O mundo dos dados: entrevista com Our World in Data

O Estado Islâmico reivindica a autoria de mais um ataque no Oriente Médio. Um apagão é a causa de mais um dia sem aulas para as crianças venezuelanas. Centenas morreram após um ciclone atingir Moçambique, Zimbábue e Malauí. Tudo isso na página inicial do G1 Mundo, hoje, enquanto escrevo esse artigo no dia 26 de março de 2019. Embora despertem reações fortes, essas notícias estão no curtíssimo prazo. Outras, muito mais animadoras, como a extraordinária diminuição da extrema pobreza nos últimos 200 anos, permanecem fora dos holofotes. Afinal, esse segundo tipo de notícia muitas vezes envolve dados de difícil aquisição e interpretação. É aí que entra a iniciativa Our World in Data.

A equipe ‘Our World in Data: Esteban, Hannah, Daniel, Jaiden, Max e Joe.

A missão da Our World in Data — uma startup sem fins lucrativos — é combinar dados e pesquisas acadêmicas sobre as tendências que moldam o mundo como o conhecemos hoje. Não apenas isso, mas também apresentá-las e explicá-las de forma clara e interativa. Esses esforços renderam à startup milhões de visualizações, citações nos veículos de comunicação mais populares do mundo (The New York Times e The Wall Street Journal, para citar alguns) e até mesmo um tweet de um ilustre fã: Bill Gates. Recentemente a startup foi selecionada para o programa de aceleração da Y Combinator (a mesma aceleradora que no passado investiu em Airbnb, Dropbox e Reddit, por exemplo) e o Terraço não poderia deixar de aproveitar a oportunidade de apresentá-la ao público brasileiro. Através deste que vos fala, Paulo André, o Terraço Econômico apresenta nossa entrevista com a startup Our World in Data, representada pela pesquisadora Hannah Ritchie.


Terraço Econômico: Primeiramente gostaría de parabenizar toda a equipe por terem sido aceitos na Y Combinator. Creio que tenha dado muito trabalho, mas está gerando bons frutos. Sobre o projeto em si, como a Our World in Data quer impactar as pessoas no mundo real? Digo, impactar como essas pessoas normalmente percebem o mundo?

Our World in Data: Obrigado. Termos sido aceitos pela Y Combinator como uma das três startups sem fins lucrativos dentre 200 empresas foi uma honra. O programa deu muito trabalho para a equipe. Éramos acadêmicos adentrando o mundo do Vale do Silício, algo completamente diferente. O ritmo é muito mais acelerado em relação ao que estávamos acostumados e isso exigiu uma perspectiva muito diferente sobre como trabalhar e criar. Refinamos o nosso entendimento daquilo que fazemos, nosso impacto e como ir adiante para maximizá-lo.

A missão da Our World in Data é fornecer uma visão objetiva do atual estado do mundo, justamente a perspectiva de como ele mudou ao longo do tempo. Para fazê-lo, tentamos ser bem amplos quanto aos temas que cobrimos. Nós abordados tudo, desde a emissão de CO2 à extrema pobreza, mortalidade infantil à saúde mental, do comércio internacional à desigualdade econômica.

Nosso trabalho não é influenciar ou mudar como as pessoas percebem o mundo por si só. Nosso trabalho é apresentar os dados, fatos e melhores pesquisas a respeito do mundo de forma compreensível. Cabe ao leitor pensar como isso confronta sua própria percepção do mundo. Ter um bom entendimento do mundo sem dados é algo incrivelmente difícil de se fazer. No geral, a intuição humana é muito limitada, esse é o caso para quase todos (incluindo nós mesmos).

Terraço Econômico: Considerando as origens acadêmicas do projeto, o que levou a equipe a visar públicos maiores? Eu mesmo sou um estudante de graduação e reconheço que trazer valor às pessoas ‘fora da torre de marfim’ é uma tarefa extremamente desafiadora.

Our World in Data: Originalmente somos um grupo de pesquisadores universitários, mas a nossa motivação em iniciar e continuar com o projeto decorreu da frustração de tanta pesquisa existente por aí e que nunca chega aos grandes públicos.

As pessoas têm perguntas sobre temas importantes, mas as respostas necessárias estão presas em artigos acadêmicos, seja atrás de uma paywall ou enterradas em jargões técnicos. Nossa motivação era tornar isso disponível para todos, através da síntese das principais conclusões dessas pesquisas, construindo visualizações de dados para compreendê-las e publicando-as num site com acesso aberto.

Isso tem dois objetivos: desejamos que tomadores de decisões, formuladores de políticas e jornalistas tenham acesso à dados e pesquisas compreensíveis, para tomarem boas decisões e se comunicarem efetivamente. Também queremos que todos tenham acesso aos dados necessários para compreender o mundo e cobrar os governos e as pessoas no poder. Devemos ser capazes de acompanhar o desempenho do nosso país, como ele se compara aos outros e como continuar a progredir.

Terraço Econômico: Um dos meus economistas favoritos, Robert Shiller, enfatiza a importância das narrativas para nós, seres humanos. A Our World in Data tem uma maneira interessante de contar histórias, através de dados e evidências empíricas. Como vocês encaixam todas essas coisas numa mesma equação, histórias e dados?

Our World in Data: Tentar apresentar dados e pesquisas não somente de uma forma compreensível, mas também engajante é uma das partes mais difíceis do nosso trabalho. É algo que sempre tentamos fazer, porém, sempre podemos melhorar.

O projeto se inspirou muito no falecido Hans Rosling e na equipe do Gapminder – ele é o melhor exemplo de como combinar histórias e dados.

A parte difícil em combinar histórias e dados é que no nosso dia-a-dia, nossas experiências anedóticas frequentemente estão em conflito com as grandes tendências apontadas pelos dados. O ciclo diário dos noticiários é um exemplo: somos fortemente influenciados por eventos específicos — um desastre natural ou um ataque terrorista — mas deixamos as forças lentas e persistentes que moldam o nosso mundo passar.

Um modo de entrelaçar histórias e dados é olhando para as vidas das pessoas quando comparadas de um país para o outro e como elas diferem do passado. Considerando medidas de bem-estar, como a vida de um britânico é diferente da vida de um brasileiro? Como a vida dos brasileiros hoje é diferente em relação a 10 anos atrás, ou em relação à geração anterior?

Terraço Econômico: Vamos passear pelos bastidores, tome a entrada sobre “corrupção” como um exemplo. Você pode descrever brevemente, em termos gerais, qual o processo por trás da criação desse tipo de conteúdo?

Our World in Data: Existem muitos assuntos e entradas que desejamos abordar. Porém, nosso processo de seleção é baseado em alguns critérios: quais são os temas mais discutidos e requisitados (poluição causada por plásticos é um exemplo) e onde poderemos adicionar mais valor (porque é um tema importante e também porque não há muita informação pública e objetiva disponível sobre o assunto).

Uma vez decido o tema, o próximo passo é entender quais são as perguntas das pessoas. Descobrimos isso por alguns caminhos: usamos o Google Analytics para ver quais são as buscas mais comuns e perguntamos aos nossos usuários aquilo que eles sempre pensaram sobre o assunto. Isso nos ajuda a priorizar os maiores mal-entendidos e as questões mais urgentes.

O próximo passo toma a maior parte do nosso tempo: identificar e avaliar os melhores dados disponíveis. Fazer uma grande revisão da literatura acadêmica e extrair as conclusões-chave desses dados e pesquisas. Isso pode levar entre semanas e meses: é possível que existam milhares de artigos sobre um único assunto.

A última etapa é entender como comunicar as conclusões dos dados e pesquisas de maneira efetiva para um público geral. Fazemos isso através de visualizações interativas dos melhores dados (temos uma ferramenta própria de gráficos interativos) e escrevemos sobre as principais conclusões.

Terraço Econômico: Por um lado, detesto gráficos feios. Isso é uma implicância minha. Por outro, seus gráficos e infográficos são muito bem-feitos e intuitivos. Como vocês pensam no design e na comunicação visual? Como vocês lidam com isso?

Our World in Data: Nós também detestamos gráficos feios. Acho que as pessoas crescem cercadas de gráficos confusos e mal-elaborados e, por isso, acabam assustadas ao lidar com dados e estatísticas.

Somos muito sortudos porque nossa equipe conta com alguns desenvolvedores web incríveis que construíram a nossa ferramenta de gráficos interativos. Ela não somente facilita o entendimento dos usuários, mas também torna o nosso trabalho enquanto pesquisadores muito mais fácil, através de gráficos bonitos e intuitivos.

O design e a comunicação visual são realmente cruciais para tornar os dados compreensíveis. A importância da visualização de dados está aumentando e muitos estão fazendo isso bem. Porém, dada minha experiência pessoal, acho que muitas visualizações por aí sacrificam o entendimento em função da aparência. Os gráficos mais bonitos frequentemente são aqueles mais difíceis de serem compreendidos. Penso que há um equilíbrio entre construir gráficos bonitos aos olhos e simples o suficiente para serem lidos de forma rápida e intuitiva. Esse é o equilíbrio que tentamos alcançar.

Terraço Econômico: Se eu tivesse que representar a Our World in Data através de um infográfico, seria o “The world as 100 people through the last two centuries”. Simplesmente impressionante, você pode nos guiar por ele? Qual é a ideia desse infográfico?

Our World in Data: Esse é definitivamente o nosso infográfico mais popular. Ele foi criado por Max Roser, quem fundou e lidera a Our World in Data. O objetivo do infográfico era mostrar o quão intensas e rápidas foram as mudanças de bem-estar social pelo mundo ao longo dos últimos séculos.

Há 200 anos quase todo o mundo vivia em extrema pobreza, era pouco escolarizado e analfabeto, não existiam vacinas, a expectativa de vida era baixa e as taxas de mortalidade infantil eram altas. Ao longo dos últimos séculos isso mudou completamente: o mundo está mais rico, mais escolarizado e mais saudável. A maioria de nós perde esse incrível progresso de vista.

Claro, ainda temos muito trabalho pela frente: o mundo ainda é um lugar incrivelmente desigual, 10% dele ainda vive em condições de extrema pobreza e quase  milhões de crianças morrem todo ano. O estado do mundo é inaceitável, mas entender o progresso é importante para perpetuá-lo.

Terraço Econômico: De novo, uma visão de bastidores. Você pode apontar três soft skills consideradas fundamentais para a equipe Our World in Data? E hard skills? Como combiná-las de maneira útil?

Our World in Data:

Soft skills

Escrita e comunicação: escrevemos para um público muito geral e de origens distintas. Ser capaz de pegar uma pesquisa complexa e comunicar as conclusões-chave de forma clara e compreensível é fundamental.

Objetividade e mente aberta: tomamos muito cuidado para ter certeza de que nosso trabalho é objetivo e justo quanto à pesquisa e os dados de um determinado assunto. Isso faz com que deixemos vieses prévios de lado. Estamos permanentemente aprendendo sobre novos temas, isso significa que precisamos ter uma mente aberta em relação ao que as pesquisas e dados nos dizem.

Flexibilidade e curiosidade: chegamos à mais de um milhão de usuários todos os meses com uma equipe muito pequena. Isso quer dizer que precisamos trabalhar em áreas que não temos domínio prévio. Algumas vezes precisamos trabalhar com um tema que não é parte do nosso campo de especialização e precisamos ser flexíveis para fazê-lo e curiosos o bastante para passar meses aprendendo.

Hard skills

Programação e design: para os desenvolvedores web, isso é óbvio. Eles precisam construir o site e a ferramenta de gráficos, para que sejam compreensíveis ao público em geral e fáceis de serem manuseadas por nós, pesquisadores.

Análise de dados: enquanto pesquisamos, a maior parte do nosso tempo é gasto buscando fontes, analisando, combinando e comparando conjuntos de dados.

Pesquisa: sermos capazes de realizar uma completa revisão de literatura, além de alcançar o entendimento acerca das principais conclusões encontradas, é crucial para o nosso trabalho.

Hard e soft skills são essenciais para o nosso processo de trabalho. Devemos ser curiosos e flexíveis para abordar novos temas, fazer análises de dados e pesquisar sobre temas específicos. Ser capaz de abordar uma ampla gama de temas e, ao mesmo tempo, combinar pesquisa e escrita é desafiador.

Terraço Econômico: Recentemente certa frase ficou na minha cabeça: “Se não tivéssemos algo assim, precisaríamos criá-lo. E criamos.” Como você relacionaria essa frase com a Our World in Data?

Our World in Data: Todos da equipe foram atraídos ao projeto em razão de uma frustração comum: relatos objetivos e explicações de pesquisas sobre assuntos de importância global não eram disponíveis. Enquanto pesquisadores, sabíamos que as respostas para tantas perguntas existiam, só estavam presas dentro de artigos acadêmicos. Era inevitável que se a Our World in Data não existisse, nossa frustração com esse fato se acumularia até que todos faríamos essa tradução ao público. Talvez o faríamos como pesquisadores individuais, mas penso que no fim, ainda assim, iríamos nos reunir num único time.

Terraço Econômico: Uma última pergunta. Por que dados empíricos são importantes?

Our World in Data: Sem dados empíricos é impossível entender o nosso mundo e como ele está mudando. Nossas experiências pessoais e anedotas dizem muito pouco sobre as forças lentas, porém, persistentes, que estão moldando o mundo. Nossa intuição sobre como a vida é ao redor dele vezes contradiz a própria realidade. Devemos entender objetivamente onde nos encontramos hoje e como as coisas mudaram, se quisermos trabalhar rumo a um futuro melhor.

Versão original da entrevista (inglês)

Sair da versão mobile