Você no Terraço | por Renata K. Velloso
O artigo 196 da Constituição Federal diz o seguinte “A saúde é direito de todos e dever do Estado [1]”. Foi esse artigo e os demais desse capítulo que levaram a criação do Sistema Único de Saúde, o SUS.
O sonho, transformado em lei constitucional, era que todas as necessidades de saúde da população fossem garantidas pelo Estado. O SUS tem três princípios básicos: universalidade, equidade e integralidade da atenção à saúde [2]. Em outras palavras o SUS deveria oferecer tudo para todos, sem distinção.
Existem poucos países tão ambiciosos quanto o Brasil com o SUS. O modelo bem sucedido mais próximo é o NHS da Inglaterra, considerado um dos melhores e mais amplos sistemas de saúde do mundo.
Mas mesmo o NHS coloca algumas restrições que o SUS, pelo menos no papel, não coloca. Turistas e estrangeiros que não estejam morando legalmente no país são atendidos pelo NHS apenas em casos de emergência; além disso, existe um sistema de co-pagamento para os remédios prescritos fora do ambiente hospitalar, no qual o paciente arca com uma parte e o NHS com outra.
No NHS também não estão disponíveis todas as medicações, especialmente não as mais caras [3], ou seja, não é um sistema tão integral nem tão universal quanto se propõe o SUS.
Por exemplo, no Brasil um caso que ficou conhecido foi o do Rafael Notarangeli Fávaro[4], um paciente portador de hemoglobinúria paroxística noturna, uma doença na qual um dos tratamentos disponíveis é um medicamento biológico cujo custo chegou a R$ 70 mil por mês. Rafael conseguiu esse medicamento na justiça e recebe o tratamento pago pelo SUS no hospital Sírio Libanês em São Paulo. Se ele fosse inglês esse tratamento só estaria disponível se ele estivesse em um estágio bem mais avançado da doença e falhado com outros tratamentos mais baratos.
Existem ainda outras diferenças. No NHS, o paciente precisa sempre se consultar primeiro com um médico da família. É ele que resolve a grande maioria das demandas de saúde e decide se você precisa ou não de um especialista, que o cidadão inglês só consegue acessar pelo NHS com a referência desse médico de família.
Uma gestante saudável, por exemplo, não é atendida por um obstetra, nem mesmo durante o parto que pode tanto ser realizado pelo médico de família quanto por uma enfermeira obstétrica. O especialista só é acionado em casos de gravidez de alto risco ou necessidade de cirurgia cesárea. Mas mesmo considerando essas “imperfeições” quanto custaria ter um NHS no Brasil?
Vamos fazer as contas.
O Reino Unido gasta por ano US$ 3.935 dólares per capita em saúde [5]. O NHS cobre cerca de 80% desse valor (o restante são medicamentos vendidos livremente nas farmácias sem prescrição, o co-pagamento de medicação extra-hospitalar, procedimentos estéticos e eletivos e alguns tratamentos oculares e dentários não cobertos pelo NHS).
Com isso o valor gasto pelo setor público é de 80% * 3935 = US$ 3.148 dólares por pessoa/ano. Vamos aplicar esse custo ao Brasil: nossa população é de 202 milhões de pessoas * 3.148, teríamos um custo total de US$ 638 bilhões de dólares para bancar um NHS no Brasil. Usando uma cotação do dólar de 3.5/real, o custo do NHS em reais seria de cerca de R$ 2.23 trilhões.
O total arrecadado em imposto no Brasil atingiu R$ 2 trilhões em 2015 [6], ou seja, se o país pegasse tudo o que arrecadou e aplicasse na saúde ainda faltariam alguns milhões para implantar um NHS no Brasil.
O que isso siginifica? Que o país precisa discutir o que quer fazer na saúde sem hipocrisia e sem sonhos de uma noite de verão. O SUS no papel é lindo, mas é inviável na prática. Mesmo melhorando a gestão, mesmo acabando com os desvios, não há dinheiro o suficiente para ser tudo para todos. Ainda que a parcela mais rica da população continuasse bancando parte do custo via sistema privado e fazendo o que pela constituição é um direito e dever do Estado. Não tem dinheiro.
Então não seria mais honesto racionalizar o modelo criando um sistema menos ambicioso que ofereça o básico de boa qualidade? Faz sentido pagar um tratamento como o do Rafael? Faz sentido o SUS fazer transplantes de fígado que custam mais de R$ 100.000,00 por indivíduo? É claro que quando é conosco ou com alguém que amamos sempre vamos achar que vale a pena, mas em termos populacionais é preciso ser mais racional.
O orçamento do ministério da saúde está muito abaixo desse SUS sonhado. O limite para gastos caiu de R$ 91,5 bilhões em 2015 para R$ 88,97 bilhões em 2016. O Ministério da Saúde sofreu o segundo maior bloqueio nominal nesse ano, com corte de R$ 2,5 bilhões. Além disso, o novo Ministro da Saúde, Ricardo Barros, acaba de avisar que ainda temos um restos a pagar de R$ 14 bilhões do ano passado.
Segundo o ex-ministro da saúde José Gomes Temporão “O SUS é um sucesso estrondoso” [7] e de fato é inegável que houve melhorias no setor desde a constituição de 1988, mas o modelo está muito aquém do que se propõe. Já passou da hora da sociedade brasileira aceitar a realidade do subfinanciamento crônico da saúde e decidir o que pretende garantir e com que dinheiro.
Renata K. Velloso Médica, formada em administração pública, vive e trabalha na Califórnia.
Notas: [1]http://conselho.saude.gov.br/web_sus20anos/20anossus/legislacao/constituicaofederal.pdf [2] http://www.saude.ba.gov.br/pdf/OS_PRINCIPIOS_DO_SUS.pdf [3]http://www.telegraph.co.uk/news/politics/11340860/25-cancer-drugs-to-be-denied-on-NHS.html [4]http://revistaepoca.globo.com/tempo/noticia/2012/03/o-paciente-de-r-800-mil.html [5]http://data.worldbank.org/indicator/SH.XPD.PCAP [6]http://g1.globo.com/economia/seu-dinheiro/noticia/2015/12/impostos-pagos-por-brasileiros-chegam-r-2-trilhoes-este-ano.html [7]http://cancer.org.br/o-impasse-da-saude-publica/