Como muitos já devem ter ouvido falar, o pedido de impeachment protocolado pelos juristas Miguel Reale Jr e Janaína Paschoal [1] contra a presidente Dilma Rousseff envolve as famosas manobras contábeis popularmente conhecidas como pedaladas fiscais. Vale ressaltar, antes de tudo, que não tenho no presente artigo nem a intenção, nem a capacidade, de discutir a validade jurídica do pedido – especificamente, se o recurso a tal instrumento fiscal tenha que referir-se ao mandato presente para embasar um pedido de impedimento do presidente, ou outros detalhes da Lei de Responsabilidade Fiscal. Deixemos isso aos entendedores da lei.
Tento, então, dar um pouco de luz ao debate explicando de que se tratam essas tais de pedaladas. Longe dos memes envolvendo Dilma, sua equipe econômica e algumas bicicletas, encontra-se o parecer por parte do Tribunal de Contas da União das contas do governo de 2014. De maneira simplificada, e fora das ciclo faixas do Haddad, uma pedalada é uma manobra fiscal executada pelo governo para adiar o pagamento de despesas a partir do empréstimo em bancos públicos para pagamento posterior. Tipo aquela pessoa preguiçosa, que empurra os problemas com a barriga para que a “futura pessoa” se encarregue de resolver. Já o TCU e um órgão independente de fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial [2]; ou seja, é a instituição responsável por fiscalizar os gastos do governo.
Todos os anos, o TCU analisa as contas do governo (grosso modo, o que o governo gastou e deixou de gastar, e como isso foi feito) afim de aprová-las ou rejeitá-las. Caso o TCU julgue ter encontrado alguma irregularidade no meio da contabilidade federal, e rejeite as contas, cabe ao Congresso a ratificação desta decisão, o que poderá embasar uma ação de impeachment.
No caso de 2014, o TCU não ficou contente com o que viu, e deu uma chance ao governo de explicar-se, antes que suas contas fossem rejeitadas, e seu futuro jogado aos leões raivosos do atual Congresso. Não convencido, o órgão recomendou em outubro do ano passado a reprovação das contas de 2014. Até agora, entretanto, nada fora concluído. A votação aguarda a indicação de novos integrantes da Comissão Mista de Planos, Orçamento e Fiscalização (CMO) no Senado, sem data definida. Isso fará com que o Congresso provavelmente julgue o impeachment da presidente sem concluir se rejeitou ou não suas contas de 2014 [3].
De volta ao plano econômico, longe de trâmites e burocracias contornáveis do nosso legislativo, resta explicar o que foi que Dilma e sua equipe econômica fizeram para despertar a rejeição de contas pelo TCU, algo que não ocorria desde 1937. Tudo começou quando o governo atrasou repasses do Tesouro Nacional para bancos públicos (Caixa Econômica, Banco do Brasil e BNDES) do dinheiro que seria usado para pagar benefícios sociais ou financiar investimentos com juros mais baixos (como bolsa família, seguro desemprego, crédito rural e subsídios para empresas). Então, na ausência do pagamento do Tesouro, esses bancos acabaram usando seus próprios recursos para honrar os programas estabelecidos; o que, na visão do TCU, representou um financiamento para seu controlador (no caso, o governo). E por que o governo fez isso? Simples, para fechar as contas.
Meio confuso, admito. De maneira simplificada, o governo notou que suas contas estavam assim “meio apertadas”, devido ao contínuo aumento de gastos; então, optou por não repassar dinheiro do Tesouro para os bancos públicos. Desta forma, estes usariam seus próprios recursos, e os programas do governo seriam honrados sem que suas contas fossem para o vermelho. Deste modo, o governo melhorava artificialmente a situação fiscal do país. Em outras palavras, evitava um déficit ainda maior em um passe de mágica. E, mais importante, em ano eleitoral.
Mas isso é proibido? Segundo a avaliação do TCU, sim, uma vez que a Lei de Responsabilidade Fiscal (aprovada em 2000) proíbe bancos públicos de emprestar a seus controladores – no caso, o governo, tanto para proteger a saúde financeira dos bancos, quanto para evitar que gastos sejam realizados fora do orçamento, pressionando a inflação. Mas qual o problema de emprestar dos bancos públicos? Se eles são públicos, não seria tudo do mesmo bolso? Grosso modo, sim. Porém, é como se uma pessoa decidisse tirar dinheiro do caixa de sua empresa, deixando-a no vermelho, para pagar uma dívida de jogo. É fácil entender porque isso não seria uma boa ideia, e não pegaria muito bem para os clientes de sua empresa, certo? É o mesmo caso do governo. Ao escolher não repassar os recursos do Tesouro, e endividar os bancos públicos, o governo apenas “tapou o Sol com a peneira”, empurrando seus próprios bancos para a pindaíba.
[caption id="attachment_6407" align="aligncenter" width="824"]E isso é novidade? Em sua defesa, o governo alega que todos os governos sempre atrasaram pagamentos para bancos públicos e, assim, não seria algo específico do governo Dilma – o que, de fato, está correto [4]. Entretanto, o diferencial do governo Dilma, a partir de 2013 e 2014, é que esses atrasos passaram a ocorrer de forma sistemática e recorrente, o que mostraria uma estratégia planejada de, artificialmente, reduzir a despesa primária e elevar o superávit primário [5]. Diferenciando-se, portanto, de um breve movimento negativo observado nas contas entre governo e instituições financeiras públicas – comum a governos como de FHC e Lula.
Para a infelicidade do leitor que acreditava agora estar “super por dentro”, vale lembrar que o pedido de impeachment aceito pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, inclui também outros elementos, entre eles “decretos não remunerados, e comportamento omissivo doloso da presidente diante do envolvimento de pessoas próximas a ela no episódio do petrolão” [6]. Dada tamanha comoção em torno da investigação Lava Jato no último ano, acredito que o segundo elemento dispense explicações. Quanto ao primeiro, tratam-se de operações de crédito que, de acordo com os autores do pedido, foram feitas em longo prazo, quantias exorbitantes e sem autorização do Congresso [7]. O governo, por sua vez, defende a legalidade de tais operações, alegando ter apenas mudado a destinação de recursos já aprovados pelo Congresso, sem aumentar o déficit público.
Cabe ao tempo (e nosso querido e imprevisível Congresso, claro) indicar o final dessa confusa novela. Por enquanto, pelo menos, podemos elevar o nível do papo de elevador.
Referências
[1] http://www.valor.com.br/politica/4504616/miguel-reale-aponta-culpa-de-dilma-nas-pedaladas-fiscais
[2] http://portal.tcu.gov.br/institucional/conheca-o-tcu/historia/historia.htm
[4] https://mansueto.wordpress.com/2016/04/01/esclarecimento-2-a-defesa-do-governo/
[5]Ibid.
[7] Ibid.