Os meses de maio no Brasil: o delator falastrão (parte 2)

“Tem que manter isso, viu?”

Pronto. Se o leitor deu aquela risadinha de canto de boca ao ler a frase acima, é porque já sabe exatamente do que iremos abordar no doído maio de 2017. Quem tinha dinheiro aplicado em ações como PETR4, JBSS3 ou mesmo qualquer participação no mercado acionário brasileiro naquele mês, até hoje se lembra com detalhes, incluindo os dois escritores dessa sequência de artigos.

Cenário:

“… meu governo viveu nesta semana seu melhor e seu pior momento. Os indicadores de queda da inflação, os números de retorno ao crescimento da economia e os dados de geração de empregos criaram esperança de dias melhores. O otimismo retornava e as reformas avançavam no Congresso Nacional. Ontem, contudo, a revelação de conversa gravada, clandestinamente, trouxe de volta o fantasma de crise política de proporção ainda não dimensionada.”

Esse trecho da declaração de Temer, proferida no dia seguinte do vazamento do áudio, é uma excelente forma para começarmos a compreender o cenário da época.

 

Vamos aos números. Separamos alguns dados para que o leitor possa entender um pouco mais sobre o que estava acontecendo com a economia naquele período.

[caption id="attachment_12419" align="aligncenter" width="599"] Figura 1 – IPCA de maio/2017 acumulado dos últimos 12 meses (Fonte: Relatório Focus)[/caption]   [caption id="attachment_12420" align="aligncenter" width="480"] Figura 2 – Variação do PIB com ajuste sazonal (Plotados pelos autores com dados do Valor Econômico)[/caption]   [caption id="attachment_12421" align="aligncenter" width="546"] Figura 3 – Taxa de desocupação em 2017 (Fonte: Matéria do Nexo Jornal)[/caption]

Pelas três figuras acima, percebemos que a fala do presidente realmente procedia. A inflação estava em níveis bem mais baixos, o PIB havia cessado um violento período de recessão e a taxa de desocupação estava no início de um período de queda após o pico em março de 2017.

Mas havia um Joesley Batista vestido de cisne negro no meio do caminho.

O que aconteceu?

Na noite do dia 17 de maio, o colunista Lauro Jardim, do jornal O Globo, lançou uma nota que acertou em cheio a “estabilidade” no Planalto. A nota, que logo virou um plantão ao vivo na Globo e em demais emissoras de TV, relatou a delação escandalosa feita pelos irmãos Joesley e Wesley Batista, donos da holding J&F, controladora da maior produtora de proteína animal do mundo, a JBS. Segundo a delação, Joesley havia se encontrado com Temer em março daquele ano, e disse ao presidente que estaria pagando pelo silêncio do ex-deputado Eduardo Cunha.

Numa conversa entre Temer e Joesley, o empresário fala sobre sua relação com Cunha. Então o presidente diz a frase comprometedora e que se tornaria um jargão: “Tem que manter isso, viu?”. A conversa foi gravada sem o consentimento de Temer, que mais tarde viria a chamá-la de clandestina e adulterada, além de negar seu conteúdo e alegar que a fala teria sido tirada de contexto. Na continuação da conversa, Joesley diz que tinha uma pendência da J&F para resolver com o governo e o presidente manda-o procurar Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR), um de seus homens de confiança. Rocha Loures, por sua vez, em outra ocasião, fora filmado pela Polícia Federal saindo de uma reunião com Ricardo Saud, diretor da JBS, em um restaurante na cidade de São Paulo, correndo (em uma cena tragicômica) com uma mala de R$ 500 mil que, segundo indícios, seria para Michel Temer.

Em sua íntegra, era a delação – ou uma das – que tinha todos os componentes de uma bomba atômica, sendo o Planalto seu alvo.


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Era a estreia de uma “ação controlada” na Lava Jato. Resumidamente, seria uma forma de obter provas em flagrante, mas com a ação da Polícia Federal em um momento posterior. Ou seja, além dos diálogos, as entregas de malas também foram filmadas pela PF, como forma de montar uma situação que comprovasse os ilícitos que o delator estivesse apresentando.

Como surrealismo pouco é bobagem quando o assunto é o nosso país, ainda haveria uma nova dose de escárnio: com o efeito bombástico sobre o dólar (que disparou) e o mercado acionário (que desabou), os irmãos Batista foram acusados também de insider trading – ou seja: sabendo de uma informação privilegiada (o momento em que essa delação premiada sairia e explodiria com a estabilidade até então observada), executaram compras de dólares e operações de venda das ações de sua própria empresa. No fim das contas, o resultado com isso foi inusitado: os empresários também foram acusados do crime de insider trading, sendo que  , que viria a acontecer no segundo semestre, foi a primeira no Brasil por esse crime.

Bem resumidamente, a Lei 6.385/1976,[1] com a redação dada pela Lei 10.303/2001,[2] previu o artigo 27-D, que tipifica a conduta de “Utilizar informação relevante ainda não divulgada ao mercado, de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo, capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiro, com valores mobiliários”. Aplicando ao caso em questão, a Polícia Federal constatou que houve venda de ações da JBS pelos irmãos Batista – eles estavam cientes da enorme volatilidade a qual o papel estaria exposto – antes da divulgação do conteúdo da delação os livrou de um prejuízo da ordem de R$ 138 bilhões. Para completar, no dia anterior da delação vir à tona, a JBS negociou US$ 474 milhões com a moeda a R$/US$ 3,11. Em suma, essa movimentação gerou um lucro para os irmãos de mais de U$ 100 milhões, sendo que o crime está exatamente na utilização de vantagem indevida. E quanto aos acionistas que mantiveram sua exposição ao papel, ou seja, todos os outros… Bem, a esses restou amargar um prejuízo grande o suficiente para batizar o dia 17 de maio daquele ano de “Joesley Day”.

Por que aconteceu?

Houve muita especulação sobre isso até hoje, e nunca foi nossa intenção ser os detentores da verdade. As teorias principais circularam em torno do fato de que, já tendo o conhecimento sobre os pesados efeitos negativos esperados após uma divulgação bombástica como essas, os irmãos Batista já teriam passado o controle das operações da JBS para os EUA. Isso de fato ocorreu e, no capitalismo, a mudança de base central de controle de empresas está sujeita a alterações conforme decisões da própria empresa. Porém, o lado curioso foi isso ocorrer logo antes desta delação tornar-se disponível (assim como o também estranho comprar de dólares e vender de ações). É coincidência demais – e, quando a esmola é grande demais, o santo desconfia.

O que veio depois?

O dia seguinte foi de imensa tensão, em diversos aspectos. No mercado, o dólar disparou e as ações derreteram. Pela primeira vez, desde 2008, o circuit breaker  – uma pausa de 30 minutos para acalmar os ânimos, algo que só ocorre quando mais de 10% de queda no índice é observado em um mesmo dia – do Ibovespa foi acionado.

O final do dia se aproximava e a tensão ficava ao redor de Temer. Que decisão o presidente iria tomar diante de algo que parecia ser tão categórico? Foi então que ele veio a público e, em um pronunciamento que também acabou ficando marcado, mandou um sonoro “não renunciarei! Repito: não renunciarei!”.

Não apenas por força de vontade e de fala, mas também por um apoio considerável do congresso apesar do desgaste imenso após o episódio, Temer conseguiu posteriormente barrar a inserção de duas denúncias de investigação sobre o assunto. Caso alguma delas tivesse sido aprovada, haveria um afastamento do presidente e o cenário ficaria ainda mais instável.

Apesar do aparente retorno a um patamar de estabilidade, a sequência que tem sido observada pelo governo Temer sinaliza que, embora não tenha saído, é como se seu mandato já tivesse se encerrado.  Seu índice de aprovação popular está em um dígito há meses e reformas importantes que tinham certo potencial até de aprovação (como a da previdência) acabaram ficando em segundo plano diante das tentativas de sobreviver a incursões de novas denúncias.

No fim das contas, Joesley Batista, o homem da delação-bomba, acabou sendo preso em setembro de 2017.

Vamos analisar três gráficos para visualizar um pouco melhor como o mercado reagiu a maio de 2017.

Primeiro, o gráfico de JBSS3 no período de 2 anos.

[caption id="attachment_12422" align="aligncenter" width="453"] Figura 4 – Gráfico de JBSS3 (Fonte: https://br.advfn.com/bolsa-de-valores/bovespa/jbs-JBSS3/grafico)[/caption]

O gráfico fala por si só. O período em destaque mostra o reflexo que a divulgação do conteúdo da delação teve no valor de mercado do papel. Devastador.

O próximo gráfico mostra a influência que o evento teve no Índice Ibovespa.

[caption id="attachment_12423" align="aligncenter" width="485"] Figura 5 – Gráfico do Índice Ibovespa (Fonte: https://br.advfn.com/bolsa-de-valores/bovespa/ibovespa-IBOV/grafico)[/caption]

Pela figura 5, percebemos que o “Joesley Day” não apenas acertou o papel JBSS3 em cheio como também reverberou no desempenho do Índice Bovespa, que chegou a cair 8,8% no dia 18 de maio de 2017, sendo essa a maior baixa diária dos últimos 9 até aquele dia. Em outras palavras, a Bovespa chegou a perder em um só dia o equivalente a R$ 219 bilhões em valor de mercado.

Por último, temos aqui o gráfico do dólar no mês de maio de 2017.

[caption id="attachment_12424" align="aligncenter" width="639"] Figura 6 – Gráfico da cotação do dólar até meados de maio (Fonte: https://g1.globo.com/economia/mercados/noticia/dolar-fecha-em-forte-alta-em-dia-de-nervosismo-pelo-cenario-politico-bc-interfere.ghtml)[/caption]  

Claramente percebemos a relação do salto de 8,15% dado pelo dólar com o dia em que essa subida se sucedeu. É interessante também relacionar esse gráfico com o crime de insider trading dos irmãos Batista para uma melhor compreensão do esquema elaborado pelos empresários.

Ao final desse mês, ficou claro o seguinte: é impressionante o poder que grandes empresários brasileiros exercem na política. Magnatas como Joesley Batista, Marcelo Odebrecht e Eike Batista deram claras demonstrações que, se quiserem, possuem influência suficiente para abalar seriamente as estruturas da República. A relação promíscua entre empresários e governo é interessante para ambos. Por parte do poder público, ganha-se apoio, mesmo que ilícito. O empresariado, por sua vez, ganha fácil acesso a crédito barato, proteção ao seu market share através da manutenção e aumento de diversas barreiras a entrada e enorme vantagem competitiva em função disso tudo. Eis o famoso “capitalismo entre amigos”, aquele que fere cruelmente os interesses republicanos.

É assustador também perceber que, mesmo preso, Eduardo Cunha ainda conseguia exercer enorme influência nos acontecimentos.

Como Tom Jobim bem dizia, nosso país não é para amadores. Se, por um lado, temos grandes conglomerados econômicos em um verdadeiro capitalismo de laços com o governo, setores pulverizados e de organização bastante difusa como os caminhoneiros conseguiram deixar de joelhos o governo já fragilizado de Temer. Mas, sem spoilers, aguarde a terceira e última parte desta sequência de artigos: 2018 e a greve dos caminhoneiros.

Eduardo Scovino

Estuda Engenharia Química na UERJ e é outro economista de coração. Já trabalhou em Operação no meio fabril, mas acabou se rendendo ao jargão “It’s the Economy, stupid!”. Dentre as principais causas que defende, estão a Economia de Mercado, a Destruição Criativa, Finanças Pessoais e Reciclagem. Acredita ainda que é possível uma solução que englobe essas duas últimas. Nas horas vagas, também é remador, frequentador de shows de metal e está sempre pronto para uma roadtrip.
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