Convidados Especiais | Ramon García Fernández
A crise financeira em que se encontra hoje a maior universidade brasileira, a USP (que ameaça inclusive contagiar suas duas instituições irmãs, a Unicamp e a UNESP) trouxe ao centro das discussões a questão do financiamento das universidades públicas. Foi defendida como solução, em diversos âmbitos, a ideia de cobrança de mensalidades nessas universidades. A proposta, que provavelmente se inspira no modelo vigente nos EUA, supõe que o governo deva oferecer gratuitamente educação nos níveis fundamental e médio, mas que deva cobrar pelo ensino superior.
Muitas vezes os críticos de nossas universidades gratuitas as apontam como uma curiosidade brasileira; em geral, a narrativa diz que esse seria mais um exemplo da captura das instituições públicas por nossas elites, que assim empurrariam para a massa de contribuintes o custo de sua educação superior. Poucas vezes lembram esses críticos que a grande maioria dos países europeus oferece ensino superior gratuito, ao igual que vizinhos latino-americanos com sistemas universitários tradicionais e respeitados, como a Argentina e o Uruguai. Será esse também um complô das elites suecas, austríacas ou uruguaias?
Não deixo de considerar contraditória uma proposta que diz que a maneira de “deselitizar” a universidade seja cobrar pelo ensino. Hoje, dizem os críticos da gratuidade, seriam poucos os pobres (conceito muito elástico num país onde quase todo operário virou de repente classe media) que conseguem entrar nas universidades públicas. Entendo que esse é um dado completamente falacioso, mas mesmo aceitando-o provisoriamente “for the sake of the argument”, parece-me claro que a cobrança de mensalidades estaria arriscada a reduzir o número de pobres a zero. A saída para evitar isso, segundo os partidários da cobrança, estaria ora em fornecer crédito educativo, ora em dar gratuidade “para quem demonstrar essa condição de pobreza”. A primeira proposta parece ignorar o desastre das dívidas universitárias nos EUA bem como o impressionante movimento dos estudantes chilenos em prol da gratuidade. A segunda, embora em princípio seja muito mais sensata, enfrentaria, ao meu ver, sérios problemas de implementação (é muito mais complicado acompanhar a renda familiar dos estudantes durante os quatro, cinco ou seis anos de ensino, do que simplesmente usar esse critério para isentar de taxas no vestibular; seria sempre polêmico avaliar o caso de um estudante que brigou com os pais, que passam a não mais sustenta-lo; haveria dúvidas de como considerar a renda do estudante que trabalha e tem que ajudar pais ou outros parentes, etc.).
Embora existam muitos argumentos que podem ser levantados contra a cobrança do ensino superior, como os que apontei acima, vou me deter em um ponto que acredito que tem sido pouco discutido.
Por uma questão de coerência, pareceria lógico que aqueles que defendem a universidade paga também devessem defender a não-gratuidade de todos os níveis educativos. Por exemplo, sempre se aponta que o ensino universitário é uma forma de aumentar o capital humano da pessoa, que aumentaria assim seu fluxo de rendimentos futuros, e portanto estaria disposta a pagar hoje por esse diferencial de renda permanente. Mas certamente a pessoa que cursa o primário também está investindo em capital humano, e este renderá o suficiente em termos de fluxos de renda, quando comparado com os ganhos que essa pessoa teria como analfabeta, de modo a tornar racional o seu um dispêndio em educação. O mesmo se aplica para o ensino médio e para o superior, mas só este último nível é lembrado nos argumentos a favor da cobrança. Por que essa diferença?
Imagino que a racionalidade para não cobrar pelos dois níveis iniciais do sistema educativo seja o de enxergá-los como um direito universal, como algo que convêm à sociedade como um todo, ou seja, como uma necessidade de qualquer indivíduo.
O raciocínio complementar mostra que, logicamente, para essas pessoas, a educação superior não deve ser considerada como um direito! Ao contrário, seria um luxo que alguns podem se permitir e do qual outros (a maioria?) podem prescindir. O recado é: se você estiver interessado em aumentar seu fluxo de renda permanente fazendo faculdade, quebre seu porquinho hoje ou endivide-se. Seu esforço será recompensado com acréscimo, desde que você seja competente no mercado e consiga um emprego que lhe permita pagar as mensalidades. A sociedade não precisa que as pessoas tenham educação superior; se você quer encarar esse desafio, o risco é seu. Ah, e se você errar, você fica sem a educação e com a dívida (um raciocínio análogo faria com que aqueles que não concluem o primário tivessem que trabalhar para pagar o custo da educação que a sociedade lhes forneceu e não souberam aproveitar).
Ramon Garcia Fernandez da Universidade Federal do ABC
Se nós olharmos a universidade não como uma opção para poucos eleitos, mas como um direito universal, chegaremos à conclusão que cabe a todos os contribuintes pagarem pela manutenção do ensino superior, estudem eles na universidade ou não (extensivo aos seus filhos/netos). Nessa perspectiva, a universidade deveria logo ser tão gratuita quanto o ensino dos outros níveis. Os argumentos morais para isentar um adulto sem filhos, por exemplo, de pagar pelo ensino de nossos universitários são tão fortes ou fracos quanto os que lhes permitiriam deixar de contribuir para manter o ensino primário.
Muitas vezes esta discussão da cobrança pelo estudo se mistura com a observação de que “as universidades precisam gerar recursos porque são muito caras”. Entendo que a discussão de como bancar as universidades é relevante, mas é uma discussão diferente, não depende unicamente de que os alunos paguem, certamente há outras fontes de financiamento. E, adicionalmente, essas preocupações com o financiamento podem legitimamente nos levar a nos perguntarmos: o ensino básico e o fundamental não precisariam também gerar suas receitas? Por que não estender a eles essa necessidade de contribuírem na obtenção de seus fundos? Foi sugerido, como exemplo de geração de receitas para a universidade que seus professores cobrassem pelas consultorias e serviços que prestam (e não o fazem hoje, diga-se de passagem?). Em tal caso, essas pessoas poderiam propor que os professores do ensino fundamental cobrassem por aulas de reforço (seus “serviços de consultoria”), vendessem bolos, alugassem a escola para festas, etc. Não me parece que a solução do financiamento da educação passe por ai.
Devo esclarecer que eu não tenho nenhuma objeção a que as universidades cobrem pelo estacionamento nos campi, que licenciem produtos como fazem (muito competentemente) as universidades dos EUA, que cobrem consultorias às firmas, que permitam a instalação de anúncios ou patrocínios em suas salas, que tenham muitas mais opções de comércios, de serviços de alimentação e de outros tipos nos campi (algumas universidades públicas já fazem isso muito bem), que sejam mais inteligentes na procura de doações dos seus ex-alunos, etc. Isso tudo pode fazer com que, na composição dos seus recursos, os de origem própria tenham um participação significativa; isso deve complementar, e não substituir, as transferências do orçamento dos governos nos diversos níveis. Por sua vez, a menção ao orçamento do governo nos lembra que as discussões sobre a divisão da contribuição tributária entre os cidadãos continuam na ordem do dia. Sem dúvida, precisamos aumentar hoje no Brasil a participação dos impostos diretos (e reduzir a dos indiretos) para que o ônus da carga tributária seja distribuído de maneira mais equânime entre os cidadãos.
Sem negar essas questões, que são muito relevantes, nada disso deve nos confundir e nos levar a esquecer que o ensino superior deve ser um direito de todos os cidadãos, que portanto deve estar ao alcance de todos, e que por isso deve ser tão gratuito quanto os outros níveis de ensino que o antecedem.
Para finalizar com mais uma discussão um texto que, reconheço, já é bastante polêmico: muitas pessoas pensam que o problema das universidades públicas é que a percentagem de ricos nelas é maior do que no conjunto da população (“os pobres estão pagando a educação dos ricos”). Dito de outro modo, os estudantes que fizeram escolas pagas e caras do maternal ao colegial seriam a quase totalidade dos aprovados nas melhores universidades públicas, mas agora não precisariam continuar pagando por sua educação. Já disse que, dependendo do curso e da universidade, esse quadro pode passar de ser mais ou menos realista a ser muito distorcido. Mas, mesmo que as coisas forem realmente assim, e que a universidade fosse uma escola gratuita para ricos, o problema não estaria em ser gratuita, senão em ser para ricos. Que os ricos paguem não mudaria esse suposto apartheid social nas universidades. Para solucionar isso, seria muito mais eficiente um sistema de cotas socioeconômicas e raciais, que faça com que composição dos estudantes se movimente na direção de se tornar uma amostra representativa da população da cidade, do estado ou do país. Esse movimento, sem tirar da universidade seu caráter meritocrático (os escolhidos seriam os de melhor desempenho dentro de seu grupo), tornaria as características dos estudantes das universidades públicas mais semelhantes às da população como um todo. E há bastantes evidências de que esses estudantes cotistas, num ambiente que exija deles, podem rapidamente fazer o catch-up com os alunos não- cotistas.
Em resumo, avalio que a proposta da cobrança pelo ensino nas universidades públicas tem muitas possibilidades de aumentar os seus aspectos elitistas, consolidando ao mesmo tempo a visão de que a universidade é um luxo ao qual não é importante que todos tenham acesso.
Ramon Garcia Fernandez Pós Doutor em Economia pela University of Massachusetts Coordenador do Bacharelado em Ciências Econômicas da UFABC
Há vários problemas com esse artigo. PRIMEIRO: o argumento de que “na europa e no Urugai e na Argentina (“sistemas respeitados”…) é gratuito”, logo aqui também deve ser, é simplesmente um sofisma. SEGUNDO: os argumentos contra o crédito educativo (“é de difícil implementação” e “tem muita dívida nos EUA”) são, novamente, mero sofismas. Há de fato um grande estoque de dívida — consequência natural de um sistema universitário essencialmente financiado através de programas de empréstimo de instuições privadas de crédito (60% dos alunos matriculados anulamente em média) e que matricula cerca de 30% da população adulta. Mas a dívida média é relativamtne baixa (cerca de US$ 24 mil em média) e a taxa de default é relativamente baixa (9,1% para uma janela de 2 anos). TERCEIRO: a defesa da cobrança de mansalidades no ensino superior em nada depende que o mesmo argumento seja necessariamente extendido para o ensino fundamental. E o tratamento distinto nada tem a ver com questões de direitos humanos ou coisa do tipo, mas com o fato de que as externalidades positivas e os “prêmios” de renda gerados por um e outro nivel são diferentes. É exatamente por isso que as receitas próprias (que hoje praticamente inexistem) deveriam substituir – idelamente – as receitas tributárias para que essas — idelamente — fossem alocadas no ensino fundamental (onde se gasta, por aluno, de 15 a 20 vezes menos do que se gasta com o aluno do ensino superior). Falar que o ensino superior “é um direito de todos”, é um mero “grito de ordem” que ignora argumentos econômicos teóricos para a justificativa de provisão pública de certos bens e serviços e, como não deve ser surpresa, nada acrescenta à discussão desse tópico. QUARTO, e por fim, o argumento de que um sistema de cotas sócioeconômicas mitigaria o apartheid social nas universidades (públicas) ignora o fato de que em um mundo onde habilidade cognitiva (uma dimensão crucial para o processo de seleção da universidade) e renda estejam correlacionados positivamente, um sistema de cotas sócioeconômicas pode — depende de sua extensão e desenho — ter impactos econômicos (o “produto” dos indivíduos intleigentes o suficiente para se beneficiar de uma educação universitária de maior qualidade que ficaram de fora para dar lugar a estudantes relativamente menos inteligentes mas mais pobres) que não compensem os ganhos de mobilidade social promovidos por esse sistema. Esse último ponto, embora admitidamente uma questão empírica em aberto, deve ser levado em conta na discussão de esquemas de cota. No mais, a tese defendida de que a cobrança poderá elitizar ainda mais o sistema superior de ensino é simplesmente uma falácia, um argumentum ad metum, como ilustram, em desfavor dessa possibilidade, a experiência de crédito educativo em países desenvolvidos e no próprio Brasil.
“Hoje, dizem os críticos da gratuidade, seriam poucos os pobres (conceito muito elástico num país onde quase todo operário virou de repente classe media) que conseguem entrar nas universidades públicas. Entendo que esse é um dado completamente falacioso”
Apenas esse comentário já derruba a credibilidade de seu artigo.
1° a tal da classe média não existe, continuamos todos a sermos operarios, talvez gozando de um poder aquisitivo um pouco maior, mais ainda sim operários…
2° e principal argumento, não há nada de FALACIOSO quando falamos que poucos pobres entram em universidades publicas, isso é FATO, é a REALIDADE, só não enxerga quem se faz de cego. eu trabalho em frente ao refeitório da UFSC de Joinville, e na hora do almoço vejo os estudantes chegando lá, muitos em carros, alguns em importados, agora me diz, qual o pobre vai estudar de carro?? em cursos de período integral?? todos andam com roupas de marcas. Falacioso é achar que isso não existe, isso sim.