“Que os homens não aprenderam muito com as lições da história, é a maior lição da história”
Aldous Huxley
Vou começar este texto com uma confissão. Eu já usei essa frase tantas vezes em artigos e trabalhos para a graduação, mestrado e afins, que daqui a pouco vão me dizer que quem não aprendeu com as lições da minha história (acadêmica) fui eu. Mas eu explico porque, ao ler um artigo na The Economist outro dia, decidi escrever esse texto e, então, utilizá-la mais uma vez.
O artigo da revista discutia se estaríamos vivenciando o triste fim da História Econômica como campo de estudo independente. Fiquei chateada, porque gosto muito dessa área, mas também intrigada, pensando o quanto podemos aprender estudando o que já aconteceu, mesmo no âmbito da economia, que vive em constante mutação. Então lembrei desse trabalho que escrevi, tentando responder à seguinte pergunta: “As causas da crise de 2008 foram fundamentalmente diferentes das que antecederam a onda de crises vivenciada por países emergentes nos anos 1990 (emerging market crisis, na literatura de crises financeiras)?”.
É claro que, à primeira vista, parece muito mais simples encontrar diferenças do que pontos em comum entre a recente crise financeira global, iniciada no coração do sistema financeiro norte-americano, e aquelas que marcaram o cenário de países emergentes em diferentes regiões nos anos 1990, incluindo América Latina, Rússia e Leste Asiático. Sem precisar de muito esforço, podemos citar diversos fatores de divergência antecedentes aos dois episódios de crise: diferentes níveis de desenvolvimento econômico e arcabouço institucional, incomparáveis posições na economia mundial, diferentes regimes políticos ou até níveis de maturidade democrática.
No entanto, ao olharmos um pouco mais de perto, apesar de tantas diferenças, é possível observar que ambos episódios de crise apresentaram causas estruturais similares. É claro que não sou maluca de dizer que descobri a receita mágica que antecede qualquer crise financeira, ou que tais crises foram desencadeadas pelos mesmos exatos fatores, valorizo aquele ditado de que “cada caso é um caso”. Tampouco tenho a presunção de propor mais uma explicação para a crise de 2008 à economistas e aos amigos do mercado financeiro.
Meu objetivo nessa minissérie de duas partes para o Terraço é abordar uma visão diferente e, ao apresentar cinco variáveis interdependentes e comparar sua presença nesses dois cenários, tentar convencê-los de que as vezes pode ser útil (e não apenas educado) ouvir uma história comprida daquele seu tio-avô que viveu muitas crises antes desta.
Identificando as variáveis: a crise do subprime
A crise financeira de 2007-08 iniciou nos EUA e se espalhou rapidamente pelo sistema econômico internacional, trazendo severas consequências ao redor do mundo. Como indicado por seu nome popular, a crise do subprime foi desencadeada pela eclosão de uma bolha imobiliária[1], financiada por créditos hipotecários de alto risco (conhecidos até mesmo pelo nome de junk bonds), no famoso mercado de empréstimos subprime. Tal mercado levava esse nome por não atender aos padrões estabelecidos para empréstimos “prime” pelas empresas Fannie Mae and Freddie Mac[i]. Conhecidas como Fannie and Freddie, estas eram empresas de capital aberto garantidas pelo governo dos EUA (government sponsored enterprises – GSE), e autorizadas a conceder e garantir empréstimos (principalmente hipotecas). Ou seja, os riscos atrelados ao crédito fornecido pela Fannie and Freddie eram garantidos pelo estado, de modo a estimular a atividade no setor imobiliário. No caso dos empréstimos subprime, não havia tal garantia do governo, ou nenhuma outra (como veremos adiante).
De volta à eclosão da crise, a queda dos preços de imóveis seguida por crescentes defaults hipotecários levou inicialmente ao colapso de inúmeros fundos de investimento, até que rapidamente atingiu diversas instituições financeiras. A gota d’água veio com a falência do banco de investimento Lehman Brothers, seguida pela desesperada intervenção estatal para salvar a companhia de seguros AIG. O mercado entrava em crise.
Como disse, minha intenção não é narrar minuciosamente a crise financeira de 2008, mas sim identificar variáveis estruturais comuns à crise de 1990. Nesse sentido, para começo de conversa, trago a seguinte pergunta: como essa bolha foi criada? A primeira variável que apresento, a inovação financeira, contribui para essa explicação.
Muito antes de 2007, Kindleberger (1978)[ii] já chamava atenção para a criação de bolhas no mercado financeiro. Segundo o autor, inovações no setor financeiro frequentemente levam o mercado a agir de maneira quase “maníaca”, gerando overtrading[2] e criando bolhas a partir do otimismo excessivo e do crescente comportamento de manada. Em outras palavras, o que Kindleberger tentava dizer em 1978 era que qualquer tipo inovação no campo financeiro – seja essa qual for – tende a levar os atores envolvidos a agir de forma extremamente otimista, tomar riscos em excesso, e seguir uns aos outros. Tal comportamento leva frequentemente à criação de bolhas especulativas – quando há uma falsa replicação de capitais no sistema (grosso modo, quando acredita-se haver enormes quantidades de dinheiro investidos em um mercado, mas na realidade, a maior parte é especulação).
No caso da bolha imobiliária norte-americana, a inovação veio na forma de um menu muito maior de instrumentos financeiros à disposição de investidores. Mais precisamente, novos e inúmeras vezes mais complexos tipos de securitização. Hipotecas estruturalmente complexas eram agrupadas em pacotes e vendidas por um número cada vez maior de agentes financeiros; estes pacotes, por sua vez, eram hedged com novos tipos de derivativos, como swaps de risco de crédito (Credit Default Swaps – CDS) e obrigações sintéticas garantidas por títulos e valores (Collaterized Debt Obligations – CDOs). Como se já não estivesse complexo o suficiente, tais títulos eram subdivididos em níveis (tranches), cada qual com um grau de risco crescente.
Nesse contexto, ao transferir o risco de tais títulos para longe de suas fontes originais e estruturá-los de modos cada vez mais complexos, a qualidade destes tornou-se duvidosa, e assim, foram estendidos a uma nova camada de devedores, cuja credibilidade também era bem duvidosa.[iii] Para se ter uma ideia, tais mutuários passaram a ser conhecidos como NINJAS (no income, no jobs, no assets).
Este cenário nos leva à segunda variável: falta de transparência e regulação. Dada a complexidade de tais títulos, investidores muitas vezes não entendiam inteiramente à que o seu dinheiro estava atrelado (o que, pessoalmente, acho bem plausível, uma vez que me levou muito tempo – e autores diferentes – apenas para entender explicações dessa bagunça financeira). Títulos atrelados a empréstimos de alto risco (os subprime loans) não possuíam nenhuma garantia (exceto a credibilidade do próprio fundo), diferente daqueles emitidos pela Fannie e Freddie (garantidos pelo governo), além de frequentemente apresentarem taxas de juros artificialmente atrativas[iv].
Ou seja, investidores compravam títulos de altíssimos risco e complexidade, muitas vezes sem entendê-los, sem qualquer tipo de garantia, e cujos juros seriam provavelmente revisados para cima após curtos períodos (de dois a três anos). Na verdade verdadeira, compravam era gato por lebre, achando que tais investimentos não possuíam riscos, quando a realidade era o total oposto.
Nesse contexto, investidores (em especial fundos de pensão, que possuem regulamento rígido para aplicar somente em papeis bem avaliados) tornaram-se altamente dependentes de agências de rating. Entretanto, tais agências apresentavam frequentes conflitos de interesse. Para analisar o risco desses títulos, muitas dependiam de informações fornecidas pelas próprias instituições emissoras dos títulos em questão, ou eram até mesmo subsidiárias das emissoras.[v] Em outras palavras, investidores confiavam a avaliação do risco de seus investimentos direta ou indiretamente àqueles mais interessados em vendê-los, comprovando tanto a falta de transparência quanto de regulação do setor.
A cereja do bolo trazida pela desregulamentação e seus desdobramentos veio na forma do aumento de concorrência no mercado financeiro, “que por sua vez aumentou os incentivos para que os bancos (e os gestores financeiros em geral) assumissem formas mais complexas de risco”.[vi]
Deste modo, um ambiente econômico altamente permissivo e pouco regulado permitiu que instituições financeiras não somente vendessem produtos de alto risco e complexidade (mesmo diante de claros conflitos de interesse), mas também tomassem decisões com importantes consequências para o sistema financeiro como um todo, a longo prazo. Essas decisões incluíam, por exemplo, afrouxar padrões de empréstimo, conceder crédito sem nenhuma prova formal de rendimento e elevar sua alavancagem a níveis altíssimos[vii]. Esse cenário nos leva à terceira variável: aumento de alavancagem e excesso de crédito (overlending).
A discussão sobre altos níveis de alavancagem, excesso de crédito e instabilidade financeira não é nova (um dos grandes autores a discutir tal questão é Minsky, 1986[viii]). Entretanto, como explicitado por Schularik and Taylor[ix] em artigo intitulado “Credit booms gone wrong”, até a eclosão da crise de 2008, grande parte dos governos acreditava que política monetária deveria ser pautada inteiramente em taxas de emprego e inflação, creditando a níveis de crédito o papel de variável externa. Desta forma, potenciais bolhas financeiras eram tratadas como algo passível de ser ignorado por Bancos Centrais, devido à facilidade e rapidez com que estes corrigiriam quaisquer estragos após sua eclosão.
No caso dos EUA da década de 2000, um cenário doméstico marcado por uma crescente desigualdade de renda e estagnação do salário real, associou-se à pressão política e aos benefícios de curto prazo oferecidos pelo expansionismo monetário, levando o governo norte-americano a encorajar instituições financeiras a emprestarem em excesso.[x] Em outras palavras, ao ver-se diante de um contexto de estagnação econômica, descontentamento popular e instabilidade política, o governo dos EUA optou por incentivar perigosos níveis de empréstimo e endividamento (tanto a nível bancário quanto familiar) – ignorando as consequências de adotar uma visão estritamente monetária em uma era na qual lastro e crédito há muito se desvencilharam.[xi]
Entende-se, então, que os anos precedentes da crise de 2008 foram marcados por altos níveis de alavancagem e excesso de crédito. Entretanto, o que possibilitou essas instituições financeiras a se endividar primeiramente de modo a comprar os famosos títulos securitizados, e vendê-los à investidores? Isso nos leva à quarta variável: abundância de liquidez.
Para estimular a economia, que se recuperava da crise trazida pela bolha da internet (Dotcom buble) e do pânico financeiro pós 11/09, o governo norte-americano adotou uma política expansionista tanto na frente fiscal quanto monetária, implementando baixas taxas de juros, cortes tributários e aumento do déficit público. É importante destacar, nesse contexto, que a inovação financeira (discutida anteriormente) é em grande parte relacionada ao cenário de alta liquidez, uma vez que novas ferramentas eram incorporadas em resposta à maior oferta de capital. Além disso, a combinação de abundância de capital e juros baixos servia como forte incentivo para que agentes do setor financeiro tomassem maiores riscos, a procura de maiores retornos.
Entretanto, as causas do excesso de liquidez observado na década de 2000 não se restringiram a fatores domésticos. Durante tal período, formou-se no mercado internacional uma verdadeira abundância global de poupança (global savings glut). Essa enorme quantia de capital a procura de investimentos rentáveis foi gerada em parte por países desenvolvidos com crescentes superávits comerciais, como Japão e Alemanha. Mas também por emergentes, focados em aumentar suas reservas internacionais, em prol de autonomia monetária diante de uma estratégia de crescimento por exportações a partir do controle cambial[3]. Esse fenômeno, aliado à forte subida do preço do petróleo e outras commodities, que gerou superávits em países produtores, levou a um grande aumento no fluxo de capitais em direção ao mercado financeiro norte-americano, contribuindo assim para ao ambiente de abundância de liquidez e crédito fácil.
O cenário descrito acima nos conduz parcialmente à formação da bolha imobiliária e, finalmente, à quinta e última variável aqui apresentada: o risco moral (moral hazard), que se relaciona com todas as outras variáveis, e é refletido em diferentes níveis. Tentarei ser mais clara.
Primeiro, indivíduos (pessoas comuns, como eu e você) levados por um ambiente de crédito barato e abundante, passaram a acreditar que poderiam tomar empréstimos sem riscos ou consequências a longo prazo. Segundo, um cenário marcado por um setor financeiro cada vez mais influente econômica e politicamente[4], por uma política macroeconômica expansionista, pelo crescente apoio estatal a novos produtos financeiros (como a securitização), além de uma política regulatória altamente permissiva e ultrapassada, fizeram com que instituições financeiras acreditassem ser muito grandes para quebrar (to big to fail). Em outras palavras, a desregulamentação e seus desdobramentos, aliados ao cenário de abundância de liquidez e ao poder de influência do setor financeiro fizeram com que seus representantes concluíssem que seriam salvos pelo governo às custas dos contribuintes[xii], “custe o que custar”.
Neste contexto, o cenário constituído por diferentes circunstâncias e apoiado pelo governo serviu como fonte de risco moral tanto para indivíduos comuns (emprestadores finais dos famosos títulos subprime), quanto ao próprio mercado financeiro, a partir de suas diversas instituições.
Por último, o próprio sistema internacional serviu como fonte de risco moral para o governo norte-americano, contribuindo para o comportamento leniente diante da formação da bolha imobiliária. Grandes influxos de capital externo refletiam a crença de investidores estrangeiros não somente na força e no papel internacional do dólar, mas também na segurança e profundidade únicas do sistema financeiro norte-americano.[xiii] Nesse sentido, o mercado internacional fornecia ao governo dos EUA a confiança necessária para absorver a poupança global (global savings glut), sem se preocupar com o aumento de seu déficit na conta de capitais. Sendo assim, torna-se possível destacar o risco moral como elemento chave para compreender a crise de 2008.
Mas calma, eu sei que me propus a apresentar uma análise comparativa, com o intuito de lembrar que não devemos menosprezar as lições do passado. Entretanto, abordarei isso em meu próximo texto, no qual será discutido de que maneira os cinco fatores apresentados podem também ser observados, e considerados elementos de causalidade, no contexto das crises de países emergentes da década de 1990, focando principalmente na Argentina e em países do Leste Asiático.
Referências
[1] É importante destacar o papel do excesso de poupança externa formado na primeira década de 2000 por parte de países com déficit em conta corrente, além de políticas monetárias expansionistas adotadas pelo FED (e também Bancos Centrais em outros países desenvolvidos), na criação da bolha financeira. Tal papel será discutido em detalhes adiante.
[2] O overtrading (emprega-se a palavra inglesa por ser o termo consagrado): consiste em procurar manter um certo nível de operações comerciais sem recursos financeiros suficientes. Envolve, normalmente, volume de vendas impressionante, margem de segurança progressivamente menor, sensação de esforço desmedido e perigo de quebra repentina. – Finance Wales: “A practical guide to cash-flow management”
[3] Visando a manutenção de uma moeda artificialmente desvalorizada em prol do aumento de exportações, países em desenvolvimento, como a China, aumentavam suas reservas cambiais, adquirindo também autonomia monetária na ausência de um câmbio flutuante.
[4] A exemplo, a crescente força política da bancada conhecida como “Partido Wall Street” no Congresso norte-americano.
[i] Brender, A. and Pisani, F. Globalized finance and its collapse. Belgium: Dexia SA, 2011:79
[ii] Kindleberger apud Helleiner, E. Understanding the 2007-2008 Global financial crisis: lessons for scholars of International Political Economy. Waterloo: University of Waterloo, 2011:69
[iii] Helleiner, E. Understanding the 2007-2008 Global financial crisis: lessons for scholars of International Political Economy. Waterloo: University of Waterloo, 2011:70
[iv] Brender, A. and Pisani, F. Globalized finance and its collapse. Belgium: Dexia SA, 2011:80
[v] Helleiner, E. Understanding the 2007-2008 Global financial crisis: lessons for scholars of International Political Economy. Waterloo: University of Waterloo, 2011:70
[vi] Rajan, R. Linhas de Falha. São Paulo: BEI Comunicação, 2012:23
[vii] Brender, A. and Pisani, F. Globalized finance and its collapse. Belgium: Dexia SA, 2011:80
[viii] Minsky, H. Stabilizing an unstable economy, 1986
[ix] Schularick, M. and Taylor, A. Credit booms gone bust: monetary policy, leverage and financial crisis, 1870-2008. Working paper 15512, Cambridge, 2009:3
[x] Rajan, R. Linhas de Falha. São Paulo: BEI Comunicação, 2012
[xi] Schularick, M. and Taylor, A. Credit booms gone bust: monetary policy, leverage and financial crisis, 1870-2008. Working paper 15512, Cambridge, 2009
[xii] Boone, P. and Johnson, S. ‘Will the Politics of Global Moral Hazard Sink us Again?’ Chapter 10, in Adair Turner et al. The Future of Finance London: LSE report, 2010
[xiii] Helleiner, E. Understanding the 2007-2008 Global financial crisis: lessons for scholars of International Political Economy. Waterloo: University of Waterloo, 2011:78