Nobel 1992: Gary S. Becker | por Lucas Iten Teixeira

Muitos dos laureados descritos neste importante projeto de difusão da ciência econômica foram conhecidos por grandes contribuições em campos específicos da economia. Definitivamente, este não foi o caso de Gary S. Becker (1930-2014), cuja motivação para o prêmio foi “ampliar o domínio da análise microeconômica a uma ampla gama de comportamento humano e interações entre indivíduos (tradução livre)”. Ou seja, ele foi relevante para variadas áreas de estudo (o que pode ser evidenciado pelo farto material bibliográfico ao final desse texto). Além do Prêmio Nobel de Economia em 1992, Becker ganhou a John Bates Clark Medal, destinado a economistas com menos de 40 anos com iminente contribuição à ciência econômica; foi membro da American Academy of Arts and Sciences e ganhou em 2000 a National Medal of Science no campo de Behavioral and Social Science, demonstrando sua importância para todas as ciências sociais.

Gary Becker nasceu na Pensilvânia, numa pequena cidade onde predominava a extração de carvão mineral, e foi filho de pais imigrantes que abandonaram a escola no fim do ensino fundamental. Ainda na infância se mudou para Nova York, onde permaneceu até a graduação em Princeton. Seu interesse em economia se baseou na união entre a matemática e as questões sociais.

Becker ajudou a desenvolver (e a responder) inúmeras questões ligadas ao indivíduo; algumas delas serão detalhadas a seguir. Na Universidade de Chicago, onde passou quase toda a vida acadêmica, definitivamente não pertenceu à suposta prevalência monetarista do seu departamento econômico, atuando em questões de comportamento humano e do bem-estar do indivíduo. No entanto, segundo o próprio laureado, foram as aulas de microeconomia com Milton Friedman que renovaram suas ambições de pesquisa, utilizando a teoria econômica para responder a perguntas práticas envolvendo o mundo real.

Para se notar a relevância e o pioneirismo de Gary Becker para o debate atual, sua tese de doutorado na Universidade de Chicago em 1955 estudou discriminação racial, o que culminou no livro The Economics of Discrimination dois anos depois. É necessário deixar claro que a modelagem da discriminação não tem como objetivo justificá-la, e sim demonstrar os malefícios gerados no mercado de trabalho. Pelo contrário, o modelo construído mostrava que a barreira artificial imposta a minorias pela discriminação gerava ineficiência a todos. A ineficiência do racismo para a sociedade aumentava conforme o grau de monopólio ou existência de reserva de mercado em favor à empresa racista. Na década de 1970, outro laureado (Kenneth Arrow) adicionou assimetria de informação nesse modelo, contribuindo para a ainda incipiente literatura sobre discriminação racial na ciência econômica.

Após dez anos lecionando na Columbia University (começou a lecionar com menos de 30 anos!), e logo após ganhar a Clark Medal (1967), ele retornou à Universidade de Chicago, onde permaneceu pelo resto de sua vida acadêmica.

Um grande mérito de Becker foi exatamente focar no indivíduo e em suas decisões referentes à própria vida. Outro ponto foi o rigor matemático originário da graduação em Princeton, produzindo modelos quantitativos que pudessem explicar as ações dos indivíduos e seus impactos. A adição da racionalidade no comportamento humano abrange um campo da ciência econômica chamada de Economia do Desenvolvimento que ultrapassou as fronteiras desta ciência, impactando nos estudos de demografia, sociologia e direito, mesmo antes da difusão de microdados sobre o indivíduo existentes atualmente em Censos e pesquisas. Dessa forma, temas politicamente incorretos mas tão relevantes para o indivíduo poderiam ser pensados da mesma forma que problemas relacionados à firma na microeconomia. Seu arcabouço teórico possibilitou vários estudos empíricos quando o avanço da informática levou a disponibilidade de dados dos indivíduos.

Um dos estudos desse campo são as decisões familiares, como número de filhos e a alocação de estudo, lazer e trabalho de todos os membros da família.  O livro A Treatise on the Family (1991) vai nesse ponto, dando início à literatura de diferenças de mercado de trabalho entre gêneros. Essa discussão também abrangeu decisões de casamento, assimetrias de informação relacionadas ao divórcio e altruísmo com a publicação do artigo A Theory of Marriage nos anos 1970. Segundo o próprio Becker, o objetivo não era avaliar os determinantes do divórcio e do número de filhos, mas sim seus efeitos sobre a desigualdade e o crescimento econômico. 

Uma outra decisão do indivíduo se refere à sua própria alocação de tempo. Theory of the Allocation of Time (1965) avalia que os indivíduos são ao mesmo tempo produtores e consumidores de seus ativos, como horas de trabalho e gastos (de tempo e dinheiro) com transporte. Assim, o equilíbrio geral da vida do indivíduo se baseia tanto em maximizar sua utilidade, como um salário adequado e disponibilidade para lazer, como na minimização de custos, envolvendo a questão da produtividade. A relevância do artigo de Becker foi introduzir a questão do “salário” fora do trabalho, ou seja, no custo de oportunidade se de investir em outras coisas além do trabalho.

No ponto da produtividade, o indivíduo escolhe a quantidade (e qualidade) de estudo que ele irá buscar para sua vida, de maneira similar ao dilema familiar entre número de filhos e a alocação de capital humano sobre os filhos. Não se trata de uma decisão trivial, pois envolve um futuro que não é claro para a cabeça das pessoas. E em determinado momento da vida, como o ensino superior, pode estar em sentido oposto aos ganhos oriundos do trabalho. O Investment in Human Capital (1964) demonstra que os investimentos em educação podem ser mais relevantes para o crescimento econômico que investimentos realizados em máquinas e equipamentos.

A união da questão do investimento em capital humano com as decisões familiares leva a soluções heterogêneas. Por isso o modelo de investimentos em crianças pode levar em conta, por exemplo, a restrição a crédito para a produção de capital humano ou a possibilidade dos filhos terem habilidades distintas. Existe também a possibilidade de transmissão intergeneracional do status socioeconômico entre famílias. Isto é evidenciado pelos estudos de indicam impacto da educação dos pais sobre a educação e renda dos filhos. No Brasil, por exemplo, infelizmente se observou correlação positiva entre trabalho infantil de filhos e pais. Nesse sentido, a mobilidade econômica pode ser impactada pela decisão de fertilidade e de capital humano das famílias. Becker e Thomes publicaram em 1986 o artigo Human Capital and the Rise and Fall of Families, mostrando a importância do capital humano para explicar desigualdade dentre famílias e entre gerações através de modelos quantitativos. 

As decisões individuais e familiares descritas acima também são impactadas pela expectativa de quanto tempo de vida o indivíduo terá. Com o avanço da saúde durante o século XX e a evolução de condições básicas de saneamento básico, diminuiu-se a mortalidade infantil e a expectativa de vida aumentou para toda a população.  Um de dos orientandos de Gary Becker na Universidade de Chicago foi o brasileiro Rodrigo Soares, com quem escreveu o artigo The Quantity and Quality of Life and the Evolution of World Inequality na American Economic Review (1995), mostrando o impacto das decisões dos indivíduos sobre a economia e a desigualdade entre países.

Novamente, aí se percebe que os estudos de Becker abrangem não apenas a quantidade do bem individual produzido, mas também da qualidade, uma vez que o próprio indivíduo (ou sua família) poderá consumir esse bem. E nesse ponto podem ser exacerbadas a desigualdade de condições entre as pessoas. A pandemia da Covid-19 talvez deixe claro o impacto que a desigualdade de saúde pode gerar na população, algo que Becker já modelava há mais de meio século.

Becker também estudou sobre Economia do Crime, alcançando a área do direito.  Novamente, o laureado se baseia da racionalidade do indivíduo: há incentivos que possam fazer com que alguém cometa um crime, como possíveis receitas, custos relacionados à probabilidade e tempo de punição, além da aversão ao risco. Ou seja, um problema de maximização de lucros similar ao de outras firmas. Becker até explicou lobby político sob o prisma microeconômico (A theory of competition among pressure groups for political influence, 1983), dentre outras interações entre indivíduos. 

Em volta com as discussões recentes sobre desigualdade, saúde e discriminação racial, e em vias da substituição de pessoas por robôs no mercado de trabalho, talvez a audácia de Gary Becker em estudar temas relevantes para a sociedade (e não necessariamente para o mundo acadêmico no momento), aliada ao seu rigor matemático e científico, deva ser cada vez mais lembrada para que a ciência econômica consiga resolver os reais problemas dos indivíduos.

Lucas Iten Teixeira

É mestre e doutor em Economia pela Escola de Economia de São Paulo – Fundação Getúlio Vargas

Links Recomendados

https://www.nobelprize.org/prizes/economic-sciences/1992/becker/biographical/

https://terracoeconomico.com.br/gary-becker-o-homem-que-transformou-tudo-em-economia/

https://en.wikipedia.org/wiki/Gary_Becker

https://www.economist.com/schools-brief/2017/08/05/gary-beckers-concept-of-human-capital

Notas

Becker, Gary S. (1957). The Economics of Discrimination. University of Chicago Press, 178p.

Becker, Gary S. (1964). Human Capital: A Theoretical and Empirical Analysis, with Special Reference to Education.

Becker, G.S. (1965). A Theory of the Allocation of Time. Economic Journal, 75(299), 493-517.

Becker, G.S. (1973). A Theory of Marriage: Part I. Journal of Political Economy Vol. 81, No. 4 (Jul. – Aug., 1973), pp. 813-846.

Becker, G.S. (1974), “Crime and punishment: an economic approach”, Essays in the economics of crime and punishment, New York: National Bureau of Economic Research distributed by Columbia University Press, pp. 1–54,

Becker, G.S. (August 1983). “A theory of competition among pressure groups for political influence”. Quarterly Journal of Economics. 98 (3): 371–400.

Becker, G.S. and N. Tomes (1986). Human Capital and the Rise and Fall of Families. Journal of Labor Economics, 4(3), Part 2, S1-S39.

Becker, G.S. and R.J. Barro (1988). A Reformulation of the Economic Theory of Fertility. Quarterly Journal of Economics, 103(1), 1-25.

Becker, G.S., K.M. Murphy and R. Tamura (1990). Human Capital, Fertility, and Economic Growth. Journal of Political Economy, 98(5), Part 2, S12-S37.

Becker, G.S. (1991). The Demand for Children. Chapter 5 in: G.S. Becker. A Treatise on the Family. Cambridge, Harvard University Press, Enlarged Edition, 135-154.

Becker, G.S. (1991). Family Background and the Opportunities of Children. Chapter 6 in: Becker, Gary S. A Treatise on the Family. Cambridge, Harvard University Press, Enlarged Edition, 155-178.

Becker, G.S., T.J. Philipson and R.R. Soares (2005). The Quantity and Quality of Life and the Evolution of World Inequality. American Economic Review, 95(1), 277-291.

 

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