Perguntas e Respostas do Terraço | Alípio Ferreira e Guilherme Bandeira
“Se você não está confuso, não está bem informado”, diz um cartum publicado pela revista Piauí em 2013, e ressuscitado no meio da atual crise política brasileira. De fato, exige sangue frio e um certo gosto por letrinhas pequenas para estar por dentro da hecatombe que se abateu sobre o governo federal. Em particular, assunto do momento é a situação jurídica do ex-presidente Lula. Muitos sentem um prazer mórbido ao ver o antigo mandatário acuado, e outros vibram com os contra-ataques da jararaca de Garanhuns. Mas afinal, como é que a Lava Jato chegou ao Lula, e que diabos aconteceu até agora? Vamos ao Q&A jurídico do Terraço.
Quais evidências há contra Lula?
1) Entre 2011 e 2014, o Instituto Lula recebeu mais de R$ 20 milhões em doações das construtoras Camargo Corrêa, Odebrecht, Queiroz Galvão, OAS e Andrade Gutierrez. No mesmo período, essas empreiteiras e mais a UTC fizeram pagamentos à LILS Palestra Eventos e Publicidade, empresa do qual Lula é sócio e cuja sede é localizada em sua própria residência, para palestras do ex-presidente Lula num total de quase R$ 10 milhões.
2) Entre os anos de 2011 e 2013, o Instituto Lula recebeu R$ 3 milhões da Camargo Corrêa e a LILS Palestra Eventos e Publicidade, recebeu mais de R$ 1,5 milhão, a título de palestras concedidas. Ao Instituto Lula foram pagas três parcelas de R$ 1 milhão a título de “Contribuições e Doações” e “Bônus Eleitoral”, durante os anos de 2011, 2012 e 2013 segundo a contabilidade da própria empresa. À LILS Palestra Eventos e Publicidade, foram feitos três pagamentos: R$ 337,5 mil em 26 de setembro de 2011, R$ 815 mil em 17 de dezembro de 2012 e R$ 375,4 mil em 26 de julho de 2013.
3) R$ 1,7 milhões da empresa LILS e do Instituto Lula foram destinados às empresas do filho do presidente.
4) Uma propriedade em Atibaia frequentada assiduamente pela família do ex-presidente recebeu benefícios em forma de reformas por parte da empresa OAS. O ex-presidente nega possuir a propriedade, mas ligações interceptadas, encomendas e objetos apontam na direção de ele ser o beneficiário final do imóvel. A Polícia Federal encontrou no apartamento de Lula em São Bernardo do Campo um contrato de compra do sítio.
5) O apartamento Triplex do edifício Solaris, no Guarujá, de propriedade da OAS, foi reformado pela empresa, inclusive com instalação de elevador privativo. O presidente e sua esposa visitaram a obra, em companhia do presidente da OAS Leo Pinheiro, hoje preso. Depoimentos de funcionários do prédio e conversas de Leo Pinheiro com funcionários da OAS indicam que as reformas do sítio de Atibaia e do triplex no Guarujá beneficiariam a Lula e sua família.
6) O acervo do presidente Lula, composto de presentes recebidos durante seu mandato, é armazenado pela Transportadora Granero a custo integral da OAS, em valor que chega a R$1,2 milhão. A OAS registrava que os contêineres contendo os objetos de Lula continham “materiais de escritório” de propriedade da OAS.
Link: http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2016/03/oas-bancou-armazenagem-de-10-containers-para-lula.html
Do que Lula está sendo acusado?
Não há acusação formal contra o ex-presidente no âmbito da Operação Lava-Jato, o que no jargão jurídico se chama de “denúncia” apresentada pelo Ministério Público ao juiz. Acusações diretamente dirigidas ao ex-presidente foram feitas por três promotores em São Paulo no dia 09 de março de 2016, mas não foram aceitas.
Neste dia, foi apresentada uma denúncia na Vara Criminal de São Paulo acusando o ex-presidente de ocultação de patrimônio, lavagem de dinheiro e falsidade ideológica. A denúncia, porém, foi duramente criticada não só por especialistas em direito penal, como também pelos próprios procuradores da Lava-Jato, pela fragilidade dos argumentos apresentados. Cinco dias depois, a denúncia foi encaminhada para a 13ª Vara da Justiça Federal de Curitiba, pois a juíza do caso entendeu ser competência da justiça federal julgar.
Íntegra da decisão da juíza que determinou que a denúncia fosse encaminhada para Curitiba: http://estaticog1.globo.com/2016/03/14/Decisao_Maria_Priscilla_Oliveira.pdf
Link sobre Lula ser investigado no âmbito da Operação Lava-Jato: http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2016/03/30/nao-ha-definicao-sobre-denuncia-de-lula-diz-procurador-da-lava-jato.htm
Lula é réu?
Não, Lula não é réu. A diferença é que alguém só pode ser considerado culpado por um crime depois de um processo penal transitado em julgado, e tornar-se réu em um processo penal é a primeira etapa do processo que pode resultar em uma condenação. Alguém só se torna réu depois de duas etapas: a) ter sido denunciado pelo Ministério Público; 2) Aceitação dessa denúncia pelo juiz. Só depois que o juiz aceita a denúncia (ou que um colegiado de magistrados aceita a denúncia) e o acusado é informado dessa aceitação por meio da citação, alguém é considerado réu no processo penal.
Quem pediu a prisão preventiva de Lula? Baseado em quê? Como essa decisão foi parar na mão do Moro?
Quem pediu a prisão preventiva do Lula não foi o juiz Sérgio Moro, mas sim três promotores do Ministério Público do Estado de São Paulo, como explicado acima.
Por que Lula foi conduzido coercitivamente para prestar depoimento à Polícia Federal?
Segundo o despacho que determinou a condução coercitiva de Lula ao alojamento da Política Federal no aeroporto de Congonhas, a medida foi necessária para não provocar confrontos. Diz o despacho que “a medida é necessária pois, em depoimentos anteriormente designados para sua oitiva, teria havido tumulto provocado por militantes políticos, como o ocorrido no dia 17/02/2016, no Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo.” Com medo de que esse tumulto se repetisse, Moro determinou a condução coercitiva.
Link: http://jota.uol.com.br/leia-o-despacho-de-sergio-moro-determinando-a-conducao-coercitiva-de-lula
Qual é a diferença entre os papeis da Polícia Federal, da Justiça Federal e do Ministério Público Federal na Lava Jato?
Os limites e as competências dessas instituições até hoje são matérias de intenso debate, pois muitas vezes os papéis acabam se sobrepondo. Em linhas gerias, cabe à Polícia Federal apurar as infrações penais que envolvam a União e suas empresas públicas (como, por exemplo, a Petrobrás) e cabe ao Ministério Público, se achar necessário, fazer a acusação desses crimes perante o juiz, por um ato processual chamado “denúncia”. Ao juiz é reservado um papel mais “passivo”, zelando pelo equilíbrio e pela legalidade do processo.
É a Polícia Federal quem dá nomes às operações, mas essas operações podem gerar mais de uma denúncia, com inúmeros réus, feitas pelo Ministério Público. Ao juiz, que não deve ter interesse no resultado do processo, cabe aceitar ou não a denúncia e conduzir o processo penal até a sentença, sendo que essa pode condenar ou absolver o réu. Todas as decisões no âmbito do processo penal podem ser revistas pela segunda instância, que é o Tribunal Regional Federal e, se houver algum desrespeito à Constituição, caberá ao Supremo Tribunal Federal julgar a matéria.
Lula escapa da Justiça virando Ministro?
Não. Ao tornar-se Ministro, Lula ganha “foro privilegiado”, o que implica que só pode ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal. Assim, a suposta vantagem que Lula teria no processo seria não ser julgado pelo Juiz Sérgio Moro.
As escutas telefônicas foram (todas) ilegais? Por que seriam e por que não seriam?
Dentre os diversos pontos de desacordo existentes referentes à operação Lava Jato, o maior deles é provavelmente este. O juiz Sergio Moro autorizou a Polícia Federal a interceptar um telefone utilizado por Lula, no qual o ex-presidente se comunicou com diversas pessoas, inclusive Ministros de Estado e a Presidente da República. No dia 18 de março, o juiz determinou o encerramento das gravações e levantou o sigilo delas. Determinou também que os documentos fossem remetidos ao Supremo Tribunal Federal, uma vez que Lula seria indicado Ministro de Estado, passando àquela jurisdição.
Em decisão no Supremo Tribunal Federal, que recomendamos que seja lida na íntegra clicando no link abaixo (não tenha medo, tem muito juridiquês, mas dá para qualquer um entender),o Ministro Teori Zavascki abordou diversos pontos de desacordo entre os juristas que acompanham a Lava-jato. O Ministro determinou que os diálogos interceptados no âmbito da 13ª Vara da Justiça Federal do Paraná que envolvam o ex-presidente Lula sejam remetidos ao STF, pois participam do diálogo pessoas com prerrogativas de foro, como a Presidenta Dilma Rousseff e Ministros de Estado.
As escutas telefônicas feitas com autorização judicial são reguladas pela lei nº 9296/96. Esta lei estabelece como regra o sigilo de qualquer gravação interceptada e estabelece que as gravações sejam inutilizadas, após requerimento da parte interessada ou do Ministério Público, caso não interessem à investigação (leiam os arts. 8º e 9º desta lei). Importante dizer que mesmo o Min. Teori tendo utilizado essa lei para embasar sua decisão, não se pronunciou sobre a legalidade das provas obtidas pelas escutas telefônicas. Ontem (31 de março), quando o tema das escutas da Lava Jato foram objeto de deliberação entre os juízes da Suprema Corte (nem todos os Ministros votaram ainda), o Ministro sugeriu que uma das conversas interceptadas (a conversa entre Lula e Dilma) poderia ser invalidada como prova, uma vez que foi gravada após a decisão do juiz Moro de encerrar a interceptação. Esta matéria ainda está em suspenso. O que está sendo discutido no Supremo ontem e hoje é que as gravações interceptadas com autoridades que gozem de prerrogativa de foro devem ser transmitidas diretamente ao STF.
Link da Decisão: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Rcl23457.pdf
Link da discussão atual no STF: http://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/2016/03/maioria-do-stf-confirma-para-tirar-de-de-moro-investigacoes-sobre-lula.html
Matéria muito clara, mostrando as divergências entre Moro e Zavascki: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/03/23/Teori-versus-Moro-as-5-discord%C3%A2ncias-sobre-os-grampos-de-Lula
Artigo muito bom sobre a decisão: http://jota.uol.com.br/e-surge-um-investigado-com-foro-por-prerrogativa-de-funcao-em-que-momento-a-investigacao-deve-ser-remetida-para-o-tribunal-competente
Por último, o que é uma delação premiada e acordo de leniência? Por que elas têm sido tão importantes na Lava-Jato? A delação premiada (ou colaboração premiada) só passou a ser admitida como meio de prova no Brasil década de 1990. A primeira lei a prever a colaboração premiada foi a Lei de Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/1990), posteriormente ela foi também admitida nos crimes contra o sistema financeiro nacional (Lei nº 9.080/95), praticados por organização criminosa (Lei nº 9.034/95) e para o combate à lavagem de dinheiro (Lei nº 9.613/1998). Embora todas essas leis permitissem o uso da colaboração premiada, este instituto não tinha sido muito utilizado como meio de prova, pois, por falta de uma disciplina clara e segurança jurídica, as pessoas não se sentiam seguras o bastante para fazer a colaboração. Em outras palavras, havia o risco de “entregar o jogo”, sem que o colaborador colhesse os benefícios. Além disso, faltavam julgados consistentes que dessem essa segurança e uma “ cultura jurídica” que utilizasse a delação premiada como estratégia de defesa. Tudo mudou com a nova Lei nº 12.850/13, que define o que é uma “organização criminosa” e dispõe sobre a investigação criminal, e com as decisões judiciais da Lava-Jato (sejam elas tomadas pelo Juiz Sérgio Moro e pelos Ministros do STF), chancelando que, sim, às vezes é melhor colaborar com a investigação do que ser condenado a uma pena muito alta. Mas vamos ao que diz a lei. A definição legal de colaboração premiada é a seguinte: “o juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: I) a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; II) a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; III) a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; IV) a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; V) a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.” Um dos (vários) pontos polêmicos no uso da colaboração premiada é que a lei exige que o delator tenha colaborado “voluntariamente com a investigação e com processo penal” e que essa colaboração seja “efetiva”, ou seja, que ela ajude em algum dos resultados de I a V. Vários juristas têm questionado a legalidade de uma delação realizada durante a prisão preventiva de investigados, pois, nestas circunstâncias, ela perderia seu caráter voluntarista. Se uma pessoa está sendo coagida a colaborar, querendo sair o mais rápido possível da prisão preventiva, como é possível falar em “colaboração voluntária”? Como esse é um meio de prova relativamente novo no processo penal, seus contornos ainda são imprecisos e, por falta de casos, ainda não se sabe como os juízes agirão em determinadas situações. Por exemplo, se posteriormente houver informações erradas ou falsas, mas que ajudaram nas investigações, poderá haver uma revisão do acordo? Os acordos de leniência têm sido igualmente importantes na Operação Lava-Jato. Eles são disciplinados por outra lei, a Lei 12.846/13, apelidada de Lei Anticorrupção e são também “colaborações”, só que feitas por pessoas jurídicas, podendo ser admitidas em processos administrativos e não só penais. O objetivo de um acordo como esse é que a empresa reconheça que cometeu uma ilegalidade, pagar uma multa e, depois disso, tornar-se “ficha limpa”, podendo continuar a contratar com a administração pública. Mas aqui este assunto realmente começa a ficar difícil, pois está em vigor atualmente a Medida Provisória 703/2015 que alterou substancialmente a lei original. Medidas Provisórias são semi-leis, pois mesmo vigentes, ainda precisam ser “convertidas” em lei pelo Congresso Nacional para “realmente” virarem leis, caso contrário perdem sua eficácia. Além disso, a MP 703 já está sendo questionada no STF, por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade. Tudo muito complexo, com vários interesses envolvidos. A MP 703 alterou a Lei Anticorrupção e tirou alguns requisitos para a celebração dos acordos. Por exemplo, a lei original dizia que só a primeira empresa que fizesse o acordo seria beneficiada, gerando um incentivo para “trair” as demais empresas investigadas e ser única a escapar. A MP703 acabou com esse requisito. Outro problema. No âmbito do Poder Executivo Federal e depois da MP 703, a entidade competente para celebrar tais acordos é a Controladoria-Geral da União (CGU). Mas pode haver um potencial conflito entre a própria CGU, o Tribunal de Contas da União e o Ministério Público, pois essas outras entidades podem não reconhecer o acordo feito entre a CGU e as empresas. Se a justiça acatar algum pedido, por exemplo, do MP, para que uma empresa não contrate com o poder público declarando-a “inidônea”, um acordo de leniência pode ter sido em vão. Na Lava-Jato, os acordos geralmente envolveram tanto o MP quanto os próprios executivos das empresas (com delações premiadas), então não haveria o “risco” de que eles fossem posteriormente invalidados. Com a MP 703, a participação do MP passa a ser facultativa e a insegurança se instaurou. Ocorre que o MP tem sido bem exigente para fechar um acordo como esse, exigindo além da confissão da empresa informações novas e “quentes” para continuar puxando a pena até ela virar uma galinha (metáfora usada por um Ministro do STF). A CGU, um órgão do próprio Governo Federal e interessadíssimo em limpar a barra das empresas, é vista pelo MP e pelo TCU mais maleável nesse assunto, exigindo só a confissão e o pagamento da multa. Eu não disse que era complicado e com vários interesses envolvidos?
Alipio Ferreira Cantisani e Guilherme Bandeira Respectivamente: Economista (FGV-SP), editor do Terraço Econômico Formado em Direito pela FGV-SP e Filosofia pela USP, com mestrado (LLM) pela NYU