Você no Terraço | Renato Ribeiro
A parte mais importante do que seremos é o que queremos ser.
Um grupo cada vez maior de jovens espalhados pelo Brasil acredita no debate como meio de transformar nossa política, nosso ensino e nossa sociedade. Dito dessa forma, soa bastante ingênuo e sonhador. “De que debate você está falando? Que jovens são esses”? Rogo-lhes paciência, já direi. Permitam-me, antes, relembrar rapidamente quão grave é o estado de coisas e poderão entender o que inspira e motiva o, por ora, inominado e desconhecido movimento objeto deste artigo.
Descrença generalizada na política. Desde a catarse coletiva esquizofrênica que foram as manifestações de 2013 – por alguns denominadas Jornadas de Junho –, uma coisa ficou muito clara na voz gritada do povo brasileiro: o que está aí não nos serve. “Ora, que grande dramalhão! Assim fica parecendo que se estava a apontar para a totalidade do corpo político brasileiro”. Bom, sim. Foi exatamente o que aconteceu. A rejeição foi, ao menos naquele momento, total – não quanto às personalidades políticas ou aos partidos em si, mas quanto a um modo de agir político.
Por mais que uma figura ou outra tenha sido acolhida em momentos esparsos das manifestações e por mais que a partir dali se tenham dividido novamente as massas entre as velhas trincheiras ideológicas, fato é que, desde 2013, ainda não silenciou, mesmo que sussurrada, aquela indiscernível mas retumbante voz que disse “Basta!”. Do brado desordenado e por vezes contraditório daquelas massas pluriformes, pôde-se retirar ao menos uma essência comum: a negação frontal e inconfundível da cultura política praticada no país.
“E o debate? Onde entra”? Já chego lá. Apenas um momento mais, suplico-lhes.
Sectarismo ideológico, intolerância e baixíssima qualidade discursiva. O debate público brasileiro se afunda ainda mais na era da politicagem e dos discursos rasos. A política é refém do marketing e a sociedade, refém de um radicalismo ideológico fundado na intolerância e na incompreensão da opinião alheia. O debate político nas rodas de conversa e nas redes sociais se assemelha muito às discussões futebolísticas, marcado por convicções meramente estomacais de pessoas que não se dão ao trabalho nem ao menos de buscar entender o outro antes de tentar refutá-lo.
Um olhar para nós mesmos nos revelará que o problema não é a classe política. Jogar a culpa em nossos representantes é, inclusive, parte do problema, que se origina da predominante noção brasileira de que a política se reduz à política pública praticada no âmbito estatal. Essa visão restritiva da política é um dos pilares que sustenta a tão presente ilusão de que reformas procedimentais, sejam elas políticas ou eleitorais, vão realmente mudar e consertar as coisas. Não vão. Não existem atalhos para transformar a cultura política de um povo. A política se faz, antes de tudo, na própria sociedade civil e os representantes que estão aí são, de certa forma, retrato fiel da inépcia moral e da omissão política de nossa nação.
Não há saída de curto prazo. Não há impeachment que nos redima. Não há parlamentarismo, fim da reeleição, voto distrital, lista fechada ou cláusula de barreira que nos salvem. Há um único caminho possível para transformar o Brasil e ele passa por uma profunda mudança de hábitos que nos permita promover valores e exemplos desde nossas vidas privadas até nossa atuação pública, esteja ela relacionada ao Estado ou, principalmente, não. Cada apoio pessoal dado, cada opinião proferida, cada compra e venda realizadas e cada contrato assinado são, em sentido amplo, escolhas políticas. Tudo aquilo que defendemos ou decidimos em nossos bairros, condomínios, clubes, igrejas, escolas e universidades são condutas políticas públicas. Não existe aperfeiçoamento da cultura política sem o zelo pelo legado de valores e exemplos que deixamos institucionalizados para as gerações que nos sucederão. Dedicando-nos a essa árdua empreitada, certamente teremos cidadãos e políticos melhores no futuro.
Ingênuo parece-me continuar a acreditar que parlamentares e gestores deixarão de lado os privilégios do estamento para representar de fato a sociedade civil contra o Estado. Reformas política e eleitoral, por si só, além de não mudarem a essência da prática política, não ocorrerão sem primeiro resguardar as prerrogativas das classes políticas revestidas de poder.
O caminho a ser desbravado, por outro lado, é uma verdadeira epopeia civilizacional de qualificação do discurso. Trata-se de mudar profundamente hábitos cotidianos de gerações que hoje se digladiam pelos privilégios disponíveis ao invés de se dedicarem a deixar uma herança ética. É como dizem: “a culpa é nossa para jogarmos em quem quisermos”. O que não falta são algozes: a Dilma, o Temer, o Cunha, o Gilmar, os professores, os pais, os filhos, os colonizadores, a FIFA e a lista segue. Não passa mesmo de um clichê dizer que a mudança começa de nós mesmos, o que ofereço de diferente neste texto é o como.
Agora, sim, pacientes leitores: ao debate!, ou, melhor dizendo, aos debates ou à prática dos debates no Brasil. Debates competitivos são uma prática antiga e consagrada em muitos países do mundo, que muito recentemente aportou no Brasil e que se tem disseminado de norte a sul do país. Poder-se-ia comparar os debates a um esporte em que se substitui o esforço físico pelo esforço discursivo, mas todo o restante está lá: a competição, a emoção, a premiação, os juízes e até a torcida. Trata-se de uma atividade oral e expressiva com regras que dividem entre os participantes tempos para discursarem e para fazerem perguntas uns aos outros. As regras também determinam a forma como a participação de cada debatedor será avaliada, comumente valorizando mais o conteúdo do discurso do que sua forma.
A prática dos debates competitivos vem suprir uma grave deficiência do ensino brasileiro. Deficiência da qual todos nós somos testemunhas oculares e cognitivas. Existe uma enorme carência no país pelo ensino da oratória e da argumentação. Nas escolas dos EUA e de grande parte da Europa, aprende-se desde cedo a falar em público. O brasileiro, por outro lado, mesmo quando se forma em um curso superior, forma-se sem aprender as técnicas mais básicas de expressão vocal e corporal. Tome-se o exemplo dos cursos de Direito existentes no país. Não há hoje, nem mesmo neles, disciplinas especificamente voltadas para a retórica ou para a oratória.
Tal como os esportes, os debates impactam profundamente a vida de todos os que com eles se envolvem. A diferença é a ênfase na saúde intelectual dos praticantes ao invés da saúde física. Mencionei hiperbolicamente (mas nem tanto) uma epopeia civilizacional pela qualificação do discurso. Os grupos que promovem os debates competitivos no Brasil acreditam que é possível fazê-lo trazendo a prática para o dia a dia de milhares de estudantes de escolas e universidades do país, habituando-os a falarem e a pensarem melhor, acostumando-os à diversidade de opiniões, à divergência, à convicção e à dúvida.
Mesmo com as já abarrotadas rotinas de estudo e de trabalho, jovens estudantes brasileiros têm, cada vez mais, atribuído papel de destaque à prática dos debates competitivos. Sociedades de debates, que são como clubes de prática esportiva, têm sido fundadas nas maiores instituições de ensino do país e muitos têm adotado o hábito de praticar semanalmente o debate como forma de aperfeiçoar sua oratória e de aprimorar sua argumentação. Mais do que dar oportunidade à divergência, os debates competitivos tiram seus participantes de zonas de conforto quanto a suas crenças e opiniões, fazendo-os estudarem e, muitas vezes, até mesmo defenderem pontos de vista com os quais originalmente não concordavam.
Das próprias universidades surgiu uma associação nacional de aproximação dessas iniciativas: o Instituto Brasileiro de Debates, o qual, independentemente de partidos e de governos, é responsável por organizar o Campeonato Brasileiro de Debates, um torneio itinerante que reúne anualmente os melhores debatedores universitários do país. Qualificar o discurso brasileiro com o objetivo de formar uma nova geração de políticos e de cidadãos mais preparados para um debate público de conteúdo, esse é o sonho que inspira os jovens do IBD.
O conhecimento e a experiência obtidos por meio da prática dos debates competitivos produzem impacto direto nas vidas acadêmica, profissional e política de todos aqueles que participam do projeto, o qual, entretanto, vai muito além disso. Sua principal conquista talvez seja a construção de pontes que aproximam realidades em favor da diversidade – pontes entre diferentes opiniões e ideologias; pontes entre corajosos jovens espalhados por todo o país, que se tornam convictos de seus sonhos quando reunidos; pontes entre pessoas, as mais diversas, que vão além da tolerância, além do respeito, e se tornam laços de identidade e de amizade.
Entendo que os leitores tenham desenvolvido, nos últimos tempos, grande resistência a discursos otimistas e esperançosos. O autor também talvez não ajude por ser dado a hipérboles e a suntuosas ambições. Não peço que creiam em mim. Vejam com seus próprios olhos do que estou falando e assistam aos vídeos das finais dos campeonatos brasileiros de debates disponíveis nas páginas do IBD (www.parlibrasil.org e https://www.facebook.com/ibdebates). Convido-os a comparecerem ao III Campeonato Brasileiro de Debates, entre os dias 7 e 10 de setembro de 2016, na Universidade Federal de Santa Catarina, e a assistirem aos melhores debatedores universitários do Brasil. Garanto-lhes, no mínimo, uma pontada de esperança regada a fortes emoções. Verão que o caráter sonhador da proposta é indispensável para seu sucesso.
Mesmo que seja longo e sem atalhos o caminho escolhido por esses jovens espalhados pelo Brasil para indicar o que querem para a democracia brasileira e para ajudá-la a chegar até lá, é auspicioso concluir que, a partir de seu exemplo e do legado que deixam para as próximas gerações, em suas escolas, universidades, famílias e cidades, já nasceu um futuro mais preparado para debater melhor o Brasil.
Renato Ribeiro é mestre em filosofia do direito pela UFMG, presidente e fundador do Instituto Brasileiro de Debates e sócio do escritório Machado Rabelo Advogados.