Luciana Morilas
Em tempos de verdadeira guerra ideológica, surgem diariamente novos grandes “especialistas” acerca de todos os temas econômicos e políticos da moda, mas principalmente na esfera jurídica. E quantos disparates são proferidos em nome de se traduzir a defesa de um posicionamento político! Para longe de qualquer posição política favorável ou contrária às várias PECs em discussão no momento –– afinal todas elas sempre têm aspectos positivos e negativos para cada ponto de vista que se defenda ––, a ideia aqui é explicar para não juristas, em linguagem não jurídica, o que são, para que servem e por que motivos existem as PECs.
PEC é o acrônimo –– a palavra é ruim: batizou uma operação da Polícia Federal, e isso já pode dar ao texto uma conotação política ––, ou a sigla para Proposta de Emenda Constitucional. Para compreender bem de que se trata, é necessário entender primeiro a estrutura da Constituição Brasileira. Antes ainda, é necessário entender o que é uma Constituição. Há milhares de textos teóricos a respeito, e vários deles definem uma Constituição como a “Carta Magna” de um país. E muitas pessoas ficam na mesma. A Constituição é o conjunto das regras fundamentais que estruturam um país. Portanto, deve, por um lado, conter apenas regras fundamentais, mínimas e, por outro, deve guiar todas as demais regras que explicitarão os conceitos ali contidos. Sendo assim, um texto constitucional, para se caracterizar como tal, deve contemplar no mínimo três aspectos: direitos fundamentais, forma de organização do Estado e forma de aquisição e exercício dos poderes. Pode parar por aí ou pode ir mais além. A Constituição brasileira decidiu ir bem mais além e tem 250 artigos no seu texto principal e 100 outros artigos no texto do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (até antes da aprovação da PEC 241/PEC 55 que, se sancionada, vai elevar esse número para 105). Essa extensão do texto nos leva a uma das classificações teóricas possíveis sobre as normas constitucionais: a Constituição brasileira classifica-se como analítica. Há inúmeras formas teóricas de se classificar uma Constituição, e os estudantes de Direito, em regra, não apreciam esse conteúdo teórico, que, embora detestável, é essencial para a discussão política da pertinência ou não das alterações constitucionais –– as tais PECs.
Portanto, a primeira classificação que apresento informa que a Constituição brasileira é, quanto à sua extensão, analítica, o que significa dizer que ela trata de variados assuntos, além dos imprescindíveis, incluindo a Ordem Econômica e Financeira (havia inicialmente até um dispositivo que limitava os juros, o antigo artigo 192) e a Ordem Social (que trata da educação, do desporto, da família). Isso é positivo ou negativo? Difícil dizer. Portanto, é difícil afirmar que a Constituição norte-americana, sintética e com poucas emendas, em vigor desde 1789, é melhor que a brasileira, como muitos “especialistas” dizem. Mas é importante saber que, qualquer disposição que ali esteja só pode ser alterada via PEC, o que inclui regras como aquela que determina que o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, permanecerá na órbita federal (art. 242, § 2º). Muitos autores consideram esta uma norma desnecessariamente constitucional. Contudo, uma vez lá, de lá só pode sair via PEC. E a possibilidade dessa retirada também deve ser estudada.
Uma outra classificação importante para o que se pretende aqui se refere à forma de alteração da Constituição Brasileira. Um texto constitucional pode ser flexível, ou seja, de fácil alteração, ou rígido, de difícil ou quase impossível alteração. Alguns autores incluem nesse contexto a classificação semirrígida. Para além de discussões teóricas, importa saber que a alteração da Constituição Brasileira exige um processo mais difícil que a criação de uma lei, o que definitivamente a retira do grupo de constituições flexíveis. Rígida ou semirrígida vai depender do doutrinador, e não vale a pena, aqui, entrar nessa discussão. Mas importa saber que a criação de uma lei acontece com a votação da maioria dos membros da casa legislativa para as leis ordinárias (o número de votos depende do número de parlamentares presentes à sessão, sendo o número mínimo 21 senadores ou 129 deputados) ou a maioria absoluta dos parlamentares para as leis complementares (41 senadores ou 257 deputados). Para a alteração da Constituição, o legislador originário –– aquele que primeiramente escreveu o texto de 1988 –– decidiu que seriam necessários 3/5 dos votos dos membros de cada casa (49 senadores ou 308 deputados) em duas votações, com espaço temporal mínimo de 10 dias entre elas. Ou seja: são necessárias quatro votações para que uma PEC seja aprovada. A ideia inicial era que o processo fosse complexo, de modo que os direitos inicialmente previstos não fossem facilmente alterados ao bel-prazer da ordem política em vigor. Em 28 anos de vigência, foram aprovadas 93 PECs e mais 6 emendas de revisão em 1995. Será realmente um processo difícil?
Para o bom entendimento acerca de uma PEC, deve-se saber, além do quórum necessário para a alteração no texto constitucional, que apenas algumas pessoas podem apresentá-la à Câmara dos deputados: o Presidente da República, o conjunto de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da federação (tendo-se manifestado a maioria relativa dos seus membros) e um terço dos membros da Câmara ou um terço dos membros do Senado (única hipótese em que ela se iniciaria no Senado). Ou seja: há muito poucas pessoas que podem dar início a uma PEC, e não há previsão para que o povo possa fazê-lo. Prevê-se que ao povo assista o direito de elaborar propostas de leis e, com base nisso, alguns autores aceitam que também seja possível que o povo proponha uma emenda constitucional. Porém, não há consenso sobre isso, e o STF nunca foi chamado para se manifestar a respeito. Portanto, em princípio, não é possível a iniciativa popular para a proposta de emenda constitucional.
Uma última questão formal: qualquer proposta de lei deverá ser sancionada pelo Presidente da República. Uma PEC não passa por essa etapa. A própria mesa da Câmara ou do Senado (a depender de onde ocorrer a última votação) a promulgará, visto que a Constituição Federal emana do povo, por meio de seus representantes eleitos. Assim, a PEC não passa pelo sistema de controle do executivo, estando sujeita unicamente, após ter entrado em vigor, ao controle pelo STF, caso contrarie algum dos princípios constitucionais.
Ainda é necessário estudar a hipótese acima mencionada com relação aos assuntos sobre os quais pode tratar uma PEC. O próprio texto constitucional estabelece limitações, sendo impossível sequer deliberar (colocar em a proposta em discussão) sobre quatro tipos de assuntos: a forma federativa de Estado; a separação dos Poderes; o voto direto, secreto, universal e periódico (note que a obrigatoriedade não está aqui incluída. Mas será que, diante de todas as abstenções das últimas eleições, pode-se considerar que o voto é mesmo obrigatório no país? É tema para um próximo texto); e os direitos e garantias individuais. Sobre este último tema recaem as maiores polêmicas, afinal há um capítulo todo da Constituição destinado a ele; porém, há decisão do STF que não limita os direitos e garantias individuais apenas a este capítulo, considerando, por exemplo, todas as limitações ao poder de tributar como tais. Este é um dos trechos mais polêmicos de limitações às PECs, pois vigora, por interpretação constitucional, o princípio do não-retrocesso. Portanto, um direito adquirido jamais poderia ser retirado dos cidadãos, sequer via emenda constitucional. É por isso que muitos doutrinadores entendem ser impossível a redução da maioridade penal, já que a criminalização de uma conduta a partir apenas dos 18 anos de idade é uma garantia individual expressa no texto constitucional (art. 228).
Com base em todas as informações teóricas apresentadas, é possível avaliar, sob o aspecto exclusivamente jurídico, os textos da PEC 241 (número do texto na Câmara dos Deputados) ou PEC 55 (número do mesmo texto no Senado Federal). Juridicamente, a PEC altera o texto do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, afinal suas determinações são transitórias –– está previsto para limitar os gastos públicos durante vinte anos. Econômica e politicamente, pode-se tomar partido favorável ou contrário à proposta, mas é inegável que o texto é tão amplo que o governante que assumir o poder durante esse período terá a possibilidade de usar o dinheiro público da forma como bem entender, como sempre se fez. Um governante ético pode fazer muita coisa boa, inclusive para a saúde e a educação, mesmo na vigência de restrições orçamentárias. No Brasil, acredita-se que a lei é capaz de mudar atitudes e clama-se por leis que restrinjam os gastos públicos; que destinem a aplicação de uma porcentagem do orçamento a alíneas consideradas fundamentais; que limitem a utilização de animais em shows e mais tantas outras. Na verdade, nenhuma delas seria necessária se os governantes usassem um único critério de governo: a ética.
Luciana Morilas É professora de Direito na FEA-RP/USP