Sobre naufrágios e franciscanos: uma crítica à escola de direito da USP

Você no Terraço | por Bruno Salama

Pedi à minha mãe para comprar um quilo de papel almaço na venda. Me bateu um tédio enorme da vida e eu queria escrever. Mas não queria escrever uma poesia. Queria escrever um artigo. Um artigo sobre naufrágios e franciscanos.

Em 10 de abril de 1912, o navio mais luxuoso do mundo partiu de Southampton com destino à Nova Iorque. Antes mesmo do fim da viagem inaugural, um iceberg desmentiu a ousada promessa sob a qual o Titanic fora construído. O navio que jamais afundaria naufragou, levando vidas embora no meio da madrugada e chocando o mundo com uma das maiores tragédias marítimas de todos os tempos. Essa história todo mundo já conhece.

A milhares de quilômetros de distância e sem nenhuma relação com o Titanic, a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco já existia a mais de 80 anos. Sua história vinha sendo construída e se confundindo com a do Brasil, dada a sua imensurável contribuição, não só jurídica, mas também política e cultural, sem a qual o país certamente não seria o mesmo.

A velha e sempre nova Academia já honrou a nação com nove presidentes, além de outros inúmeros políticos sempre lembrados na nossa história. Desde Rodrigues Alves, passando por Washington Luís e Jânio Quadros, chegamos em nomes mais recentes, como os de André Franco Montoro e Fernando Haddad. Movimentos que mudaram o curso da história nacional nasceram no Largo, como o Abolicionismo de Joaquim Nabuco e as Diretas Já de Ulisses Guimarães. A Literatura brasileira está marcada por franciscanos, como os sempre lembrados José de Alencar e Monteiro Lobato. Esses são apenas alguns dos nomes constantes do extenso rol de franciscanos que ajudaram a construir o Brasil que temos hoje.

Ao contrário do Titanic, não houve promessas em sua criação. O posto de melhor da América da Latina não foi prometido e tampouco planejado, mas se impôs pela excelência histórica da Academia e de seus alunos. A produção jurídica, política e cultural jorrava abundantemente das Arcadas.

Apesar do passado memorável, as histórias mais recentes não tem sido motivo de tantas glórias. Para quem está lá hoje, é fácil perceber o quanto se contenta em exaltar o passado, com raras e rasas conquistas no presente e se esquecendo de trabalhar pelo futuro.

A falta de seriedade na faculdade é latente. Alunos, inclusive a besta arrependida que vos escreve, se vangloriam das irregularidades que lá existem. As listas de presença são gabaritadas por poucos alunos sem hesitação. Não poderia ser diferente, visto que até mesmo os professores reprovariam por falta, fossem suas presenças controladas.

As provas não poderiam ser mais simples. A vista grossa com colas é perfeita para quem não se dedica. Para se formar, a dedicação necessária é mínima. Ou menor do que isso. Há um pacto implícito entre os alunos e professores. Estes não demonstram preocupação em estimular o aprendizado e muito menos a busca pelo conhecimento. Aqueles se contentam em não são ser exigidos de quase nada e de lhe serem conferidas notas generosas. Quando raros professores aplicam métodos mais rigorosos, os alunos se revoltam. Quando raros alunos buscam se dedicar, os professores não aparecem.

O descaso com o curso chega a ser um desrespeito com quem daria tudo pela oportunidade de estar lá. Afinal, não nos esqueçamos do vestibular, a catraca das Arcadas, cruel e implacável com os despreparados. Porém, se assemelha à arrebentação das ondas do mar, depois que passa, vem a calmaria que dura cinco anos. Isso se o navio não afundar.

A crise financeira pela qual a faculdade passa também não ajuda. Com salários atrasados, fica impossível pensar em melhorar a precária infraestrutura. Sequer uma biblioteca organizada existe. Banheiros caem aos pedaços. Cadeiras se desmontam em sala de aula. A busca de socorro na inciativa privada é vetada fervorosamente pela comunidade franciscana. E, obviamente, nada é tão ruim que não possa piorar. O Governo recentemente anunciou que o repasse a Universidade de São Paulo será ainda menor em 2016. Nem quero ver.

A cereja do bolo é a arrogância da comunidade franciscana que nos envergonha. Ser franciscanos nos faz de pronto melhor do que os outros. Eu passei e você não. Esse é o brado retumbante que ecoa das arcadas de maneira uníssona. Como se o desempenho em uma prova dissesse muita coisa. Não quer dizer nada. Pensando melhor, diz sim. Diz que franciscanos têm tendência a ter menos respeito pelo próximo. Afinal, fumar em lugares proibidos, interferindo na saúde de todos e desrespeitando a lei, é visto um ato de expressão de liberdade, assim como pichar o patrimônio público tem sido recentemente justificado como um meio de dar voz aos que não são escutados. Não parece difícil pensar em formas mais justas e produtivas de se expressar e de ser escutado.

Apesar da formação cada vez pior, o nome que consta no currículo parece contentar o mercado de trabalho, disposto a treinar pessoas que chegam sem saber muita coisa. Para quem opta pelo concurso público, sabemos que o vestibular já selecionou pessoas capazes de fazerem provas e que terão sucesso nessa escolha. E assim vamos indo, conseguindo o que queremos, a despeito de uma formação distante das expectativas.

Mas de tudo fica um pouco. Das Arcadas fica a forte e crescente consciência social e política, um diferencial positivo que ainda traz alguma contribuição para a sociedade. Defende-se o respeito por minorias que não têm voz, como comunidades indígenas e moradores de rua. Além disso, a discriminação de cor, sexo ou do que for é cada vez menos aceita e mais combatida por ali e pelas ruas da cidade. Os alunos se indignam com alguns dos maiores males de hoje em dia e lutam para acabar com eles.

Só que eu acho muito pouco para quem se orgulha de ser peça importante na história do Brasil. É muito pouco para quem ostenta posição de liderança em nível continental. É tão pouco que tudo parece apenas uma verdade distante que já passou. Sustentando-se em conquistas de outrora, a faculdade vem se desfazendo e parece que não tem mais volta. Estamos no meio do caminho entre Southampton e Nova Iorque, atingindo um iceberg atrás do outro. A água já está no pescoço e daqui a pouco não sobrará mais nada, além de uma história para contar. A questão já não é mais se iremos afundar, mas em quanto tempo.

Bruno Salama Formado na Escola de Direito da USP, no largo São Francisco. Atualmente, trabalha no Escritório Demarest Advogados, na área de M&A.

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4 Comentários

  1. É incrível como o relato se encaixaria perfeitamente no ambiente da Faculdade de Direito do Recife, tão tradicional quanto o Largo de São Francisco. Não sei se porque foram as duas primeiras faculdades do Brasil, mas a realidade é que, a despeito
    da luta em torno dos direitos das minorias, o que é louvável, hoje vigora na FDR um pacto de mediocridade, com listas de
    presença contestáveis, e mais, esquemas de transcrição de aula, onde um aluno assiste e grava a aula e depois, através das redes sociais, transcreve esta aula para o grupo inteiro. Isso está esvaziando as aulas e o interesse pelo conteúdo
    propriamente dito. O bom professor aqui é o professor “gente boa”, que dá uma boa aula, mas não faz chamada nem cobra na prova. É triste o que acontece nas instituições de ensino jurídico mais tradicionais do país.

  2. Apenas a título de esclarecimento, o autor desse texto não é Bruno Meyerhof Salama, também ex-aluno da FADUSP, e atualmente professor da FGV Direito SP.

  3. Nao sei que lideranca eh essa que voce diz que a USP ostenta, porque se olhar a aprovacao nos exames da OAB e a qualidade da producao academica nao ha’ lideranca alguma.
    A unica coisa que a Faculdade de Direito da USP esta’ ostentando e’ arrogancia

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