Sobre direita, esquerda e o limite do rótulo

Quando o reducionismo não vale a pena

Dizia-se, de acordo com as minhas aulas da Sétima Série, que quando da Revolução Francesa (no século XVIII), os Jacobinos, reformistas camponeses liderados por Robespierre, se sentavam à esquerda no Parlamento. Do lado direito, em oposição, ficavam os Girondinos, conservadores ligados à nobreza e ao clero. Entre os dois ficava a Planície, um “PMDB dos Crepes”, que ajustava sua posição à sua conveniência. Esses partidos, por óbvio, conduziam suas agendas no sentido de suas doutrinas, e vem daí a ideia que temos ainda hoje, de associação automática de ideologias entre esses dois espectros — a Esquerda e a Direita.

Um pouco depois, na Contra-Revolução Industrial Inglesa, e, mais à frente, na Revolução Russa, reproduções semelhantes se repetiram na organização política: sindicatos, camponeses e trabalhadores industriais de um lado, empresários e banqueiros do outro. Consolidou-se então tal embate social, que, grosso modo, o Marxismo chama de Luta de Classes— sobretudo pela simplicidade de se enquadrar em um dos grupos, dados esses contextos dicotômicos.

Ocorre que, felizmente, nossas sociedades — que no século XVIII guilhotinavam pessoas — evoluem. Ou pelo menos se tornam mais diversas e complexas, vá lá. Economicamente, sobretudo, as transformações são retumbantes, principalmente observando o espaço de tempo dos últimos 3 séculos. Foi a partir da Revolução Industrial que as nações começaram a gerar riqueza numa velocidade maior que o aumento de suas populações — i.e., é a partir daí que surge de fato a noção de Crescimento Econômico em sua concepção mais relevante – per capita, com aumento do padrão de vida. Junto com ele, alterações profundas no seio social se dão em passos largos — e nem é preciso falar o tanto que isso tem sido potencializado nas últimas duas décadas, na era da Internet, das Redes Sociais e de todo esse papo já manjado na nossa avaliação da contemporaneidade.

No meio dessas transformações, novas demandas aparecem — e novos métodos surgem para potencializar a instrumentalização de gestão do Estado. O progressismo, por exemplo, hoje é associado à defesa de direitos de minorias, valorização do papel da mulher e uma política antidrogas realista (entre outras pautas), o que passa longe do que defendia a turma do Robespierre. O mesmo vale para o “outro lado”, que outrora defendia a manutenção de um Estado centralizador e nacionalista, mas que hoje tem suas vertentes mais direcionadas à moral e à liberdade individual numa esfera mais econômica. No entanto, a despeito dessas evoluções em suas pautas, tais grupos permanecem vinculados aos mesmos rótulos, de séculos atrás, sem que suas nuances possam ser incorporadas a esses novos paradigmas.

Economicamente, a dicotomia ficou ainda mais dificultada: a evolução do método e a transformação da economia em ciência fizeram possível distancia-la da ideologia na medida em que, com matemática e honestidade, economistas vão criando certos consensos — mesmo que estes evoluam e se transformem, como é bem o caso. Assim, nosso espectro se amplia: posso ser progressista em valores sociais, e ortodoxo-liberal no âmbito econômico, por exemplo — um conceito que não cabe na “Esquerda” nem na “Direita”. Aliás, Donald Trump, essa mistura de Jair Bolsonaro com Dilma Rousseff, nos mostra que é possível também ser conservador em valores sociais e protecionista no plano econômico, por mais bizarro que isso pareça. E por aí vai.

No Brasil, para variar, as coisas são mais complicadas. Por algum motivo cultivamos a tal da heterodoxia econômica, que é sequer reconhecida em outros países, mas que aqui não apenas permeia nosso debate, como foi ferramenta de governo nos últimos anos – exaltada na famigerada Nova Matriz Econômica, de Guido Mantega e sua equipe. Ela se associa, numa narrativa poderosa, como sendo a vertente econômica que se importa com o progressismo — e apenas ela, num exercício de Monopólio da Virtude. Essa escola(?), como vimos, por meio da fuga do método e da aposta numa “empiria de convicção histórica”, foi capaz de, além de causar profundo impacto no nosso progresso econômico, se infiltrar no debate político de tal forma que, bizarramente, aqui certos grupos usam o termo neoliberal como ofensa (!).

Na malfadada polarização que vivemos, a heterodoxia naturalmente se incorporou à esquerda, enquanto a ortodoxia, que por definição é neutra, dado seu apreço ao rigor, foi atribuída à direita. Dessa forma, se você escolhe ser, assim como eu, progressista/liberal – para alguns, libertário (em valores) e ortodoxo em política econômica, basicamente você se torna esquizofrênico no debate, porque se encaixa parcialmente nos dois lados — ou seja, ao mesmo tempo você não pertence a nenhum. Ou, se preferir, você se torna o famoso isentão, esse ser que parece não ter convicção sobre nada, mas que, ao não jogar o jogo da dicotomia, na prática se torna apenas chato.

Nos Estados Unidos – que apesar do Trumpismo, esse fenômeno esquisito – é uma democracia madura, a polarização parece alheia nesse ponto: republicanos são conservadores em valores, democratas são reformistas/liberais (mesmo que nem sempre isso tenha sido exatamente assim). E a economia, mais ou menos protecionista a depender de cada um, é ortodoxa — e não por menos é a maior do mundo (o que é outra história, todavia). Para se ter uma ideia, lá, o apelido normal de um democrata é Libs, o que aqui, novamente, seria uma “ofensa para a direita”. Na Europa idem. Parece que fomos premiados com nossa criatividade, então.

Dentro da ortodoxia, há também diferentes vertentes, é claro. A Economia está sujeita à subjetividade humana, alguém vai dizer, e métodos diferentes não necessariamente são excludentes. Modelos de Estado distintos podem suceder sem problemas intelectuais, daí a importância da política na definição de prioridades. O que parece ser um consenso razoável para uma realidade como a brasileira — emergente, porém ainda de renda média — é a ideia de organização do país num modelo estatal regulador de ampla concorrência (aberto/não protecionista, portanto) mas com forte rede de proteção social, que defenda direitos humanos básicos à sua população — sobretudo de acesso — sem criar distorções competitivas por meio de intervenções estatais. É, essencialmente, o ideal social-democrático, que vigorou, em certas medidas, entre 1992 e 2006.

No entanto, de 2014 para cá nosso debate se perdeu entre narrativas que, cada qual com seus problemas, distorceram conceitos importantes da nossa discussão de futuro. E aí, em vez de ir pra esquerda ou pra direita, esses termos obsoletos, andamos para trás. Indo além, num diagnóstico das nossas mazelas, esquecemos que nossos problemas não são os empresários e os bancos, como pensam a tão chamada “Esquerda”, nem a presença do Estado, como afirma a famigerada “Direita”. Os obstáculos do progresso são verticais. Eles residem na corrupção, no compadrio, na ineficiência, na má gestão — presentes no público E no privado — e no contágio do debate, que precisa sair da ideologia e focar, sobretudo, em nosso futuro.

 

Gabriel Brasil, Economista pela UFMG e Mestrando em Economia Política Internacional no Departamento de RI da USP. Escreve também em sua página no Medium.

       

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