Reforma trabalhista: uma crônica do trabalhador brasileiro

Luciano estava verdadeiramente de saco cheio de seu trabalho. Há mais de 10 anos na mesma empresa, havia começado como estagiário e sua posição atual não lhe dava mais motivações. Luciano, então, escolheu sua estratégia: não pediria demissão – esperaria que Joana, a dona da pequena empresa, o fizesse; afinal, “aquela grana da multa vai fazer muita diferença”. Trabalharia o suficiente para não causar uma demissão por justa causa, mas com má vontade e desleixo o suficiente para que Joana não tivesse outra alternativa que fosse diferente de demiti-lo. Após meses de cara feia e relatórios com base no “copia e cola”, Joana pôde festejar quando Luciano encontrou outro emprego – não precisaria pagar a multa, e poderia substituir Luciano. Todos felizes? Nem tanto. Ao não fazer seu trabalho direito, Luciano prejudicou Rafael, seu colega de trabalho, que passou a cumprir as atividades de dois, sem poder receber a mais para isso, uma vez que Joana temia que funcionários com cargo similar à Rafael escolhessem o caminho judicial para cobrar o mesmo aumento – um custo que no momento não cabia no orçamento da pequena empresa de Joana.

Mariana, empregada doméstica e babá, decidiu ouvir os conselhos de suas colegas e largar seu trabalho em que recebia mensalmente um salário mínimo para trabalhar de segunda a sexta e passar a trabalhar como diarista durante parte da semana e babá aos finais de semana. “O dinheiro é melhor, o trabalho é o mesmo”. Tudo ia bem, até Mariana quebrar o pé. Após duas semanas sem poder trabalhar devido ao pé engessado, as seções de fisioterapia semanais a impossibilitaram de ganhar o que havia calculado na ponta do lápis. Sem poder trabalhar, não poderia tampouco usar cobertura do INSS, pois deixara de ter acesso aos benefícios de um trabalhador formal com carteira assinada quando optou por prestar serviço a dois empregadores. Quando melhorou, Mariana decidiu voltar à rotina antiga de empregada doméstica mensal – poderia ganhar mais com os dois trabalhos distintos, mas era muito arriscado.

Finalmente, Gabriela. Gabriela tinha uma carreira promissora à frente. Completou o ensino médio, ingressou em uma faculdade pública de ponta, fazia um estágio bom – não pagava muito, mas o suficiente para suas poucas contas como jovem solteira. Porém, um evento não planejado mudou tudo para Gabi. Um filho. Morando de volta com os pais, Gabi conseguiu concluir a graduação e achou que assim conseguiria voltar ao mercado de trabalho. Ledo engano. A creche fechava às 17:00 e Gabi era analista junior, registrada na CLT; como tal, infelizmente não poderia trabalhar de casa ou mesmo fazer um almoço mais curto para compensar e sair mais cedo ao final do expediente. Com seu filho agora com três anos, Gabi voltou ao mercado de trabalho, mas é hoje a mais velha analista júnior entre os colegas.

Além de milimetricamente calculadas para ocupar um parágrafo cada, o que tais histórias têm em comum? Todas elas poderiam ter tido finais diferentes sob a nova legislação trabalhista, em vigor desde 11 de novembro de 2017. Visando dar maior flexibilidade às relações trabalhistas no Brasil, formalizar situações já existentes e reduzir a incerteza jurídica, as mudanças à Consolidação das Leis de Trabalho (a famosa CLT) de 1943 passam a permitir negociação entre trabalhadores e empregadores em diversas dimensões. Estas incluem o escalonamento de férias, jornada de trabalho (limites totais  de 44 horas semanais e 220 mensais mantidos, permitindo-se maior flexibilidade dentro destes), tempo para almoço, banco de horas (sem necessidade do aval do sindicato), trabalho remoto, planos de remuneração e bônus, entre outros pontos.

Refletindo diretamente uma realidade como a descrita na situação de Joana e seu empregado Luciano, a nova legislação permite, por exemplo, que patrão e funcionário negociem uma demissão de comum acordo – dando ao trabalhador o direito de sacar 80% do FGTS, além de metade do aviso prévio e 20% da multa do FGTS. Além disso, também formaliza e determina regras para trabalhos como o de Mariana, que ao ser registrada devidamente como trabalhadora intermitente por empregadores diferentes (tendo como piso o valor do salário mínimo por hora), pode optar por uma jornada de trabalho mais flexível e rentável, sem abrir mão dos benefícios de um trabalhador formal, como contribuições ao INSS e FGTS (que irão variar de acordo com cada contrato). Finalmente, a nova legislação também prevê o fim da contribuição obrigatória para sindicatos, deixando a cargo do trabalhador o apoio financeiro a um sindicato que o represente.

É claro que nem tudo é perfeito. Apesar de as mudanças terem tido o apoio de diversos especialistas e importantes organismos internacionais – como o Banco Mundial -, há quem destaque a falta de dados empíricos comprovando a relação causal entre mudanças em formas contratuais de trabalho e a queda do desemprego, apontando a Espanha e o México como exemplos de países que passaram por reformas similares sem ainda comprovação de eficácia [1]. Além disso, pontos importantes da reforma ainda geram polêmica mesmo entre seus apoiadores, e, por isso, devem ser revistos, como por exemplo a possibilidade de grávidas e lactantes trabalharem em ambientes considerados insalubres (sendo afastadas apenas mediante a apresentação de atestado médico).

Por fim, assim como a antiga CLT, sua nova versão valerá apenas para trabalhadores formais, ou seja, com carteira assinada. Para aqueles que permanecem no limbo da informalidade, a existência ou não de tais leis infelizmente não fará nenhuma diferença. Porém, vale lembrar que um dos objetivos da maior flexibilização das leis de trabalho é justamente o de incentivar a formalização do trabalho, uma vez que o mesmo custo e burocracia reduzidos para demitir existem para contratar – criar novos postos de trabalho. Desta forma, a nova CLT pode abrir uma porta até então fechada para a grande maioria (60%) dos 20% mais pobres do país, que permanecem na informalidade e, portanto, fora da realidade de “nenhum direito a menos” [2].

Sendo assim, ao colocar o sistema atual como alternativa, me atrevo a aguardar o andamento de possíveis mudanças sobre pontos que reitero minha discordância e dar à recente reforma o benefício da dúvida – ao menos até que se prove o contrário sobre as possibilidades que apresenta. Mas deixo em aberto. Quem nunca se aborreceu, fora afetado ou ao menos ouvira falar de nenhuma irracionalidade causada por nossas hoje obsoletas leis trabalhistas, que atire a primeira pedra – ou ainda melhor, as use para indicar um caminho melhor.

 

Referências

[1]http://www.bbc.com/portuguese/brasil-39714346

[2] http://porque.uol.com.br/quem-sera-afetado-pelas-mudancas-na-clt/

 

Rachel de Sá

Mestre em Economia Política Internacional pela London School of Economics, mestranda em Economia, Desenvolvimento e Políticas Públicas pelo IDP, e graduada em Relações Internacionais pela PUC-SP. Idealizadora do canal do Terraço Econômico no Youtube, acredita que educação financeira é para todos, e sempre busca explorar a linha tênue entre ciência política e economia.
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