No debate político recente no Brasil, os liberais têm assumido um grande papel em ditar os temas de discussão e as ideias em voga. Após anos de uma semi-hegemonia do pensamento social-liberal e social-democrata, pensadores liberais-conservadores e libertários têm tomado tanto o debate público como o acadêmico.
Em grande parte isso foi bom, uma vez que promoveu a entrada nas discussões de políticas públicas de temas muito importantes para o desenvolvimento do Brasil (como reformas de incremento de produtividade, abertura comercial, reforma tributária, ajuste fiscal, privatizações, etc). Todavia, como é de praxe para qualquer movimento ideológico, os liberais também trouxeram consigo alguns mitos. Dentre esses mitos, a meu ver, nenhum é mais tóxico e errado do que os que dizem respeito à política monetária e regulação bancária.
Os liberais atacam o sistema bancário nacional colocando que ele é um oligopólio, alimentado pelos privilégios concedidos pelo estado de reservas fracionadas e juros negativos, e que isso é um entrave ao crescimento econômico por dificultar o crédito e é, em última análise, a causa dos ciclos econômicos.
Entretanto, apesar de seus argumentos “científicos”, os liberais não poderiam estar mais distantes das evidências da economia monetária e da ciência bancária. Inicialmente, devo dizer que os liberais estão inteiramente corretos na intenção de sua crítica. Realmente, o setor bancário brasileiro é extremamente oligopolizado e isso tem efeitos negativos sobre o crédito e, por consequência, o investimento e o crescimento do país. Porém, a forma da crítica está errada e deve ser corrigida.
Primeiramente, deve-se notar que essa opinião expressa claramente um viés austríaco por parte da maioria dos ditos liberais brasileiros. Sua defesa do padrão-ouro e a crítica contra as reservas fracionadas são uma crítica comum feita pela ala neomiseana da Escola Austríaca de Economia( Rothbard, Hoppe, Murphy e Salerno) e é perfeitamente visível que os influenciadores liberais e libertários bebem dessa fonte.
Seguindo Hoppe et al [1] e Rothbard [2], podemos dizer que os críticos das reservas fracionadas as condenam geralmente por três razões. A primeira é que as reservas fracionadas são inerentemente fraudulentas, uma vez que o dinheiro dos depósitos dos clientes do banco são emprestados a terceiros sem autorização por parte do proprietário do depósito ou conhecimento por parte do mesmo sobre para quem seu dinheiro está sendo emprestado. A segunda é que a emissão de passivos bancários para além das reservas do banco alimentará o ciclo econômico por meio da criação de poupança forçada; reduzindo a taxa natural de juros e promovendo um sobreinvestimento na economia real. A terceira é que esse sistema seria inerentemente instável devido ao risco dos passivos bancários (os depósitos) não serem compensados e a discrepância entre passivos e ativos criar insolvência no sistema bancário. Uma outra crítica comum é que o sistema de reservas fracionadas seria anti-natural, uma criação artificial do estado em conluio com os banqueiros. Todas essas críticas estão expressas claramente por uma parte dos liberais brasileiros.
Primeiramente, é necessário se definir antes o que é realmente o setor bancário. Segundo Compton [3], o setor bancário surge da necessidade da sociedade de organizar melhor seu sistema de crédito. Assim, as instituições bancárias surgem da necessidade de intermediação de valores entre partes com preferências temporais diferentes por moeda. Existe naturalmente na sociedade aqueles indivíduos que possuem uma quantidade excedente de moeda para além de suas necessidades imediatas (os poupadores) e aqueles que possuem pouca quantidade de moeda dado seus planos de uso presente (os tomadores de empréstimos). Em uma sociedade sem custos de transação, seria naturalmente fácil para ambos transacionarem, dado que existe uma demanda por um bem ocioso. Os poupadores fariam as transações de seus direitos de propriedade sobre a quantidade excedente de moeda com os tomadores em troca de que seu custo de oportunidade por abdicação do uso presente da quantidade de moeda excedente fosse compensado( ou seja, que fosse pago o valor da discrepância das preferências temporais, o juros).
Todavia, essa não é a realidade. Existe custos de transação, sobretudo custos de informação, envolvidos nessa situação. Os poupadores não possuem a informação sobre os usos que os tomadores farão de seu dinheiro e são passíveis de sofrer de problemas de oportunismo por parte deles, como um calote do empréstimo. Para solucionar isso o poupador tem duas opções: ou ele irá incorrer em custos de procura de informação para ter o conhecimento acerca dos usos por parte dos tomadores ou criar um intermediário entre as partes que fosse responsável por salvaguardar os interesses do poupador e diminuir a assimetria de informação entre as partes. Esse intermediário redutor de custos de transação é a instituição conhecida hoje como banco.
E aqui começa a crítica. Os oponentes das reservas fracionadas comumente atacam o setor bancário afirmando que ele não deveria emprestar dinheiro, ele deveria simplesmente guardar os depósitos dos poupadores no cofre, e que o empréstimo de valores por parte do banco é uma fraude contra seus clientes. Porém, isso é uma confusão da natureza das contas bancárias.
As contas bancárias se dividem em contas de guarda e contas de custódia. Quando você assina um contrato de abertura de conta em um banco, você está abrindo uma conta de custódia e não uma conta de guarda, logo está concordando implicitamente com os termos de que o dinheiro dos seus depósitos irá ser emprestado a terceiros. Poderia se argumentar que isso é feito contra os interesses do cliente, mas isso seria ignorar a evolução natural das contas bancárias. Uma vez que o banco é um intermediário das transações de crédito e moeda, toda vez que ele empresta para um indivíduo X, ele paga a um poupador Y sua remuneração por abdicação do uso presente e se remunera pelo serviço de intermediação. O banco é, assim, por definição um demandante de depósitos e não um ofertante de contas. Como coloca McMillan [4]:
“O contrato de guarda de valores dos custodiantes é essencialmente diferente do contrato de depósito dos bancos. O banco não é custodiante. Mas ele tem a intenção de emprestar o dinheiro que lhe é confiado. Como depositante, você empresta dinheiro ao banco: você é o emprestador e o banco o tomador. Ele pode usar o dinheiro que você depositou para qualquer propósito que considere adequado, como conceder empréstimos a empresas. Evidentemente, para você, como depositante, esse acordo parece menos seguro do que a situação em que o banqueiro apenas guarda suas moedas de ouro no cofre. Por que preferiria um contrato de custódia a um contrato de guarda segura? Os depósitos de custódia oferecem uma grande vantagem: em vez de pagar pelos serviços de guarda segura, você geralmente recebe juros sobre seu depósito. Isso explica por que os contratos de depósito são tão atraentes e por qual razão as contas de custódia prevaleceram sobre as de guarda.”
Logo, o argumento de que as reservas fracionadas constituem uma fraude não faz nenhum sentido teórico ou prático, uma vez que se trata de uma parte da relação contratual aberta, natural e voluntária por parte de bancos e clientes.
Agora vamos ao segundo ponto. O argumento de que as reservas fracionadas seriam um combustível para o ciclo econômico, ao distorcer os preços relativos da moeda e do capital e as flutuações industriais, não faz o menor sentido dentro da própria teoria austríaca! Uma modificação da oferta monetária irá ou não ter um efeito nas flutuações reais a depender da pré-existência de uma elevação ou não da demanda do público por balanços monetários nominais( moeda em conta). Se a expansão monetária ocorrer em excesso, o público irá converter o excesso de seus balanços nominais, dado uma determinada preferência, em balanços reais e consequentemente em demanda por produtos reais. O aumento nos gastos dos tomadores de empréstimos, nesse caso, não será compensado por uma redução dos gastos de outras pessoas( os poupadores potenciais) e o resultado final seria uma alteração da taxa natural de juros e a criação de um boom econômico artificial e insustentável.
Entretanto, essa previsão catastrófica não é válida quando a expansão da oferta monetária é meramente uma resposta a um crescimento anterior da demanda por balanços nominais de moeda. Tal expansão, ao invés de adicionar ao fluxo de consumo, meramente mantém o fluxo além da queda do produto real e mantém os lucros normais das firmas. Assim, ocorre um equilíbrio natural da demanda de depósitos e a demanda por moeda corrente, como aponta a Nova Escola Bancária e, considerando que a demanda por moeda corrente é igual à demanda keynesiana por transações, podemos dizer que ocorreria um equilíbrio entre o fluxo monetário e o produto; ou seja, os bancos, acompanhando a demanda por moeda real( dinheiro em espécie e crédito), fariam o equilíbrio natural de MV com Y nominal. Não ocorreria sobreinvestimento, pois a taxa natural de juros permaneceria inalterada mesmo com a criação de crédito por reserva fracionada.
Além disso, o argumento típico da Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos ignora as modificações recentes nas finanças. Com a única exceção de Sieron [5], os austríacos não notaram as modificações recentes nas instituições bancárias. Devido o Acordo de Capitais de Basileia, seria praticamente impossível um banco realizar um expansão de crédito como a descrita pela linha tradicional da Escola Austríaca. No atual cenário são as atividades bancárias paralelas o real problema e não os bancos. Como coloca McMillan [4]:
“As origens das atividades bancárias paralelas na década de 1970 sugerem os motivos da migração das atividades bancárias para a sombra. Naquela época, os bancos tradicionais estavam sujeitos a um teto nas taxas de juros que podiam oferecer aos depositantes, denominado Regulação Q. Isso era inconveniente para os bancos, uma vez que os impedia de atrair depósitos dos clientes, sobretudo em períodos de alta inflação. Na época, surgiu uma nova forma de instituição financeira, que oferecia algo muito semelhante aos depósitos bancários: os fundos de investimentos em renda fixa( MMMF). Eles emitiam contratos semelhantes a depósitos no lado do passivo e mantinham contrato de crédito de baixo risco e curto prazo(CDO) no lado do ativo do balanço patrimonial. Como os MMMFs não emitiam depósitos, no sentido legal, não eram considerados bancos. Desse modo, não estavam sujeitos ao teto da taxa de juros, podendo oferecer retornos mais elevados que bancos (…) Requisitos de capital do tipo Basileia I fracassaram porque regulavam os bancos, mas não as atividades bancárias.”
O terceiro ponto é que as reservas fracionadas iriam criar incentivos perversos para que o sistema bancário entrasse em insolvência ao criar discrepâncias entre ativos e passivos dos bancos, assumindo que os bancos são interligados por uma rede de compensações interbancárias. Esse argumento não faz nenhum sentido dentro da ciência bancária. Como podemos ver em Freitas e Rochet [6], o argumento de que os bancos livres iriam emprestar demais e que esses ativos não iriam se realizar, causando uma falta de liquidez geral e, por consequência, um pânico bancário, é uma violação da Lei das Reservas Excedentes.
Se um banco possui reservas em excesso para suas necessidades imediatas de liquidez e não existe nenhum requerimento institucional de reservas, ele pode expandir o crédito somente na proporção de suas reservas excedente, nada mais. A Lei das Reservas Excedentes assume que os mutuários dos bancos geralmente só pegam empréstimos bancários quando eles tem desejos a atender, implicando que a demanda por crédito não cresça.
Quando um banco faz um empréstimo a um cliente, o cliente escreve um cheque contra o novo balanço para pessoas que são meramente clientes de outros bancos. Os cheques então são depositados e os bancos que adquirem não perdem tempo em retornar eles por pagamento dos bancos que os emitiram.
Consequentemente, o banco que expande crédito além de suas reservas excedentes sofre um clearing drain praticamente igual ao montante do crédito que ele forneceu; suas reservas são reduzidas de maneira tão eficiente quanto como na situação em que cada cliente exigisse seus depósitos. Assim, é irracional um banco expandir crédito além de sua capacidade em condições normais, uma vez que o crédito excedente seria compensado no sistema de compensações interbancárias e o banco entraria em insolvência.
Poderia ser argumentado que isso é irreal, que o comportamento bancário não é assim uma vez que alguns bancos podem ser irracionais e, em consequência de suas ações, causar uma insolvência sistêmica; uma vez que bancos possuem ativos uns dos outros. Todavia, a história refuta essa visão. Como mostram Calomiris [7] e Sanches [8], se olharmos todos os episódios de pânicos bancários e o sistema bancário livre do século XIX, dificilmente as crises eram causadas por momentos de irracionalidade, atividades bancárias selvagens ou empréstimos podres a mutuários. A esmagadora maioria das crises bancárias ocorreu por problemas políticos. Geralmente, ocorria a deterioração de ativos estatais nos balanços dos bancos( como títulos públicos ou notas de saque) ou então a mudança das regras do jogo criava um aumento dos custos de transação e dificuldades de adaptação que causavam a insolvência dos bancos.
Por fim, o argumento de que o sistema de reservas fracionadas é uma criação artificial do estado não faz nenhum sentido histórico. Como mostra Davies [9], o que conhecemos como sistema de reservas fracionadas surgiu naturalmente na Inglaterra como reação contra o Estado! Durante a Guerra Civil Inglesa, o risco de confisco de patrimônio durante o conflito levou muitos mercadores a pedir aos ourives de cidades como Manchester para guardar sua riqueza em ouro em seus cofres. Os ourives em compensação criaram os contratos de custódia, onde ficavam livres para emprestar o dinheiro e recompensar seus depositantes com pequenas quantias de juros.
Além de um erro histórico, esse argumento é um grande erro teórico. Como coloca Selgin [10]:
“Se os proponentes das reservas bancárias completas estão corretos em sua crença de que o público nunca concordaria conscientemente com as reservas fracionadas, tal empreendedor que adotasse as reservas fracionadas não poderia capturar o mercado inteiro por notas bancárias ou forçar os outros bancos a adotar seu esquema de reservas fracionadas. Logo, para suportar sua alegação de que as reservas fracionadas sempre foram um esquema fraudulento, os críticos do sistema fiduciário seriam forçados a postular implicitamente a existência de massiva e persistente incompetência dos empreendedores.”
Ademais, vale notar que a pergunta central do debate não é respondida pelos liberais em momento algum. Eles se propõe a explicar as razões da oligopolização bancária no país, mas isso é deixado de lado para um ataque teórico contra as reservas fracionadas.
Respondendo a pergunta levantada por eles, a razão da oligopolização bancária brasileira é política. No fim do Plano real, com a crise bancária de 1997, o governo brasileiro passou um grande plano de reconstrução do sistema financeiro nacional, o PROER. Nesse plano, o governo criou inúmeras regras que tornavam o sistema bancário nacional mais sólido contra choques exógenos e aumentava a regulação sobre as prática bancárias. Todavia, o desenho regulatório do PROER, sobretudo devido a quebra geral dos bancos estaduais, criou enormes barreiras de entrada e concentração de crédito no setor bancário que, em última consequência, criou o sistema de oligopólio que conhecemos hoje; controlado em boa parte pelo estado. Como coloca Calomiris e Haber [11]:
“Ainda que o governo federal tenha tornado extremamente difícil para os governos estaduais ou o Banco Central emprestarem para um banco insolvente sem aprovação do legislativo nacional, ele reteve a opção do desenho de empréstimos discricionários. Ou seja, o governo federal deu a si mesmo o que os brasileiros chamam de jeitinho — uma maneira de contornar as regras. Ainda que o Banco Central fosse proibido de desemprenhar papel direto no processo de resolução, isso não significava que os bancos insolventes foram liquidados. A liquidação aconteceu pelo menos em um único caso — o do Banco Cruzeiro do Sul em 2012 — mas a outra maneira mais amplamente usada foi a de os bancos estatais absorverem as perdas dos insolventes por meio de aquisições. Ainda que os bancos estatais, assim como o governo, fossem proibidos de comprar ativos de bancos insolventes antes de 2008, no da crise internacional eles passaram uma lei( o Ato Provisório 443 de 2008, posteriormente a Lei 11908 de 2009) que permitia bancos estatais comprarem outros bancos ou ativos de insolventes (…) O uso dos bancos estatais para suporte dos bancos privados durante uma crise mostra uma das características mais curiosas dos governos democráticos do Brasil pós-1990. Ainda que o governo federal tenha forçado os governos estaduais a privatizarem seus bancos e limitar seus gastos, ele escolheu por não privatizar os seus — o Banco do Brasil, o BNDES e a CEF. E, enquanto escrevemos esse livro, esses três bancos respondem por 41% de todos os ativos bancários do Brasil.”
Notas:
[1]- HOPPE, Hans-Hermann; HÜLSMANN, Jörg Guido; BLOCK, Walter. Against fiduciary media. Quarterly Journal of Austrian Economics, v. 1, n. 1, p. 19–50, 1998;
[2]- ROTHBARD, Murray Newton. The case for a 100 percent gold dollar. Libertarian Review Press, 1962;
[3]- COMPTON, Eric N. Princípios das Atividades Bancárias. Instituto Brasileiro de Ciéncia Bancaria., 1990;
[4]- MCMILLAN, Jonathan. O Fim dos Bancos: Moeda, crédito e a revolução digital. Portfolio-Penguin, 2018;
[5]- SIERON, Arkadiusz. The Role of Shadow Banking in the Business Cycle. The Quarterly Journal of Austrian Economics, v. 19, n. 4, p. 309, 2016;
[6]- FREIXAS, Xavier; ROCHET, Jean-Charles. Microeconomics of Banking. MIT press, 2008;
[7]- CALOMIRIS, Charles. Banking Crises and the Rules of the Game. National Bureau of Economic Research, 2009;
[8]- SANCHES, Daniel et al. The Free-Banking Era: A Lesson for Today?. Economic Insights, v. 1, n. 3, p. 9–14, 2016;
[9]- DAVIES, Glyn. History of Money. University of Wales Press, 2010;
[10]- SELGIN, G. Should We Let Banks Create Money?. Independent Review, v. 5, n. 1, p. 93–100, 2000;
[11]- CALOMIRIS, Charles W.; HABER, Stephen H. Fragile by Design: The political origins of banking crises and scarce credit. Princeton University Press, 2015.