barreiras à entrada no mercado. Seria a combinação perversa daquelas características econômicas descritas no início do artigo resultando em um padrão de inovação igualmente perverso.
Ezrachi e Stucke, no estudo comentado, compilam inúmeros casos e métricas que exemplificam o comprometimento da inovação, como disrupção criadora de bem-estar: desde inovações em uso de dados, manipulação, scraping, formatação de ecossistemas digitais que excluem competidores, até o uso de ferramentas comportamentais para viciar e prender os consumidores. Além de suscitarem um debate adicional: as plataformas estão deixando seus nichos específicos de atuação, estendendo tentáculos para áreas dos rivais, ou para mercados tradicionais. O que poderia até ser visto como um incremento competitivo pode estar apontando para uma competição não saudável, o que impactaria negativamente o padrão de inovação.
Se as evidências são realmente estas, o que fazer? Os autores apontam inúmeros caminhos, de refletir na aplicação ex-post da legislação de concorrência; pensar na alteração da legislação de concorrência; discutir uma regulação ex-ante; debater proteção de dados e privacidade, e também portabilidade de dados pessoais, direitos de propriedade intelectual e responsabilidade pelo uso de algoritmos.
Nos estreitos limites deste artigo, impossível fazer isto. A ideia foi apresentar o problema pela ótica da inovação e se perguntar: você acha que os mercados digitais têm proporcionado, com base na inovação, o apregoado incremento de bem-estar e qualidade de vida? Na promessa de novos artigos, a ideia é discutir pontos específicos do problema apresentado.
Leandro Novais e Silva
Prof. de Direito Econômico na FD/UFMG.
Luiz Felipe Drummond Teixeira
Mestrando em Direito na FD/UFMG. Advogado no TPC – Toledo, Paoliello, Perpétuo, Pessoa e Campos Advogados.
Notas
[1] Banerjee V., Abhijit; Duflo, Esther. Boa Economia para Tempos Difíceis. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
[2] Piketty, Thomas. O capital no século XXI. Trad. Monica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
[3] Milanovic, Branko. A desigualdade no mundo: uma nova abordagem para a era da globalização. Coimbra: Actual, 2017.
[4] Philippe Aghion, Nick Bloom, Richard Blundell, Rachel Griffith & Peter Howitt, Competition and Innovation: an Inverted-U Relationship, 120 QUARTERLY JOURNAL OF ECONOMICS 720, 701-28 (2005).
[5] Lautenschlager, Alexandre. Inovação e crescimento econômico: uma comparação entre modelos endógenos e evolucionários. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas. Orientador: Prof. Dr. Antônio Carlos Macedo e Silva. Campinas, SP: [s.n.], 2016.