O mundo da gestão vide de modismos e, por motivos compreensíveis, os governos adoram copiá-los para vender uma imagem de modernidade. Não surpreende que a chamada “meritocracia” tenha se espalhado como fogueira no setor público no Brasil na última década. O governo Sérgio Cabral adotou em larga escala no Rio de Janeiro. O mesmo aconteceu com Aécio Neves em Minas Gerais e Geraldo Alckmin em São Paulo. Hoje parece raro o estado brasileiro que não tenha alguma política de “meritocracia”. Basicamente, a fórmula é composta por um “bônus” salarial vinculado ao atingimento de metas de desempenho. Porém, essa fórmula não vai mudar o baixíssimo patamar de resultados do setor público brasileiro. Tentamos parecer modernos, mas estamos nos enganando. Vejamos o porquê.
A mente humana tem dificuldade de lidar com características típicas de sistemas complexos. Organizações também são sistemas complexos, mas as ferramentas de gestão que orientam administradores públicos e privados, em sua maioria, ainda representam um paradigma superado. Nesse paradigma, os fenômenos organizacionais são vistos como lineares (e sujeitos quase que inteiramente às decisões do gestor maior), as organizações são dirigidas como se fossem máquinas e a complexidade é varrida para baixo do tapete.
Entretanto, a complexidade teima em reaparecer. Considere, por exemplo, as diversas tensões que existem em qualquer organização e que são estudadas sob a chamada teoria dos paradoxos. Toda organização precisa lidar com pressões que agem em sentido contrário: investir no longo prazo versus focar no dia-a-dia, abraçar o caos da mudança versus o falso conforto da ordem, aceitar pessoas com novas perspectivas versus integrá-las na cultura interna e assim por diante. Mas esse e tantos outros aspectos da complexidade na gestão de uma organização são usualmente ignorados em favor da visão falaciosa de mundo que o professor Phil Rosenzweig chamou de física organizacional, ou, em poucas palavras, a ideia de que gestão é simples e os resultados, previsíveis.
Toda organização precisa parecer moderna e essa necessidade é ainda mais aguda no setor público, em que os governantes precisam vender imagem para garantir seu capital político. São como duas camadas em constante tensão: a de fora, a do discurso, e a interna, a da realidade da organização. A tensão entre a organização real e a do discurso geralmente não é perceptível de fora, mas costuma causar danos em ativos e competências invisíveis, como a motivação dos servidores, a capacidade orgânica de inovação e outras capacidades essenciais de gestão.
Gestão não é simples. Porém, as ferramentas do paradigma linear ainda compõem o repertório de praticamente todos os gestores públicos e privados. Somente em 2013 o Peter Drucker Forum, um dos mais respeitados congressos de gestão do mundo, reconheceu que a ciência da Administração ainda não é capaz de lidar com a complexidade dos fenômenos com que se depara. Porém, visões erradas ou incompletas de mundo têm o mau hábito de persistir. Não espere o leitor que o repertório linear seja descartado tão cedo, em especial na administração pública brasileira, presa ao superado paradigma weberiano e, portanto, incapaz de pensar por si própria.
Mas qual o problema com o que eu chamo de meritocracia de balcão, adotada por uma infinidade de governos brasileiros? Em primeiro lugar, no curto prazo ela tende a funcionar e esse é um dos grandes problemas de intervenções simplistas em sistemas complexos. Considere a imagem abaixo, que ilustra o “gap” percebido entre o desempenho real e o desejado de um órgão público e o resultado das políticas de meritocracia aplicadas no Brasil. Quanto maior o gap, maior a necessidade por uma ferramenta de gestão da moda. Quanto mais “meritocracia” implementada, menor tende a ser o gap. Não é à toa, por exemplo, que o resultado dos estados brasileiros no Ideb, exame nacional da educação básica, tem sido crescente nos últimos anos. Afinal, boa parte deles hoje recompensa seus professores com bônus por resultado.
Em segundo lugar, o problema com a meritocracia de balcão é que ela reflete a visão linear de que bônus = desempenho, ignorando os demais efeitos gerados no sistema, em especial os efeitos sobre a motivação humana comprovados por décadas de pesquisa científica.
Porém, sistemas sociais complexos são chatos e tendem a resistir a políticas. Um exemplo claro e familiar ao leitor é o fracasso da chamada guerra às drogas, empreendida pelos EUA na Colômbia na década de 80. Iniciativas que fazem sentido superficialmente são as mais perigosas. Isso porque toda intervenção gera efeitos “colaterais” – que, na verdade, são apenas efeitos não previstos no modelo mental de quem tenta intervir. Outro exemplo: Será que a nova lei de terceirização vai aumentar a chamada pejotização na economia? Além de resistentes a políticas, os sistemas complexos são caracterizados por longos tempos de reação: ninguém espere, por exemplo, que o Rodoanel em São Paulo escape ao destino de outras iniciativas similares no mundo: ele ficará congestionado, mas o efeito levará algumas décadas para se materializar.
Para voltar ao exemplo da educação, o conjunto de evidências científicas sugere que o bônus por resultado em testes educacionais não funciona. O que acontece é que, com o bônus, o foco passa a ser os testes e tudo o que não é visto como contribuindo diretamente para esse resultado é marginalizado, como aulas de disciplinas não cobradas. Há relatos de fraudes e há o chamado gaming, que significa jogar com as regras do sistema. Por mais que um programa desses seja bem desenhado, o que nem sempre acontece, sempre haverá brechas. Acontece ainda o que os pesquisadores chamam de efeito de superjustificação, nome feio, mas que pode ser facilmente visualizado pelo leitor que tem filhos no seguinte exemplo. O que é preferível, seu filho ajudar nas tarefas domésticas porque internalizou a importância de sua colaboração ou porque isso vai se traduzir em um brinquedo novo ou em mais mesada? Quando recompensas externas passam a ser muito importantes, as evidências científicas sugerem que as pessoas deixam de fazer suas atividades porque vêm importância nelas. A motivação muda. É isso o que queremos, por exemplo, para os nossos professores?
A figura abaixo resume os efeitos de longo prazo da meritocracia de balcão. Leva tempo, vários anos, mas os efeitos aparecem. Na medida em que a administração pública deixa de privilegiar o longo, custoso e arriscado caminho de desenvolvimento de competências de gestão no setor público, o problema tende a ressurgir com toda a força, porque a solução de curto prazo tipicamente é um band-aid. Haja vista a crise pela qual passam os estados atualmente e a crônica incapacidade do Estado no Brasil de prover serviços em níveis satisfatórios.
A crítica à meritocracia de balcão não significa crítica à ideia de gerir mérito no setor público. Critica-se a dieta adotada, mas não a necessidade de perder peso. O que é necessário para enfrentar os diversos problemas brasileiros são intervenções sistêmicas e bem desenhadas, que levam tempo para produzir resultado e requerem um Estado com capacidades de gestão fortes, algo que é minado pelas soluções simplistas e pelo modelo weberiano predominante.
De fato, uma das competências que o setor público mais precisa é a correta avaliação de desempenho – que não é a tipicamente encontrada no setor privado, claramente maculada por efeito-halo e outros problemas, conforme as evidências científicas mais recentes. Lembre-se, o repertório tradicional de gestão é linear e boa parte dele, eu diria, protocientífico. Mas, voltando ao ponto, o setor público precisa saber reconhecer o bom desempenho, afastando maus profissionais. Precisa utilizar métricas como instrumentos de aprendizado organizacional. Um dos poucos pesquisadores que conseguiu resultados com uma intervenção de bônus por resultado no setor educacional, o economista Roland Fryer, aponta que uma boa escola depende de fatores que, eu diria, exigem uma forte capacidade de gestão, como professores bem qualificados, uso intensivo de dados e uma cultura de altas expectativas. Mas sabe qual foi a intervenção testada? Dê o bônus no começo do ano e o exija de volta se os resultados não forem alcançados… É a típica intervenção que pode dar resultado no curto prazo e em uma cultura que enfatiza winners versus losers, mas que não faz sentido em sistemas sociais complexos como o educacional.
Não se engane o leitor de que eu esteja defendendo o status quo. Um dos maiores problemas no setor público é o crescimento vegetativo de sua folha de pagamento, que reflete, em sua maior parte, o tempo de serviço dos servidores, mas não sua contribuição ou a complexidade das tarefas executadas. Esse modelo é insustentável para um Estado moderno. Mais ainda, o setor público precisa ainda fazer o difícil trabalho de medir corretamente resultados nos contextos em que atua. Por exemplo, na área tributária, o sucesso não vem de aumentos expressivos de arrecadação no curto prazo, que muitas vezes só alimentam quedas futuras de receitas, mas da diminuição do chamado gap tributário (diferença entre a arrecadação real e a potencial, refletindo o nível existente de sonegação) – uma medida que não é imediata e é trabalhosa para computar, exigindo inovação e capacidades técnicas que não são estimuladas no modelo weberiano de administração pública.
Termino com um comentário que ouvi outro dia de um experiente consultor de gestão americano. Ele dizia que há um ditado no mundo das consultorias naquele país: tente vender uma nova ferramenta no setor privado por dez anos. Se, depois desse prazo, a ferramenta não mostrar que funciona, está na hora de começar a vendê-la para o setor público.
Até quando continuaremos nos iludindo?
Hamilton Carvalho, Hamilton Carvalho, estuda sistemas sociais complexos. É doutorando em Administração pela FEA-USP, mestre em Administração pela mesma instituição, conselheiro da International Social Marketing Association e membro da System Dynamics Society