Obamacare vs Trumpcare e os dilemas das políticas públicas

No Brasil, está na Constituição:

“A saúde é direito de todos e dever do Estado”.

Não é assim nos Estados Unidos. Mal comparando, nos EUA a saúde funciona com o transporte no Brasil, ou seja, o governo regula mais de perto, oferece subsídios para os mais pobres ou mais idosos, mas no final das contas cada indivíduo é responsável por arcar com os seus gastos. Quem não tem ajuda no governo e não tem dinheiro para a passagem no Brasil não anda de ônibus, nos EUA quem não tenho ajuda do governo, seguro saúde ou (muito) dinheiro no bolso, não tem acesso aos serviços de saúde.

O resultado disso é que antes da criação do Affordable Care Act (ACA) – popularmente conhecido como Obamacare – um percentual de 15 a 20% da população dos EUA não tinha cobertura de saúde. Se essa pessoa ficasse doente ela teria que pagar os custos da medicina mais cara do mundo do próprio bolso. Por esse motivo, os gastos com saúde são a causa mais comum de pedidos de falência pessoal nos EUA.

Em termos bem resumidos, o Obamacare tinha como objetivo aumentar o número de pessoas com cobertura de seguro saúde. Para isso, foram criadas regras mais restritivas para os serviços de seguro, aumentou-se os subsídios do governo para as pessoas que tinham dificuldade para pagar, criou-se uma multa para as pessoas que não tem seguro e um sistema eletrônico onde as pessoas podem facilmente comparar os serviços e escolher a melhor opção para elas. Com isso, o número de pessoas sem cobertura caiu cerca de metade. A mesma redução também foi percebida no número de pedidos de falências pessoais, 770 mil em 2016 contra mais de 1.5 milhão de pessoas em 2010.

Mas é claro que como toda política pública, o Obamacare tem um custo. Para bancar o programa o governo Obama aumentou o impostos das empresas que se beneficiariam da medida, ou seja, não só as próprias seguradoras, como também empresas que oferecem serviços e equipamentos médico que teriam mais clientes. Houve também um aumento no imposto de renda dos americanos com faixa mais alta de renda, aqueles que ganham mais de 250 mil dólares por ano. Além disso, com regras mais rígidas, o seguro saúde ficou mais caro para uma parcela da população. Como os seguros não podem mais oferecer planos muito simples (com cobertura muito baixa), nem recusar pacientes com condições pré–existentes, nem cobrar mais do que 3 vezes dos idosos, entre outras restrições, o preço subiu especialmente para a classe média jovem e saudável. Além disso, obrigar quem não tem seguro a pagar uma multa também não foi uma medida exatamente popular.

Tudo isso teve um custo político bastante alto para o partido Democrata, que perdeu o controle do congresso depois da implementação do Obamacare. Controlado pelos republicanos, o legislativo vetou mais de 50 leis que visavam regulamentar o Obamacare. Com isso, acabar com o programa, chamado de “desastre”, foi uma das principais propostas de campanha de D. Trump. Para começar a cumprir o que prometeu, uma de suas primeiras medidas como presidente foi estancar, onde fosse possível legalmente, a implementação do programa do seu antecessor.

Acontece que as pessoas se acostumaram com os benefícios do Obamacare e muitos não estão contentes em abrir mão das vantagens do programa. Consequentemente, acabar com o Obamacare agora pode trazer para os republicanos o mesmo custo que a sua implantação trouxe para os democratas nas eleições de 2010. Daí a dificuldade de Trump em aprovar o seu programa para a saúde.

Metade dos cidadãos dos EUA recebem seguro saúde através da empresa para a qual trabalham. Esses estão muito satisfeitos com o Obamacare. Com as novas regras os seguros passaram a ser obrigados a cobrir filhos dependentes até 26 anos, cobertura para gastos com saúde visual, dentária e mental, vacinas, medicamentos e anticoncepção. Tirando os anticoncepcionais, os republicanos não querem mexer nesses benefícios e gerar protesto em metade dos eleitores. Porém, de novo, todo benefício tem um custo. Neste caso, o custo vem em forma de imposto: as grandes empresas que não arcam com o seguro saúde de seus empregados tem um acréscimo substancial na sua alíquota de imposto, algo que contraria a religião dos republicanos.

Há também uma briga entre o governo federal e os estados. Ao aumentar a cobertura de saúde para americanos mais pobres através do Medicaid (um subsídio do governo para os cidadãos considerados abaixo da linha da pobreza) o governo federal assumiu um percentual importante dos gastos públicos com saúde. A proposta do Trump inclui cortar esses subsídios e transferir a responsabilidade para os Estados com uma transferência menor de recursos do governo federal. Isso não só iria reduzir substancialmente o número de cidadãos beneficiados como criaria um problema fiscal para os Estados. Como era de se esperar, muitos governadores e senadores americanos dos Estados mais prejudicados não estão contentes com a mudança.

Em resumo, os republicanos estão tendo que enfrentar a realidade dos custos e dificuldades de “implodir” como Trump quer o Obamacare. A cada nova negociação política, como a que aconteceu no senado no mês passado as propostas de mudanças ficam mais brandas. O desafio é encontrar um equilíbrio fino entre criar uma proposta que possibilite aos republicanos dizerem que finalmente acabaram com a tragédia do Obamacare sem perder um número significativo de eleitores que estão satisfeitos com os benefícios que receberam do programa.

Renata K. Velloso Médica, formada em administração pública, vive e trabalha na Califórnia.

Referências

http://time.com/money/4765443/obamacare-bankruptcy-decline/ http://www.latimes.com/projects/la-na-pol-obamacare-repeal/ http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMsb1706645?query=featured_home& http://www.newyorker.com/magazine/2017/03/06/trumpcare-vs-obamacare

 
Sair da versão mobile