por Lucas Adriano Silva
Quem nos últimos anos nunca se desiludiu com determinado político, ou com o sistema político como um todo, que comece a ler as obras de Mises e se torne um combalido libertário defensor de uma suposta Anarquilândia.
A indignação com o sistema político e com tudo que remeta ao Estado, vem se fortalecendo em várias partes do mundo, e isso decorre em parte devido a escândalos envolvendo casos de corrupção e da incapacidade de se prover o bem-estar geral da população. Dessa forma, a retórica de que os governos não passam de entidades extrativistas, que usurpam as riquezas do povo e favorecem interesses de um grupo restrito, ganhou força e pode ser ilustrada a partir de determinados eventos recentes. Na última eleição presidencial norte americana, o libertário Gary Jonhson, em meio à insatisfação geral com os candidatos das principais legendas partidárias (Democratas e Republicanos), conseguiu abocanhar quase 5 milhões de votos. No continente europeu, a votação popular favorável ao Brexit reflete a ojeriza a tudo que remeta, de algum modo, a formação de uma grande máquina pública comandada por burocratas.
No Brasil, mesmo com a permanência de certos costumes bem tradicionais, como a desconfiança em relação às privatizações e o desejo de se ter estabilidade eterna a partir de um cargo público, é crescente o movimento que enxerga a mão do Estado como pesada em demasia. A reivindicação da redução da quantidade de impostos e o descontentamento geral com representações políticas servem para ilustrar o fortalecimento de ideias mais liberais na terra tupiniquim.
Mas o pensamento liberal pode chegar a extremos, na medida em que a ideia de livre mercado, remete não apenas a um ambiente de negócios mais livre, de redução da burocracia ou de leis que interfiram na forma como os indivíduos devem agir. Ao invés disso, no extremismo, o Estado é demonizado, sendo a entidade responsável por todos os males do universo. Afinal, se o Estado só serve para usurpar a população e os políticos só utilizam da máquina pública para obter ganhos pessoais, porque não acabar com tudo e viver numa sociedade baseada no mais Éden mercado de todos, localizada numa Anarquilândia? Essa ideia, apesar de tentadora, guarda imperfeições e fracassa, mesmo que ainda seja feito o esforço, de transportá-la do plano dos sonhos para uma suposta realidade.
Em “Por que as Nações Fracassam”, livro escrito pelos professores Daron Acemoglu (Massachusetts Institute of Technology) e James Robinson (Harvard University) é aberta uma discussão acerca da trajetória seguida por países ricos e pobres. Dentre os países analisados, é citada a República Democrática do Congo, cujo governo é incapaz de gerar os incentivos básicos para garantir a ordem social, o que reflete na situação de extrema pobreza vivida pelo país. O Congo não possui um governo que, nos moldes weberianos, seja capaz de monopolizar a violência, função que passa a ser dividida pelos mais diferentes grupos armados, movidos apenas pelos seus próprios interesses.
O Estado Islâmico é outro exemplo das consequências geradas pela ausência de regras, que descreve como na falta de um Estado minimamente organizado, grupos possuidores de devidos recursos, como dinheiro e armas, podem chegar ao poder e se impor pela violência, causando a restrição de liberdades básicas de toda uma população. São exemplos como esse que mostram como, na ausência completa de governo, haveria a formação de uma série de instituições extrativistas, que no intuito de angariar riqueza competiriam umas com as outras, ameaçando sem nenhum impedimento os direitos e as liberdades dos indivíduos, inclusive os relacionados à locomoção e à propriedade.
Assim, como alguém se sentirá incentivado a investir ou a inovar, sem a presença de um nível mínimo de ordem? É muito provável que a destruição criativa, tão enfatizada por Schumpeter, teria sérias dificuldades de ocorrer num ambiente sem estabilidade, em que grupos movidos pelo auto-interesse disputam o domínio do território, não havendo nenhuma regra que proteja o direito sobre inovações e investimentos. Uma vez criado esse ambiente de péssimos incentivos, seria muito difícil revertê-los, dado que em Anarquilândia não haveria NENHUM tipo de política pública, por mais mínima e necessária que ela viesse a ser.
“A prioridade inflexível dos direitos libertários pode ser particularmente problemática, pois as conseqüências reais da operação desses intitulamentos podem incluir resultados terríveis. Em particular, pode conduzir à violação da liberdade substantiva dos indivíduos para realizar as coisas às quais eles têm razão para atribuir enorme importância, como escapar à mortalidade evitável, ser bem nutrido e sadio e saber ler, escrever e contar etc” (SEN, 2000).
No perfeito livre mercado, graves questões sociais, como a ocorrência de fomes coletivas, desnutrição crônica de crianças e catastróficas taxas de analfabetismo, não constituem um problema em si. A economia estará pautada apenas para a maximização, sem avaliar a questão redistributiva. Isso não remete somente a um questionamento sobre equidade, mas para a eficiência. Políticas redistributivas implementadas de maneira consciente (como o Bolsa Família) maximizam a economia no longo prazo. Assim, a ocorrência de elevadas taxas de desnutrição infantil e baixos índices educacionais por exemplo, são problemas sociais nocivos ao desempenho econômico no futuro.
Além das questões já discutidas, há uma tradicional lista de bens que a teoria econômica descreve como bens públicos puros, como a questão das grandes obras de infraestrutura e uma coisa chamada “matemática”.
Os bens tidos como públicos puros não tendem a gerar incentivos no setor privado, mesmo dentro de um perfeito sistema de livre mercado, tendo que serem supridos pelo Estado. Essa ausência de estímulos não é devido à falta de importância desses bens, mas pelas suas próprias características, dado que são indivisíveis (não podem ser individualizados) e não rivais (várias pessoas podem usar ao mesmo tempo), – exemplo clássico é a iluminação elétrica em praças e avenidas.
Na questão da infraestrutura, em que palavras como propina e corrupção vêm logo a mente, um aspecto é inevitável: tais obras quando conduzidas dentro do país, de modo que no final ela cumpra suas funções, são de extrema importância. Ou será que hidrelétricas, termelétricas e siderúrgicas não são importantes? A questão é que tais obras demandam um longo prazo para que o investidor comece a ter lucro, somado à necessidade de vultosos capitais para o investimento inicial. Isso acaba por dificultar em muito o investimento exclusivamente privado, direcionado a essas obras. Essa dificuldade até poderia ser amenizada, caso o Tony Stark, saísse de “Os Vingadores” para usar sua fortuna em grandes obras de infraestrutura.
Em relação à matemática, esta possui a capacidade de traduzir com menor margem de erro as “verdades” ditas por autores. Não é levantar o clichê de que “os números jamais mentem”, mas é admitir que a matemática é a melhor forma de desbaratar falácias e patuscadas, que muitas vezes são ditas com elevada erudição. Não é por acaso que grande parte dos defensores da Anarquilândia não são nem um pouco afeitos a métodos matemáticos.
De cada dez economistas, onze acreditam (um dos economistas opinou duas vezes) que o livre mercado é o melhor sistema econômico para a produção de riqueza em um país, sendo também uma ótima maneira de se evitar arbitrariedades. Mas reconhecer a importância do livre mercado não significa querer a abolição total do Estado com o surgimento de uma Anarquilândia. E isso é uma questão de discernimento. Discernir a importância de maior liberdade econômica e menor burocracia estatal, de um sonho chamado Anarquilândia, que já fracassa em si por esquecer da matemática e do auto-interesse dos agentes econômicos.
Lucas Adriano Silva* Graduando do 7º período de Ciências Econômicas, na Universidade Federal de Viçosa (UFV). É membro da LANP, faz iniciação científica e já foi monitor de macroeconomia. Vindo de Ponte Nova (MG), cruzeirense e fã do Spidey. Dorme menos de 4 horas por dia, desde o início da graduação. Referências ACEMOGLU, D., ROBINSON, J. Por que as nações fracassam?, Campus, 472 p., 2016. SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. Companhia das Letras, São Paulo, 409 p., 2000.