O canadense Robert A. Mundell foi o vencedor do Prêmio Nobel de 1999 por seus trabalhos seminais em economia internacional. Famoso pelo modelo Mundell-Fleming, ele também se destacou pelos trabalhos pioneiros sobre áreas monetárias comuns, por isso sendo muitas vezes chamado de “pai do euro”. Tais trabalhos remetem principalmente aos anos 60, no início de sua carreira e período em que fez suas maiores contribuições acadêmicas, que rapidamente transformaram a pesquisa em economia internacional. Nas décadas seguintes, ele acabou se notabilizando mais por seu engajamento em discussões menos acadêmicas e mais controversas, em particular na agenda de corte de impostos (Supply-Side Economics), o que lhe rendeu a alcunha de “grande excêntrico” pela revista britânica The Economist. Neste pequeno texto, exploramos mais um pouco da vida e da carreira do laureado de 1999.
1. Mini Biografia
Nascido em 1932, no Canadá, Mundell graduou-se em 1953 pela Universidade de British Columbia, cursou o mestrado na Universidade de Washington e completou seu PhD no MIT em 1956, depois de ter passado um ano na LSE, onde foi trabalhar em sua tese sob a supervisão de James Meade (Prêmio Nobel em 1977). No MIT, foi influenciado, dentre outros, por Paul Samuelson e Charles Kindleberger, seu orientador.
Após seu doutorado, passou por vários lugares, dentre eles Chicago (pós-doutorado), Stanford e John Hopkins University (Bologna), até chegar para uma temporada no FMI, onde foi recrutado pelo chefe do departamento de pesquisa, Jacques Polak, que tinha bastante interesse em suas pesquisas em economia internacional. Laura Wallace conta que Polak lembrava de ter feito um grande esforço para contratar Mundell, a quem ele considerava bastante corajoso por estudar taxas de câmbio flexíveis quando o tópico era considerado um grande tabu. No FMI, Mundell ficou de 1961 a 1963.
Entre 1965 e 1971, Mundell esteve no departamento econômico da Universidade de Chicago, participando de um período intenso em pesquisa e atividades intelectuais e que contava com nomes como Milton Friedman, George Stigler, Harry Johnson, dentre outros, e de onde saíram vários pesquisadores que seguiram sua linha, como Rudi Dornbusch, Michael Mussa e Jacob Frankel.
Em 1974 chegou à Universidade de Columbia, onde é professor até hoje. Vale dizer que Mundell sempre gostou de lecionar em diversas partes do mundo ao mesmo tempo. Entre 1965 e 1975, ele passava temporadas regulares na Europa, onde foi professor de verão na Universidade de Genebra. Nas décadas seguintes, continuou dando aulas em diferentes países, incluindo a China.
Ao longo da carreira, foi consultor de diversos governos, empresas e organizações, como Nações Unidas, FMI, Banco Mundial, Comissão Europeia, Fed e Tesouro americano, dentre outros.
Academicamente, as principais contribuições de Mundell, e aquelas que lhe deram o Nobel, datam dos anos 60, época de grande pesquisa e muitas publicações, e se concentram especialmente no estudo de políticas econômicas em economia aberta e de áreas monetárias comuns, como veremos a seguir.
2. Políticas econômicas em economia aberta
Qualquer estudante de graduação conhece o modelo Mundell-Fleming, ou IS-LM-BP. Desenvolvido nos anos 60, ele continua presente na maioria dos livros-texto de macroeconomia e economia internacional. A grande inovação desse modelo foi estender o clássico modelo IS-LM, de economia fechada, para pequenas economias abertas (comércio e fluxos de capital), com o objetivo de avaliar os efeitos de curto prazo de políticas econômicas (monetária e fiscal) sob diferentes regimes cambiais (taxas fixas ou flexíveis).
Para compreender a importância do modelo, é preciso entender o contexto da época. Naquele tempo, o modelo IS-LM era uma das principais ferramentas para a análise macroeconômica, mas se restringia a economias fechadas. Tal característica não era tão prejudicial, uma vez que as economias nacionais eram de fato muito fechadas, especialmente no que se refere a mobilidade de capitais. O regime monetário internacional também era muito diferente: as taxas de câmbio operavam alinhadas através de um sistema global de taxas fixas, no contexto de Bretton Woods. No início dos anos 60, portanto, o modelo parecia mais uma curiosidade acadêmica de Mundell, inspirada em parte por conta sua origem canadense.
As principais conclusões do modelo indicavam que os efeitos das políticas econômicas dependiam crucialmente do regime de câmbio: com alta mobilidade de capital, sob regime de câmbio flutuante, a política fiscal seria inócua para aumentar o produto e, sob regime de câmbio fixo, a política monetária seria ineficaz. A partir disso, originou-se o famoso conceito de trindade impossível: um país não conseguiria ter política monetária independente sob câmbio fixo e livre mobilidade de capitais.
Cumpre notar que estamos falando do início dos anos 60, então o modelo é bastante simples para os dias de hoje, com hipóteses simplificadas (rigidez de preço completa no curto prazo, formação de expectativas nos mercados financeiros) e sem microfundamentações (o que é um problema especialmente para a política fiscal). Essas limitações foram sendo endereçadas ao longo do tempo, muito por conta de seus alunos, como Dornbusch, e alunos de seus alunos, como Obstfeld e Rogoff. Mesmo assim, em muitas casos as conclusões seguiram similares, fazendo com que, dessa forma, o modelo Mundell-Fleming continuasse como o work-horse da disciplina, muito por conta de sua clareza e simplicidade.
A título de curiosidade, ressalta-se que o modelo foi criado de maneira independente por Mundell e Fleming, que coincidentemente também era do Fundo Ambos tiveram algum contato no FMI, mas não trabalharam juntos no modelo, que só veio a ter esse nome anos depois. O próprio Mundell conta a história do modelo e de sua relação com Fleming (Mundell, 2001 e Vane, 2006).
O modelo Mundell-Fleming preocupava-se mais com o curto prazo, mas Mundell não ficou só nisso. A dinâmica monetária foi um tema importante de sua pesquisa, incluindo a abordagem monetária do balanço de pagamentos, um tema em que Jacques Polak havia sido pioneiro. A abordagem, posteriormente desenvolvida por muitos de seus alunos em Chicago (Rudi Dornbusch, Jacob Frenkel e Michael Mussa), foi considerada por muito tempo como uma referência de longo prazo para análise de políticas de estabilização.
Ainda dentro da agenda das políticas monetária e fiscal, vale notar o papel de sua pesquisa no debate público. No início dos anos 60, havia uma discussão acalorada em relação à política econômica do Presidente Kennedy, na qual a maior parte dos economistas defendia um orçamento equilibrado, pelo lado da política fiscal, e baixas taxas de juros, pelo lado da política monetária. Mundell, em um trabalho de 1962, (Appropriate Use of Monetary and Fiscal Policy for Internal and External Stability – IMF staff paper), inovou ao defender o contrário: sob regime de câmbio fixo, a política monetária deveria se ocupar do equilíbrio externo, enquanto a política fiscal deveria ser utilizada para estimular a economia. Uma das consequências desse debate foi a mudança no mix de política econômica, com o corte de impostos sendo adotado em 1964.
A maioria de seus artigos no tópico políticas econômicas em uma economia aberta estão em seus livros International Economics (1968) e Monetary Theory (1971).
Áreas monetárias comuns
É também na área de economia internacional que vem a segunda grande contribuição de Mundell. Trata-se de sua pesquisa seminal sobre áreas monetárias comuns. Em que circunstâncias países poderiam ter uma moeda comum?
Por um lado, a adoção de uma moeda única poderia trazer grandes vantagens: reduzir custos de transação, incluindo o custo de conversão das moedas, reduzir a incerteza cambial e de preços relativos. Por outro lado, quando países compartilham a moeda, eles acabam abdicando da política monetária e cambial. Seria mais difícil alcançar o pleno emprego quando choques demandassem a redução de salários em uma região particular, uma vez que o país não poderia desvalorizar sua moeda.
Esse último problema, contudo, estaria parcialmente resolvido em regiões onde houvesse ampla mobilidade do fator trabalho. Essa seria, portanto, a condição básica que favoreceria a adoção de uma moeda comum e a principal conclusão da análise.
Mundell foi pioneiro nessa agenda de pesquisa. Além disso, ele fez o primeiro plano para uma moeda europeia em 1969. Por conta desses fatores, muitas vezes o chamam de “o pai do Euro”, moeda lançada em 1999. De fato, Mundell foi e ainda é um grande entusiasta da moeda europeia.
Apesar disso, uma questão curiosa é que, sem contar com livre mobilidade do fator trabalho, a zona do Euro não deveria ser uma área monetária ótima, ao menos segundo a teoria de Mundell. Haveria alguma contradição? Mundell já foi perguntado sobre isso diversas vezes e em uma delas respondeu que não: “labor mobility is an important escape valve, but it isn’t the end-all of the theory of optimum currency areas. Even if every European were completely immobile, rooted in one place, it wouldn’t mean that Europe should have 300 million currencies, one currency for each person!“.
A partir de seus trabalhos seminais, Mundell se debruçou no debate público sobre regimes monetários internacionais e, ao longo dos anos, passou a defender sistemas globais mais coordenados. Para ele, o regime de Bretton Woods funcionava de maneira satisfatória e não deveria ter sido descartado totalmente. Em algum momento dos anos 80, quando a inflação alcançou dois dígitos, chegou a defender a volta do padrão-ouro. Também chegou a advogar pela criação de algo próximo a uma moeda global.
Nesse tópico, vale ressaltar que Mundell tinha a visão oposta de seu colega em Chicago, Milton Friedman, que defendia um regime de taxas flexíveis. Ambos travaram interessantes discussões em torno disso.
Supply-Side Economics
Nos anos 70, Mundell foi progressivamente mudando o foco de sua agenda, em direção ao debate público e a temas mais aplicados. Dois assuntos sobressaíram: Sistema Monetário Internacional (já discutido acima) e o Supply-Side Economics.
O Supply-Side Economics poder ser brevemente definido como uma corrente de pensamento que, dentre outras coisas, aborda o problema do crescimento pelo lado da oferta e tem como principal bandeira o corte de impostos. No começo dos anos 70, com a produtividade desacelerando (e com a estagflação trazendo novos desafios teóricos), seus defensores argumentavam que a taxação desencorajava o investimento e que a solução passaria por corte drástico de impostos, trazendo investimento, produtividade, crescimento e emprego.
Essa agenda acabou tendo uma grande influência sobre o programa do partido Republicano e, em especial, ao governo de Ronald Reagan. Mundell não só participou do movimento, como foi um dos seus principais nomes, o que fez dele um tipo de guru, além de uma espécie de conselheiro informal da administração Reagan, que assumiu em 1981.
Em realidade, ainda no final dos anos 60 e início dos anos 70, Mundell já defendia o corte de impostos como forma de combater a recessão. Tentou influenciar a administração de Richard Nixon, mas não teve sucesso naquele momento: sofreu oposição até mesmo de seu aliado Friedman, no que foi chamado de “Chicago Split” por jornais da época, segundo ele mesmo conta.
Em seguida, Mundell conseguiu influenciar a política econômica no Canadá, quando em 1973 o governo de lá ajustou as faixas de imposto pela inflação, seguindo suas recomendações. Mas foi logo depois que o Supply-Side Economics começou a ganhar força, especialmente a partir de 1974, quando o conceito foi introduzido pelo colunista do Wall Street Journal, Jude Wanniski. Wanniski, vale dizer, foi um dos principais difusores da corrente e o criador do conceito da curva de Laffer. Durante os anos 80, durante o governo Reagan, a escola atingiu o seu auge, com a implementação de amplo programa de corte de impostos. Os desequilíbrios fiscais, contudo, fizeram com que parte dos cortes tenha sido revertida com o tempo.
Vale lembrar que o Prêmio Nobel de Mundell foi dado por “his analysis of monetary and fiscal policy under different exchange rate regimes and his analysis of optimum currency areas”. Não incorporou, portanto, sua atuação e trabalhos no âmbito do Supply Side Economics, ainda que alguns tenham tentado associar o prêmio a esta corrente de ideias.
Considerações finais
Neste texto, buscou-se apresentar o principais legados da carreira do economista Robert Mundell. Como pode ser percebido, sua carreira profissional foi marcada por duas fases muito claras. Na primeira, contribuições seminais no campo da economia internacional, incrivelmente à frente de seu tempo. Paul Krugman escreveu que seu trabalho foi tão central para o field, tão seminal, que em muitas controvérsias teóricas, suas ideias formam a base para os dois lados do debate.
Na segunda fase da carreira, mais controversa, a maioria de suas posições não foi abraçada por seus pares. Ele se tornou um guru do Supply-Side Economics, ao mesmo tempo em que foi chamado diversas vezes de “great eccentric” pela imprensa. Vale notar que, no final dos anos 60, Mundell comprou um castelo na Toscana (Itália), o “Palazzo Mundell”, com mais de 65 quartos, onde não só começou a passar temporadas, como também costumava organizar seminários fora do circuito acadêmico tradicional.
O prêmio, como já falado, foi para o jovem Mundell, cuja pesquisa estimulou a pensar em problemas que só tornariam quentes muitos anos depois. Certa vez, um de seus orientandos, Michael Mussa, foi perguntado se havia alguma inconsistência no fato de Mundell, ao mesmo tempo, ter sido um dos pioneiros da macroeconomia internacional moderna e ter apoiado tantas ideias fora do mainstream econômico. A resposta foi que não havia contradição: “Bob has always been an enormously stimulating and unorthodox thinker. So there has been a consistency. His contributions were related partly to his willingness to think outside the box.”
Guilherme Tinoco
Graduado em economia pela UFMG e mestre em Economia pela FEA/USP.
Notas
Appelbaum, B. The Economist´s hour. Cap.4. Ed. Little, Brown and Company. 2019
Boughton, J. On the origins of the Fleming-Mundell Model. IMF Working Paper, 2002.
Dornbusch, R. The Chicago School in the 1960s. Policy Options, 2001.
The Economist. The Man of the hour. 14/10/1999
Krugman, P. A neglected nation gets its Nobel. 1999
Mundell, R. On the History of the Mundell-Fleming Model. IMF Staff Paper Vol. 47 Special Issue. 2001
New York Times. Eccentric economist: Robert A. Mundell – Supply-Side’s Intellectual guru. 12/01/1986
Rose, A. A Review of Some of the Contributions of Robert A. Mundell, Winner of the 1999 Nobel Memorial Prize in Economics. Scandinavian Journal of Economics, 2000.
Salvatore, D. Three Brilliant Ideas, One Nobel. Journal of Policy Modeling. Editorial. 2000
Vane, H. e Mulhearn, C. Interview with Robert A. Mundell. Journal of Economic Perspectives, v.20, 2006.
Wallace, L. Ahead of his time. Finance & Development N.3, V. 43. International Monetary Fund, September 2006.