neste post escrito por mim e meu colega Leonardo Palhuca, o Estado de Santa Catarina exigiu que o STF garantisse um desconto da dívida que esse Estado possui com a União maior do que o que a União pretendia dar. O governo federal sancionou em 2015 uma lei que o obriga (!) a renegociar os contratos de dívida com Estados e Municípios, basicamente com três benefícios aos Estados: i) redução da taxa de juros, ii) alteração do índice de correção inflacionária, e iii) desconto no estoque da dívida.
Esse terceiro ponto é o mais obscuro dessa renegociação. Segundo os planos iniciais, o desconto seria dado pela diferença entre o valor do estoque da dívida em 2013 e um valor hipotético nessa mesma data caso a dívida tivesse sido indexada pela taxa Selic. Logo, trata-se de um desconto baseado num cálculo retroativo, o que pos si só já causa calafrios. Porém, é preciso ressaltar que a maioria dos Estados não receberia descontos do estoque por essa regra, porquanto o valor hipotético da dívida com a Selic seria na verdade superior à realidade. O maior beneficiado seria a Prefeitura de São Paulo, por acaso administrada pelo PT.
Mas Santa Catarina teve uma ideia melhor: argumentou junto ao STF que se a evolução hipotética da dívida com a Selic fosse feita com juros simples ao invés de juros compostos (como é a praxe), também poderia pleitear um belo desconto. O STF acolheu o mandado de segurança, mas na hora de analisar o mérito, fez um grande papelão.
Por conta da liminar concedida pelo plenário do STF, que permitia a Santa Catarina realizar seus pagamentos conforme o cálculo que julgasse correto sem poder sofrer punições da União, diversos Estados entraram com mandados de segurança no STF com pedidos similares, todos devidamente deferidos. As interpretações foram ficando cada vez mais amplas e generosas: tratar-se-ia mesmo de garantir o uso de juros simples para a dívida como um todo, ou da mudança do indexador da dívida para a Selic! Claro, os Estados aproveitaram a moleza do STF para exigir o máximo de liberdade possível na interpretação de uma regra que era conhecida e pacífica de todos, uma vez que negociada e debatida ao longo de todo o primeiro mandato de Dilma Rousseff.
Na tarde desta quarta-feira (27 de abril), o relator do mandado de segurança, Ministro Edson Fachin, proferiu seu voto argumentando em favor da União por uma via indireta: decidiu que a lei que obriga a União a conceder os tais descontos padece de inconstitucionalidade. Seja como for, a negação do pleito dos Estados era posição esperada, razoável e urgente. Mas o Ministro Barroso convenceu a maioria da Corte com uma ideia diferente: seria melhor abster-se de julgar os mandados de segurança por sessenta dias, para que os Estados e a União negociassem. Parece ignorar que intensas negociações ocorreram nos últimos anos a esse respeito, que diversas propostas foram debatidas e simulações foram realizadas, sendo que a aplicação correta da Lei deveria ser do conhecimento de todos os Estados.
Pelo jeito não podemos esperar dos Ministros do STF que leiam os jornais ou acompanhem a produção legislativa. E é justo que se atenham ao texto da lei, em face da Constituição e com base na jurisprudência do tribunal. Mas é justo que a Suprema Corte do Brasil se negue a assentar a interpretação de uma norma? Na opinião da maioria dos Ministros, seria melhor não julgar o mérito, forçando uma negociação entre Estados e a União sobre o tema. É espantoso.
Após queixar-se da chamada “judicialização da política”, o Ministro preferiu que a Justiça se abstivesse de sua função precípua de estabelecer a interpretação correta para o texto legal, emprestando uma autoridade ilegítima aos Estados para barganharem junto à União. Em sua locução, que foi vencedora no plenário, o Ministro Barroso chegou a adiantar que era claro que o STF votaria pelos juros compostos. Porém, para ele, a Corte não deveria ainda pacificar o entendimento sobre a lei para não obstar negociações entre Estados e União. Na minha modesta visão, isso é prevaricar em suas funções de juiz.
O Ministro Barroso argumentou de maneira rasteira que os Estados (sem citar quais, obviamente) estariam sem dinheiro para pagar seus aposentados, e que a dívida da União era excessivamente onerosa (o Ministro não parece ter olhos para os aposentados federais ou do INSS). Comentou que a União nos últimos anos realizou desonerações no Imposto de Renda e IPI, o que prejudicou os Estados, uma vez que parte da arrecadação desses impostos lhes é transferida. Por fim, explicitamente concluiu que a manutenção da liminar seria um “refresco” a esses estados sufocados por obrigações financeiras impagáveis, o que é um convite à pura e simples inadimplência.
O governo federal está a duas semanas da votação da admissibilidade de impeachment pelo Senado, outra invencionice criativa do STF que se deve em grande parte à mente fértil do Ministro Barroso. Em duas semanas, é bem provável que Dilma Rousseff seja afastada da Presidência da República até o julgamento final do impeachment. O prazo de sessenta dias dado pelos Ministros é, na prática, uma chance para os Estados fazerem um leilão com Dilma ou Temer para ver quem dá mais. Mas, não nos esqueçamos, Barroso se diz muito preocupado com a “judicialização da política”.
Uma coisa dita pelo Ministro é verdade: na negociação que ele deseja ver acontecer, não haverá inocentes, todos têm sua parcela de culpa. O governo federal tem sua parcela de culpa. Primeiro, ao iniciar e arrastar por muitos anos uma renegociação de contratos que já haviam sido assinados, com amplo benefício para os Estados, entre os anos 1997 e 2000. Segundo, ao pisar ainda mais na jaca ao incluir o tal desconto com base num cálculo retroativo, obscuro e complicado, sendo incapaz de escrevê-lo na lei de forma que fosse claramente inteligível a Estados ou aos Ministros do Supremo. Finalmente, ao andar mais uma vez na corda bamba da Lei de Responsabilidade Fiscal, pois ainda gostaria de saber como essa renegociação se concilia com seu artigo 35, caput, o qual diz que:
É vedada a realização de operação de crédito entre um ente da Federação, diretamente ou por intermédio de fundo, autarquia, fundação ou empresa estatal dependente, e outro, inclusive suas entidades da administração indireta, ainda que sob a forma de novação, refinanciamento ou postergação de dívida contraída anteriormente. (grifos meus)
Os Estados têm também, é claro, sua parcela de culpa. A ideia de calcular o desconto com uso de Selic a juros simples é ignorância ou má-fé: como dito acima, as negociações estão correndo há anos. Se os Estados estão hoje em dificuldades financeiras – e isso não é homogêneo para todas as 27 Unidades da Federação – não têm o direito de passar a conta para a União com malandragem jurídica.
Mas o STF, sem dúvida, fez o pior papel. Deu a si mesmo um prazo extenso para analisar o assunto, com uma justificativa medíocre. Recusou-se a cumprir seu papel de reestabelecer a ordem, a legalidade e a boa-fé. Prevaricou, para vergonha nacional.
Vídeo do julgamento está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qEZf9oB0XkE O Ministro fala do “refresco” aos Estados no minuto 3h25′. O Ministro anuncia o julgamento contra os juros simples no minuto 3h33′. (Foto: http://brasileducom.blogspot.be/2013/10/stf-garante-direitos-indigenas.html)