Zika vírus: saberíamos mais se os pesquisadores fossem economistas?

por Renata Kotscho Velloso | Você no Terraço

Entre 2001 e 2014 o Brasil reportava em média cerca de 163 casos de bebês com microcefalia por ano. No ano passado esse número deu um salto para 4.783 casos, um aumento de quase 30 vezes. Como esse suposto salto aconteceu durante a epidemia de Zika virus, levantou-se a hipótese de que esses dois fatores tem uma associação de causa e efeito.

 Mas antes de chegarmos a qualquer conclusão, vamos olhar para os dados de maneira mais detalhada. Desses 4.783 casos, apenas 387 deles (8%) tem características de infecção congênita. Vamos lembrar que microcefalia não é uma doença, é uma medida arbitrária de tamanho. Nem toda pessoa com baixa estatura tem nanismo, assim como nem toda pessoa com o crânio menor do que o normal tem algum problema. Desses 387 casos, apenas 17 (0.35%) tiveram confirmação laboratorial de Zika virus. Também tivemos 76 fetos mortos com microcefalia nesse período sendo que em 5 deles o Zika vírus foi identificado no tecido fetal. Todos esses dados vem do Brasil.

 Na Polinésia Francesa, outro local com casos de Zika vírus, também houve um salto nos casos de microcefalia. Mas é complicado dar relevância estatística para números tão pequenos: a média anual passou de 1 para 9 casos. Tivemos também um caso no Havai onde um bebê com microcefalia teve confirmação laboratorial de Zika virus e um caso na Eslovênia na qual o DNA viral foi encontrado na autópsia do cérebro fetal[1]. Esse último caso foi publicado no New England Journal of Medicine -NEJM,  o periódico mais conceituado entre aqueles que abordam medicina geral, vamos falar dele mais pra frente.

 Em contrapartida, a Colômbia afirma que não teve nenhum caso de microcefalia entre as 3.177 gestantes infectadas com o Zika vírus.

 Vamos então revisar os fatos que temos até o momento:
  1. O Brasil está passando por uma epidemia de Zika vírus. O primeiro caso confirmado ocorreu em Abril de 2015 e até o momento o governo estima que entre 500 mil e 1.5 milhão de pessoas foram contaminadas.
  2. Sabemos também que há transmissão fetal entre a gestante e o feto, uma vez que vírus foi encontrado várias vezes em tecido fetal. Temos ainda pelo menos um caso de que o vírus foi encontrado no cérebro do feto, ou seja, cruzou a barreira hematoencefálica o que possibilita ter prejudicado o desenvolvimento cerebral.
  3. Também sabemos que outros vírus (como por exemplo a Rubéola e o Citomegalovírus) podem causar alterações no desenvolvimento cerebral. Porém não temos evidências de que outros vírus do mesmo gênero que o Zika, o Flavivirus, como a dengue e a febre amarela causem problemas semelhantes.
Esses são os fatos, agora temos as dúvidas:
  1. Há de fato um surto de microcefalia no Brasil? Nos EUA, a prevalência de microcefalia varia entre 2 e 12 por 10 mil nascimentos. Se aplicarmos essa mesma taxa para o Brasil, onde nascem cerca de 3 milhões de crianças por ano, teríamos entre  600 a 3.600 casos de microcefalia esperados, e não 163 como estava sendo reportado. Ainda assim, o número de 4.783 estaria acima do topo da estimativa. Seria esse número real ou fruto de um exagero no número de casos reportados?
  2. Por que na Colômbia não tivemos nenhum caso? Pode ser que seja só questão de tempo. Acredita-se que os danos fetais ocorrem quando a gestante é contaminada no início da gestação. Como o primeiro caso confirmado de Zika na Colômbia aconteceu em Outubro de 2015, pode ser que ainda não tenha dado tempo para essas crianças nascerem. Também pode ser que na Colômbia tenha um tipo de cepa diferente do vírus, ou uma incidência maior de aborto, ou uma falha no sistema de avaliação dos bebês.

 A organização mundial de saúde soltou um relatório no início do mês (de onde vem os dados que apresentei até aqui[2]) afirmando que há uma forte suspeita na relação entre Zika vírus e microcefalia, ainda que não esteja totalmente comprovado cientificamente. É aqui que começa a provocação com os economistas.

[caption id="attachment_6149" align="aligncenter" width="640"]img_o_que_e_microcefalia_22457_orig-640x389 Ciência e microcefalia: é tão simples achar as causas? Fonte: Brasiltelemedicina.com.br[/caption]

 Um amigo meu, PhD em economia, disse que “forte suspeita” ou “provável relação” causal entre o Zika Virus e a microcefalia eram termos muito fortes. Que dadas as evidências que tínhamos até o momento no máximo poderíamos dizer que essa associação causal é “possível” ou melhor “plausível”. Um outro economista tirou sarro da série de casos, 1, no artigo publicado pelo NEJM, e disse que um trabalho desse jamais teria sido aceito em uma publicação econômica de mesmo prestígio. Um terceiro afirmou ainda que, devido ao fato da economia não ter como testar as suas hipóteses em laboratórios, os bons economistas tem uma afinidade maior com o instrumental estatístico e matemático do que os pesquisadores da área médica.

 Vamos comparar o processo de publicação do NEJM com o American Economic Review, que junto com a Econometrica é a publicação de maior prestígio na área econômica.

 O NEJM recebe cerca de 5.000 trabalhos por ano, e publica cerca de 5% desse total. Já a AER recebe um volume menor, de cerca de 1.700 trabalhos, e tem um percentual de publicação superior, 7%. Então se pensarmos apenas em termos numéricos, a competição no NEJM é maior. Dizem por aí que mais competição gera mais eficiência, mas esse é apenas um dado.

 Por outro lado, o processo de revisão do AER é bem mais rigoroso. Em média, um artigo leva cerca de 90 semanas entre ser submetido e ser publicado, enquanto que no NEJM a média é de 24 semanas. O NEJM também tem um processo de “fast track” que deve ter sido usado para esse estudo de caso da Eslovênia com apenas 1 feto, nesses processo um artigo pode ser publicado em até 2 semanas após ter sido submetido.

 Os economistas também escrevem bem mais. O tamanho médio de cada artigo publicado no AER é de 32 páginas, enquanto no NEJM é de 3,5. Se tamanho for documento, acho que aqui não há muita margem para dúvida. Os estudos econômicos são bem mais detalhados.

 Como ocorre na maior parte dos jornais das ciências da natureza, o fator de impacto do NEJM é muito maior do que do AER. O fator de impacto é medido pelo número de citações que os artigos publicados pelos periódicos recebem no prazo de 2 anos após serem publicados. O fator de impacto do NEJM é 55.87 enquanto do AER é de 2.69.

 Por outro lado, o fator de retração[3], ou seja, o número de vezes que um artigo do NEJM foi refutado por um artigo subsequente é muito maior do que no AER. Aliás o instituto que calcula retração está tentando entender porque o nível de retração dos periódicos de administração e economia são muito menores do que em outros campos da ciência. Segundo o Retraction Watch, o número de retrações que ocorre em um ano nas publicações econômicas é menor do que ocorre em um mês nas outras ciências.[4]

 Fazer afirmações de causa e efeito é algo muito sério. O fato de dois fatores terem acontecido ao mesmo tempo não significa que um tenha causado o outro. Um estudo médico, que já foi refutado várias vezes mas ainda causa transtorno afirmava que a vacina MMR (contra sarampo caxumba e rubéola) causava autismo. Isso já foi provado errado, o que acontece é que a fase de desenvolvimento infantil em que o autismo costuma ser diagnosticado coincide com o de vacinação. Mas agora tirar minhoca da cabeça das pessoas é bem mais difícil do que colocar.

 Novos estudos e o tempo dirão se de fato o Zika vírus causa ou não microcefalia. A vantagem da ciência médica é que cedo ou tarde a verdade irrefutável acaba chegando. E na economia?

Renata K. Velloso Médica, formada em administração pública, vive e trabalha na Califórnia. 1624995_10203286414704914_1165158734_o

[1] http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/nejmoa1600651 [2] http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/204454/1/zikasitrep_19Feb2016_eng.pdf?ua=1 [3] http://retractionwatch.com/2011/08/11/is-it-time-for-a-retraction-index/ [4] http://retractionwatch.com/2012/12/12/why-arent-there-more-retractions-in-business-and-economics-journals/

Renata Velloso

Se de médico e louco todo mundo tem um pouco, Renata tem muito. Logo após se formar em Administração Pública pela EAESP-FGV, trabalhou no mercado financeiro com passagem pelo Citibank, Chase e JPMorgan. Certo dia, cansada da vida boa e rica no ar condicionado, resolveu abandonar tudo para ir estudar Medicina na Unicamp, onde se formou em 2010. Atualmente, além de ser bela e recatada, trabalha com projetos de inovação na área de saúde no Vale do Silício na Califórnia e também é autora do Criando Unicórnios, um livro de empreendedorismo para jovens e adolescentes.

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