“O mais importante é inventar o Brasil que nós queremos.”
Darcy Ribeiro
“Brasil, o País do Futuro”
Título do mais conhecido livro de Stefan Zweig
Advertência: calma, muita calma leitor anti-petista ferrenho, pois neste terceiro de três artigos não defenderei que tudo o que os governos Lula I e II e o governo Dilma I e mezzo 2 fizeram foi inútil, mentira, errado. Na verdade, quase tudo, mas não a totalidade das ações e políticas de governo.
A Grande Mentira. Qual foi a cartada de mestre (Ace in the Hole) dada pelo governo petista em 2014? Qual foi sua grande mentira? Por que ela foi usada? Este é o último de três artigos que tentam desvendar a farsa, a ilusão e a mentira implícitas dos governos petistas. Mas, não, não foram as pedaladas em si somente o enredo da Grande Mentira: há algo mais sutil, como veremos.
Billy Wilder (1906–2002) foi um dos mais importantes cineastas que migraram para os EUA e sem dúvida um dos que mais cinicamente criticaram os valores hegemônicos americanos no pós guerra. Podemos atestar isso pelos roteiros e estórias que escolhia, pela forma de dirigir, pelo humor ácido em The Apartment (Mundo do Trabalho), por exemplo ou pela degradação produzida da fama e vaidade em seu próprio meio Sunset Blvd.
Qual seria seu melhor filme? Difícil sempre é responder este tipo de questão. Qual é o melhor Kubrick? O melhor Allen? O melhor Coppolla (este talvez seja mais fácil, The Godfather II, mas quem esqueceria The Conversation?). Dependendo do momento, dependendo do gênero, nossa hierarquia se altera. No caso de BW, quando pendo na crise moral engendrada pelo governo Dilma, vêm-me à mente como o melhor Ace in the Role.
O repórter fracassado, caçador de notícias sensacionalistas, depois de sua última demissão (por mais do que justa causa) Charles Tatum (Kirk Douglas) vai parar em Albuquerque, Novo México. Na procura por trabalho, consegue um no jornal da cidade. Com o passar do tempo e sem nada de relevante para cobrir – Albuquerque nos anos 50 do século passado não era bem LA – vê-se, por ordem do chefe, na obrigação nada desafiadora de fazer uma reportagem sobre uma corrida de cascavéis no interior.
No caminho para o local do certame reptiliano, ele e o fotógrafo que o acompanha fazem uma parada corriqueira num posto de gasolina e descobrem que um cidadão local, Leo Minosa, estava preso em uma mina. Tatum, enfim, está diante de uma potencial matéria de destaque, quiçá não somente regional, mas de âmbito nacional. Ele constrói várias mentiras – não serei spoiler – para fazer a matéria render. Mas, a pior estava baseada no atraso deliberado do resgaste do infeliz, já que havia descoberto uma forma de tirá-lo de lá rapidamente, mas ele a oculta de todos. Quanto mais durasse a notícia, mais dramática ficava a situação, mais matérias ele poderia escrever, maior seria sua notoriedade e, quem sabe, conseguiria emprego num grande jornal, talvez na Califórnia. Ademais, passaria ainda a imagem de amigo de última hora da vitima e de seu salvador. O que acontece ao final? Não serei spoiler II, mas acho que dá para inferir…..
As mentiras de Dilma foram trágicas e moralmente condenáveis como as atitudes de Tatum. Em 2013 e principalmente em 2014, já havia evidências de que algo de podre estava a ocorrer na condução da política fiscal. A bem da verdade, na monetária também. Contudo, vários economistas alentavam para este fato e o surgimento da contabilidade criativa. A proximidade entre Arno Agostin e Dilma não era segredo. Vamos lembrar que Barbosa sai do governo por não aceitar a política fiscal implementada.
Os resultados de tudo isso todos conhecem, ocioso perder tempo aqui com eles. Mas é bom lembrar como se deu a construção de uma narrativa da mentira, principalmente logo após a Copa de 2014, quando enfim a campanha eleitoral ganha fôlego. Lembremos que o discurso da Presidente e de sua campanha era de que a economia estava em ordem e que os outros candidatos vinham com discursos catastrofistas, de complexo de vira lata.
Com a ajuda de seu marqueteiro, as peças publicitárias usadas contra a oposição, notadamente contra Marina Silva, passaram do limite do aceitável em termos de mentira e construção de discurso meramente obscurantista. Vamos lembrar dois filmes importantes dessa campanha, que cá entre nós, contribuiu para rachar de vez o país num maniqueísmo torpe de coxinhas e petralhas. A primeira peça de propaganda que faria Goebels levantar do túmulo e aplaudir é aquela sobre a independência do Banco Central. Parem um pouco de ler este artigo e o vejam, agora com um certo distanciamento temporal e emocional. O vídeo é violento, desinforma sobre algo importante em termos de educação econômica e chega a ser leviano. Mas é eficaz para a construção de uma narrativa da mentira.
Considerem outro vídeo, sobre “se Dilma não for eleita vocês voltarão de onde vieram, da classe pobre”. A estória contada é voltada exatamente para os milhões de brasileiros que ascenderam à chamada classe C. Se qualquer outro candidato ganhasse, haveria a perda de todas as conquistas. Claro, campanha é campanha, mas há limites – ou deveriam haver. Os eleitores de Dilma descobririam que as perdas viriam com Dilma mesmo. Boa parte delas e deles não entende a razão – como em qualquer democracia de massas, assim as coisas se dão.
O mais interessante é ver alguns petistas e simpatizantes – isso também foi dito por ex-ministro – que, agora, com a baixa popularidade de Dilma, atesta-se que “os pobres” são ingratos, que deveriam saber que foi o lulopetismo que os colocou numa melhor situação. Isso é mentira.
Vamos lá, desconstrução de uma narrativa mentirosa.
Lula foi essencial para o Brasil, assim como o PT o é, não era. Os governos de Lula colocaram o combate à desigualdade extrema e à pobreza na agenda das políticas de Estado. Nossas elites são extremamente conservadoras e o discurso hipócrita da meritocracia sempre foi a regra quando do debate sobre pobreza e desigualdade. Sabemos que meritocracia é um valor em si – ou deve sê-lo – quando falamos de diferenças de riqueza e renda entre iguais, ou mais ou menos iguais. Do contrário, tal discurso é insensato. “Sem igualdade de oportunidades, falar de meritocracia é piada”, diria Ricardo Paes de Barros recentemente ao Valor.
Parte da divisão que há hoje no Brasil entre coxinhas e petralhas existe também devido à resistência dos endinheirados – muitos nem tanto – a aceitar que os mais pobres que haviam ascendido tivessem o direito de “participar da festa”. A economia política do desenvolvimento indica-nos que mentalidades custam a mudar, mesmo quando as condições objetivas de produção já mudaram. Mas parte dessa confusão foi, repito, explorada como tática de propaganda no nível de “Protocolos dos Sábios do Sião” pelo agora encarcerado João Santana, reforçando maniqueísmos e mentiras que, como salientei em parte nos dois artigos que antecedem a este, duram pouco. A verdade se impõe.
A queda na desigualdade e na pobreza é obra de FHC I e II e de Lula I e II, mas também de fatores exógenos. Vamos lá: quais seriam as causas da melhoria dos indicadores sociais, principalmente Gini e pobreza? Até onde sabemos, pois isto é objeto de estudo de muitos economistas hoje em dia, seriam:
- O controle da inflação feito pelo Plano Real, bem como o relativo, parcial, saneamento das contas públicas, diminuiu sensivelmente o imposto inflacionário que atingia os mais pobres e permitiu ao Estado ter condições de implementar políticas públicas sociais, a começar pelas mandatórias, estabelecidas na Constituição de 1988, aliás não assinada pelo PT;
- Por falar na “Cidadã”, a necessidade legal de sua implementação de facto, não apenas de jure, impôs aos governos FHC a necessidade de aumentar o gasto social;
- A transição demográfica que ocorre em função da urbanização acelerada do Brasil, entre os anos 50 e 80 e a inflexão na taxa de crescimento populacional e na fertilidade vão surtir resultado na primeira década do Século XXI, com uma mudança estrutural no mercado de trabalho;
- O crescimento promovido por Lula I – que não foi somente “efeito China”, mas também de reformas microeconômicas liberais implementadas durante o governo – puxou tanto o emprego como a renda do salário dos mais pobres, lembrando que houve formalização do trabalho e aumentos do salário mínimo (inconsistentes agora, mas ocorreram);
- A partir da segunda década deste século começam a aparecer os frutos do Bolsa Família (que não é uma política de redistribuição de renda numa mesma geração, mas intergeracional), com mão-de-obra jovem mais qualificada, o que, com crescimento, eleva o salário dos mais pobres mais do que os dos mais ricos.
Há ainda muito o que se estudar – e até se questionar sobre o acima afirmado – mas não foi o simples fato de Lula entrar que o Brasil melhorou em termos de desigualdade e pobreza. Existem lags de causalidade. Causação é um conceito científico para lá de importante e por isso o ensino de ciências – cabe aqui breve comentário – é tão importante para o desenvolvimento do raciocínio crítico. Se qualquer um pegar tabelas de Gini e pobreza verá que a partir de 2003 tudo começa a mudar, para melhor. Pois é, mas existem causas, principalmente quando trabalhamos com tempo e fenômenos complexos como o social (isso vale para os meteorológicos também, por sinal), espalhadas pelos anos, pelo passado. Seus efeitos demoram para aparecer.
A Grande Mentira não foi somente a enganação deliberadamente colocada na campanha eleitoral de 2014, estelionato. Ela se baseia na construção de uma narrativa falsa. Repito, o mérito dessa esquerda meio estranha, que dá dinheiro do trabalhador para eikes batistas, foi realmente colocar a pobreza e a desigualdade como problemas a serem atacados. Mas, afirmar que foram as políticas do lulopetismo, somente elas, responsáveis por isso, é má fé ou ignorância econômica ou, como sempre digo, um pouco de cada uma.
Não vou rediscutir aqui algo que o eleitor já deve estar cansado de saber. A Grande Mentira se baseou também nas pedaladas, na contabilidade criativa, na destruição sistemática da ordem fiscal e monetária conquistada a duras penas. Para mim isto é chover no molhado. Neste artigo, contudo, desejei apenas finalizar a trilogia dando destaque a uma mentira, nem sempre revelada como tal.
Mas devo reconhecer que a “Nova Matriz Macroeconômica” não foi fruto da desonestidade, mas da ignorância econômica mesmo. O que preocupa é ainda uma certa esquerda, petista e do PSOL, ignorante em termos de economia. Melhor dizendo, a falta de conhecimentos básicos de economia por parte dos intelectuais orgânicos do PT e PSOL – e a racionalização que fazem sobre os fracassos com os apelos a teorias conspiratórias e a devoção a uma crença voluntarista – são entraves não somente para o sucesso eleitoral desses partidos, mas também para a construção de um debate mais honesto e informado sobre políticas econômicas e sociais. Neste sentido, recomendo fortemente a leitura de artigo recente na Folha de São Paulo sobre economia e a esquerda daquele que hoje considero o principal intelectual à esquerda no Brasil, Celso Rocha de Barros.
Antes de acabar, um breve comentário. O que queremos ser? Creio que a maioria dos brasileiros quer crescimento, estabilidade monetária e combate às desigualdades e pobreza. Este foi o sinal dado pela reeleição de Lula e pela eleição daquela que nem vereadora foi, Dilma Rousseff. Creio que desejamos mais. Precisamos buscar nosso sonho. Em geral brasileiros oscilam entre a utopia e a distopia, ambas irracionais. O Brasil é ainda half full, half empty, mas o momento pelo qual passamos nos coloca do lado “meio cheio”, ao contrário do que a leitura comum que se faz do país hoje coloca (leitura distópica).
Millôr Fernandes escreveu, “Brasil, o país do faturo”, Paulo Francis, “Talvez o Brasil já tenha acabado e a gente não tenha se dado conta disso”, Raymundo Faoro, “Acho que a história do Brasil é um romance sem heróis”, Stanislaw Ponte Preta, “A prosperidade de alguns homens públicos do Brasil é uma prova evidente de que eles vêm lutando pelo progresso do nosso subdesenvolvimento”, Millôr, mais uma vez, “O Brasil é realmente muito amplo e luxuoso. O serviço é que é péssimo”, Roberto Campos, “O Brasil é um país que não perde uma boa oportunidade de perder uma boa oportunidade”, Barão de Itararé, Aparício Torelli, “O Brasil é feito por nós. Só falta agora, desatar os nós”.
Há algo de verdadeiro sobre nós nestas frases? Sim e não. Há algo que o dinamismo econômico, social e informacional do país passa a não tolerar, talvez muito do que subliminarmente acima está colocado. Nossa mania nacional é tentar prever o passado, como seríamos se não o fossemos. Creio ser mais sensato desenhar o futuro, a partir do que somos.
Nota: recomendo aqui a leitura, com apresentação de Caetano Veloso, de Trópicos Utópicos, de Eduardo Giannetti da Fonseca, lançado dia 27 de junho, pela Cia das Letras. Vale!
MARCOS FERNANDES G DA SILVA, pesquisado associado de políticas públicas (CEPESP/FGV), professor de microeconomia, ética e governo (FGV/EAESP e Escola de Direito de São Paulo da FGV) e economista da Fundação Getulio Vargas marcos.fernandes@fgv.br