Para onde vão as democracias?

Convidados Especiais | Guilherme Casarões

Quando o ditador tunisiano Zine al-Abidine Ben Ali abandonou a presidência em janeiro de 2011, após um mês de protestos populares, acreditou-se que sua queda poderia representar o pontapé inicial de um amplo processo de democratização do mundo árabe. A deposição do egípcio Hosni Mubarak, um mês mais tarde, confirmava as expectativas. Segundo esta leitura, o povo árabe havia se livrado dos grilhões do nacionalismo autoritário e do islã radical para abraçar a democracia e os direitos individuais. Iniciava-se, assim, a “primavera árabe”.

Ao fim de 2011, até mesmo as mais sólidas ditaduras árabes haviam sofrido os efeitos sísmicos das revoltas populares. Se o ditador buscasse resistir, como foi o caso do líbio Muammar Kadaffi, há nada menos que quatro décadas no poder, o povo poderia até contar com a ajuda das prestativas potências ocidentais e de seus instrumentos libertadores, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

Estávamos diante de uma nova onda democrática, semelhante àquela que varrera o Leste Europeu nos estertores da União Soviética, à que sepultara os fascismos mediterrâneos na década de 1970 ou à que colocara fim aos regimes militares na América Latina dez anos depois.

O professor Samuel Huntington, na clássica obra “A Terceira Onda” (Ed. Nova Fronteira, 1994), já havia escrito a respeito do processo de democratização que transformou o panorama internacional no último quartel do século XX. Da Revolução dos Cravos de 1974, que marcou o fim da ditadura salazarista em Portugal, até o fim daquele século, o número de regimes democráticos saltou de 39 para 120. Superados os constrangimentos ideológicos do nacionalismo ou do comunismo nos países em desenvolvimento, nada menos que 60 por cento dos países do mundo adotou, ao menos em suas cartas magnas, instituições livres e representantes eleitos.

O voto tornou-se o ativo mais importante em busca da cidadania.

A narrativa apresentada acima, embora sedutora e parcialmente correta, cai por terra com as imagens de milhares de sírios indo às urnas assegurar a “legitimidade democrática” da manutenção de seu líder, Bashar al-Assad, no poder. As fotos, algumas delas retratando cidadãos aparentemente orgulhosos do exercício do sufrágio, obliteram as mais de 160 mil vidas ceifadas numa guerra civil que já se arrasta por três anos e meio. Escondem a crescente repressão autoritária a que os povos árabes estão sendo submetidos em todos aqueles países em que partes da população ousaram sair às ruas contra seus governantes. Desviam a atenção das violações sistemáticas de direitos humanos que ocorrem não somente na Síria ou no Oriente Médio, mas também em países africanos e latino-americanos que, a rigor, possuem constituições democráticas e presidentes eleitos.

Bashar-al-Assad, ditador da Síria, votando nas polêmicas eleições de seu país. Foto: AFP

Em suma: a retórica em prol da democracia, que se tornou um mantra nos países ocidentais seguros de sua superioridade moral ou política, está criando regimes democráticos superficiais, ocos, que se exibem ao mundo como portadores de um valor elevado, mas inexistente. Putin sempre poderá dizer-se presidente de uma Rússia democrática, que defende a anexação de regiões de outros países pela vontade inalienável de seus povos oprimidos. Ahmadinejad blindou-se de críticas ao programa nuclear iraniano alegando tratar-se de soberania popular – ganhou à época de sua reeleição, inclusive, salvo-conduto de Lula, que desqualificou a oposição ao presidente comparando-a a torcidas de futebol. Plebiscitos, em vez de manifestação da cidadania direta, transformaram-se em poderosos instrumentos de manobras políticas em alguns de nossos vizinhos.

E não se trata de algo escancarado, beirando a hipocrisia, como em Cuba, no Iraque de Saddam Hussein ou na Coreia do Norte, com seu regime dinástico, em que os autocratas reelegiam-se com cem por cento dos votos. Nos dias de hoje, a túnica pseudo-democrática é tecida de maneira mais sofisticada. Envolve a construção de oposições de carne-e-osso, mesmo que elas, no processo, se desmanchem no ar. Busca ludibriar os cidadãos para que acreditem na legitimidade de sua participação. Constroi uma narrativa midiática, com direito a comentários políticos, registros fotográficos em abundância, especulações sobre a vida e a obra dos contendores.

Em casos mais sutis, como nas eleições do Parlamento Europeu, o espírito democrático está sendo minado de dentro para fora. A radicalização política, particularmente visível nas agremiações de extrema-direita de colorações nacionalistas e xenófobas, já vinha recrudescendo há uma década em reação a uma suposta ameaça dos imigrantes às sociedades tradicionais europeias. Com a unidade do bloco europeu fraquejando diante das turbulências econômicas, os partidos populistas de direita vêm ganhando um espaço desproporcional ao absurdo de algumas ideias que representam. Com o perdão da analogia histórica, há algo de semelhante com o retrocesso democrático que a própria Europa viveu nos anos que sucederam a crise de 1929.

Enquanto esperávamos, ansiosos, pela quarta – e talvez derradeira – onda democrática, acabamos sendo tomados de surpresa pelo refluxo da onda anterior. Desta vez, não estamos falando de generais fechando o Congresso, e sim de um simulacro de eleições e instituições que chegam até a enganar o espectador desavisado. Mas as imagens de eleitores e urnas não devem deixar dúvidas de que, se a democracia não for reinventada, reformada em sua substância e não nos procedimentos estéreis, as mesmas forças que aparentemente defendem o voto serão aquelas que colocarão em risco seu futuro.

Guilherme Casarões Professor de Relações Internacionais das Faculdades Rio Branco e da FGV Doutorando e mestre em Ciência Política pela USP

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