O terrorismo que ninguém vê

O atentado ao jornal semanal Charlie Hebdo reacendeu o debate acerca dos limites do direito, das fronteiras, do culto à religião e do humor. Liberdade de expressão e liberdade religiosa se digladiam como dois corpos que não habitam o mesmo espaço. Nesse contexto, pessoas de extremos opostos do mundo empunham a mesma bandeira, “Je suis Charlie”. Líderes religiosos aproveitam a fé aflorada dos fiéis para revigorar seus cultos. Governantes se estendem nos seus discursos diplomáticos sobre as relações internacionais. E a imprensa inflama as pessoas, polemizando os debates mais desgastados. Diante de tudo isso, o mundo pareceu esquecer todas suas intempéries e voltou sua atenção exclusivamente para uma coisa: o terrorismo em Paris, que – desculpem-me os amantes da Capital das Luzes – não passa de mais uma das frentes de batalha, já que os alvos desses ataques transpõem as fronteiras francesas.

Mas afinal, qual a origem do terrorismo? O que o inspira? É um ato de violência gratuita ou vem sempre carregado de um sentimento religioso de vingança?

A Origem da Palavra

Voltando aos livros de história, vemos que a Revolução Francesa foi inspiração para muito além do “liberté, egalité, fraternité”. A palavra terrorismo, por exemplo, remonta à Revolução e ao seu regime de terror. Usado pelo Estado como um instrumento de governo apoiado pela lei, o terrorisme possuía uma conotação positiva na época e, através dele, com a perseguição e execução dos ”inimigos da Revolução Francesa”, foi criado um sentimento generalizado de intimidação. O conflito daquela época entre os girondinos e jacobinos tinha como resultado execuções em massa, incluindo a morte de dezenas de milhares de pessoas sob a guilhotina. Bem… Hoje, a França está sendo vítima do ato que ela mesma batizou.

Apesar da origem francesa da palavra, o terrorismo sempre foi presente no amadurecimento da espécie humana desde tempos remotos. O uso do termo foi expandindo para abarcar cada vez mais grupos e contextos diferentes, acabando por não ter uma definição exata. Os Estados membros da União Europeia definem terrorismo como “atos criminosos físicos e psicológicos que visam intimidar populações, obrigando os Estados a cumprirem exigências dos perpetradores e/ou desestabilizar o fundamento político, constitucional, econômico e social de uma nação”. Porém, o que o difere da guerra? Não há regras.

A Inspiração

O terrorismo não pertence a uma religião e muito menos é exclusivo a elas. Além da fé, ele pode ter inspiração etno-nacionalista e separatista, esquerdista, anarquista, direitista entre outros.

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O European Union Terrorism Situation and Trend Report 2014, relatório da Europol** – especializada na produção de estudos sobre a promoção de segurança na União Europeia -, mostra que o tipo de atentado terrorista predominante na UE é o separatista, muito a frente do religioso, inclusive na França. Mas, como nas últimas décadas, os espetáculos mais sangrentos foram comandados pelos grupos fundamentalistas islâmicos, associou-se genericamente ao Islã e aos muçulmanos a imagem de violência e radicalismo ameaçador. A principal teoria para explicar os ataques de cunho religioso é de um ciclo: o terrorismo aumenta o preconceito, que alimenta a intolerância, que estimula o radicalismo violento e, assim o postulado iluminista de que ‘as ideias devem brigar, não os homens’ vai ficando de lado.

Por que o terrorismo islâmico atinge tão violentamente o Ocidente? Quais são os princípios e interpretações religiosas em que se baseiam os seus perpetradores?

Em 2014, de acordo com os analistas da Council on Foreing Relations (CFR), mais da metade das mortes causadas por estes atos tiveram autoria das quatro maiores facções terroristas do mundo: Estado Islâmico do Iraque e Levante (EIIL), Boko Haram, Taleban e Al Qaeda. Mais de 80% desses assassinatos se concentram em apenas cinco países: Iraque, Afeganistão, Paquistão, Nigéria e Síria. Para compreender a estrutura de formação destes grupos e como se dá a implantação forçada de um Estado Islâmico regido pela Sharia, vamos a alguns conceitos.

Definições

O termo estado islâmico não se refere a uma estrutura terrorista, como muitos pensam. Ele se refere aos Estados que adotaram o Islã – mais especificamente a Sharia – como o fundamento ideológico para a sua instituição política.

Sharia é o corpo da lei religiosa islâmica. É a estrutura legal dentro da qual os aspectos econômicos, políticos, familiares, sociais e de negócio – públicos e privados – da vida do adepto ao islamismo são regulados. Ou seja, não há separação entre a religião e o direito. Portanto, o líder do governo também é o líder religioso, sendo o responsável por aplicar as ‘Leis de Deus’.

O termo fundamentalista’ surgiu, justamente, para definir este tipo de ideologia política fundada na religião, que os grupos radicais usam como pretexto para controlar todas as esferas da vida da população.

Um estado islâmico pode ter mais de uma forma islâmica de governar: o de uma República Islâmica, para qualquer Estado-Nação que adotou o Islã como religião oficial; o de um Califado, para os sunitas; o de um Imamah, para os xiitas; ou o de um Estado Islâmico do Levante, como foi para os jihadistas iraquianos e sírios.

A diferença entre Califado e EIIL (ou ISIS – Islamic State of Iraq and Síria): o Califado é uma forma de governo que tem como chefe de Estado o Califa, que representa a imagem de sucessor do profeta Maomé, mas limita seu governo aos muçulmanos dentro das fronteiras do seu país. O chefe de governo do Estado Islâmico do Iraque e da Síria também representa o sucessor do profeta, entretanto, afirma autoridade religiosa sobre todos os muçulmanos do mundo e almeja tomar o controle de outras regiões predominantemente islâmicas.

Apesar de os quatro grupos terroristas citados acima terem semelhanças ideológicas e táticas, um erro muito comum do ocidente é tratá-los como se fossem todos iguais e agissem em conjunto.

O Taleban ou Talibã é um grupo político que nasceu pra expulsar a ocupação soviética no Afeganistão e Paquistão. Ele é provincial, ou seja, se limita a sua região e não tem nada a ver com os ataques ao ocidente.

O Talibã, no entanto, é aliado da Al Qaeda, que atua em vários países e pretende instaurar um regime fundamentalista islâmico e eliminar a influência ocidental em todos os países muçulmanos, assim como EIIL – que atua principalmente no Iraque. Para isso, incita a jihad (guerra santa) global para a criação de uma nação única muçulmana regida pela Sharia.

O Boko Haram (que se traduz como “educação ocidental proibida”) é o braço direito da Al Qaeda na África. Ele prega uma versão do Islã que proíbe que os muçulmanos tomem parte em qualquer atividade política ou social relacionada com a sociedade ocidental. Isso inclui votar em eleições, vestir camisas e calças ou receber uma educação secular. Para o grupo, os culpados pela falta de pudor das mulheres, pela prostituição e por outros vícios são os cristãos com sua cultura ocidental de tentar ensinar algo às mulheres. Seu objetivo, assim como os dos outros grupos, é consolidar a Nigéria, somente, como um estado islâmico.

Como esses grupos atuam hoje em dia

Atualmente, a globalização facilitou a circulação de pessoas e informação, alterando drasticamente a natureza e grau de ameaça. O uso de internet torna possível criar estruturas de controle e comando virtuais. Estes quatro grupos, Al Qaeda, Talibã, Boko Haram e EIIL, formam um complexo terrorista, no qual há um sistema de financiamento das atividades e disponibilidade de abrigo uns com os outros. Talvez o único que ainda não se beneficie desse arranjo seja o Boko Haram, por ser o mais novo e ter, ainda, como fonte primária de renda saques, assaltos a bancos e pagamento de resgates. Mas apesar de ser o mais novo, já é considerado o mais perigoso do ano de 2015, tendo causado mais de 2.000 mortes no ataque à cidade de Baga, no norte da Nigéria. O grupo nasceu em 2002, mas não se envolveu com estratégias terroristas até 2009, quando se radicalizou. Desde então, matou 15.000 pessoas, sendo 10.000 só em 2014, o que levou a Nigéria a ter 1,5 milhão de refugiados.

Neste período, o grupo pode usar toda a sua criatividade para chamar a atenção do mundo das maneiras mais absurdas e desumanas. Saqueou cidades, matou os homens, estuprou as mulheres e as levou como escravas, matou uma mãe durante o parto, crucificou cristãos em praças públicas, queimou pessoas vivas, esquartejou crianças em vídeos e as que não matou, colocou para carregar as cabeças dos decapitados. Parte das vítimas que conseguiram fugir pelo lago Chade morreu afogada e a outra parte, que alcançou a ilha do outro lado, morreu de malária e, por último, de fome, pois não restou ninguém para resgatá-los. O ataque à Baga, o pior dos episódios desse show de horrores, foi quatro dias antes do mundo “ser Charlie”.

As Raízes do Problema

Os sobreviventes do atentado à Charlie Hebdo puderam mobilizar quatro milhões de pessoas no seu canto de luto: “Not Afraid”. Por uma noite, a Cidade das Luzes se apagou em solidariedade às 14 vítimas. A maioria dos que morreram em Baga e em tantos outros lugares na África e Península Arábica nunca terão sequer uma lápide com seus nomes.

[caption id="attachment_2627" align="aligncenter" width="602"] “A questão não está em impedir que uma bomba exploda uma cidade, mas em impedir que, em alguns países, a melhor opção de sobrevivência para um jovem seja a de se juntar a um grupo terrorista … “[/caption]

A tragédia na França deveria motivar a visibilidade e estimular a compreensão dos motivos, para que os olhos da mídia fotografassem mais o berço das revoltas, em vez de apenas fazê-lo para o desabafo delas.

A proposta aqui não é a comparação numérica de mortes causadas pelo terrorismo como premissa, o que conduziria à interpretação errada de que a morte de 14 franceses é menos relevante que a de milhares de nigerianos. Mas devíamos tratar o tema com igual importância para quaisquer povos ou locais e deve ser compreendido a partir de suas causas.

A questão não está em impedir que uma bomba exploda uma cidade, mas em impedir que a melhor opção de sobrevivência para um jovem nigeriano seja a de se juntar a um grupo terrorista, pois nele encontrou abrigo e consolo para sua revolta com o mundo. Se optar por não se render ao crime, talvez este jovem dure até os 40 anos. Talvez.

Portanto, o terrorismo, independente da ideologia que o inspira – nacionalismo, política ou fé – não é um ato de violência vazio. Tem um significado muito maior que a mensagem que seus líderes passam em seus vídeos. Ele representa a diferença entre os povos, o oposto de liberdade, igualdade e fraternidade. Então, enquanto as pessoas se envolvem em debates sobre ser ou não ser Charlie, acreditar em Cristo ou Maomé ou em nenhum dos dois, nos distraímos do problema real da desigualdade entre os povos e exércitos são formados – tanto por nativos destas regiões, quanto pelos que aderem por convicção. Em reunião da ONU, falaram em uma possível população de 50.000 jovens que se enquadram em perfis de grupos terroristas. Os países devem aprender que resolver apenas diferenças sociais internas já não é  o suficiente. E quando as instituições falham, a sociedade volta a ser primitiva por necessidade. Matam e morrem como selvagens. Investir em melhores condições de vida nas regiões onde ela já está inviável deve entrar no balanço global, como investimento e não como gasto.

Lara Siqueira Oliveira


*Dado retirado da IEP (Instituto para Economia e Paz)                                                                                                 **Europol: European Union’s Law Enforcement Agency
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