O universo paralelo do STF

No dia 4 de maio de 2000, o então Presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou o que viria a ser uma importante parte do seu legado ao país: a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Com a Lei, basicamente, a administração pública ficava impedida de gastar além daquilo que conseguia arrecadar via impostos. Assim, foram criados uma série de mecanismos para evitar irresponsabilidades de gestores públicos, além de meios para garantir o ajuste das despesas do governo ao longo do tempo.

Recentemente, o Brasil teve uma presidente cassada por desrespeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal. O artigo 36 da lei proíbe a operação de crédito entre um banco público e o governo que o controle. Em outras palavras, o governo não pode emprestar dinheiro de banco público para bancar suas próprias despesas. Foi exatamente o que Dilma Rousseff fez, ao usar recursos da Caixa Econômica Federal para pagar programas como o Minha Casa, Minha Vida e o FIES, sendo punida com o impeachment.

No entanto, mesmo com a LRF em vigor há quase 20 anos e com uma presidente cassada por desrespeitá-la, a responsabilidade fiscal ainda é algo muito distante da realidade brasileira. O governo federal vem tendo seguidos déficits primários desde 2014, com o Brasil perdendo o grau de investimento em 2015. As previsões mais otimistas dão conta que só voltaremos a ter superávit primário no orçamento em 2022. Até lá, certamente, o governo será muito pressionado a afrouxar o Teto de Gastos, visando acomodar um crescimento de despesas, mesmo com a dívida pública subindo rapidamente para um patamar de quase insolvência.

A situação do governo federal é complicada, porém não chega nem perto da gravidade em que se encontram as finanças dos estados brasileiros. No último dia 14, o Tesouro Nacional divulgou um dado alarmante: 17 estados brasileiros não tem condições de pagamento, ou seja, não podem contrair empréstimos com garantia do Tesouro Nacional.

A penúria fiscal dos estados deve-se, em grande parte, à evolução das despesas com pessoal, tanto com aqueles ainda na ativa, como os aposentados. Conforme o gráfico abaixo, do Tesouro Nacional, é possível observar o crescimento substancial nas despesas dos estados com pessoal entre 2011 e 2018.

O crescimento das despesas com pessoal se reflete na composição dos gastos estaduais. Boa parte dos estados está direcionando uma fatia gigantesca de sua Receita Corrente Líquida para pagamento de pessoal, conforme podemos observar no gráfico abaixo, também do Tesouro Nacional. Em alguns casos, como Tocantins e Minas Gerais, esse gasto consome 80% da Receita Corrente Líquida.

A irresponsabilidade de governantes e gestores passados, que abusaram das contratações e fizeram maquiagens contábeis para disfarçar a explosão no gasto com pessoal recai sobre as costas dos atuais governadores. Estados como Rio Grande do Norte, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro convivem com atrasos de pagamento dos salários dos servidores.

O que poderia aliviar, e ajudar os atuais gestores na busca pelo reequilíbrio fiscal e ajuste das contas públicas, é um dispositivo da própria Lei de Responsabilidade Fiscal. Trata-se do parágrafo 2º do artigo 23 da Lei, que prevê redução da jornada de trabalho dos servidores, com redução proporcional do salário, caso as despesas com pessoal ultrapassem o patamar de 60% da Receita Corrente Líquida.

Todavia, há 17 anos, em maio de 2002, o plenário do Supremo Tribunal Federal concedeu uma liminar para suspender esse dispositivo, alegando ser inconstitucional, visto que o salário de servidor não pode ser reduzido. Após longo tempo, havia expectativa de que o plenário atual da Suprema Corte revisasse aquele posicionamento, dada a atual conjuntura enfrentada pelos gestores. Mas, na última semana, o plenário do Supremo decidiu manter aquele entendimento de 2002, e declarou o dispositivo inconstitucional.

Desta forma, o ajuste fiscal nos estados torna-se praticamente impossível, pois os governadores estão de mãos atadas em relação ao principal elemento da despesa pública. Também terão dificuldades para obter novos refinanciamentos de dívida, dada a sua capacidade de pagamento. Enquanto isso, seguirão enfrentando resistências de políticos locais e corporações do serviço público contrários à privatização de empresas públicas, uma das poucas saídas para retirar os estados do atoleiro fiscal temporariamente.

Atrasos no pagamento de salários serão cada vez mais comuns, tendo em vista que a despesa, já bastante elevada, continua crescendo vegetativamente ano após ano. As despesas com inativos também não devem ter alívio tão cedo, pois estados e municípios não estão incluídos na reforma da Previdência prestes a ser aprovada pelo Congresso.

Diante de toda essa conjuntura, chama atenção a completa desconexão entre o STF e a realidade. Como é possível alegar um desrespeito aos direitos adquiridos dos servidores a possibilidade de reduzir salário e jornada de trabalho, se a realidade é de atrasar salários indefinidamente?

Ao que parece, os componentes da nossa Suprema Corte vivem em um universo paralelo, na qual não existem restrições orçamentárias e todos os direitos previstos no texto constitucional são garantidos, independentemente da escassez de recursos públicos.

Ao lado das demais corporações do serviço público, o Judiciário tem sido um dos grandes obstáculos para a plena recuperação fiscal do país. Além de decisões esdrúxulas como essa, os sucessivos aumentos generosos de salário e manutenção de mordomias e privilégios, demonstram o descompromisso com o reequilíbrio das contas públicas. Nem quero imaginar o que poderão fazer com a reforma da Previdência…

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