Aos boatos, os fatos: o que realmente aconteceu entre Brasil, EUA e OCDE?

Enquanto acompanhava as seções e painéis do Brazil Investment Forum, evento organizado em parceria entre a Apex, Ministério da Economia e outras instituições públicas e privadas, me deparei com uma notícia bombástica: os EUA haviam retirado o apoio ao pleito brasileiro para fazer parte da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a famosa OCDE! Teria aquilo relação com a presença do secretário-geral adjunto da organização no evento ou, quem sabe, um desdobramento das falas de Bolsonaro sobre a Amazônia?

Após quase cair da cadeira e soltar um pequeno grito de desespero (tenho certo apego ao tema, confesso), tornei a ler a notícia por inteiro, que confirmava minhas suspeitas: não se tratava de nada daquilo! Conclui tratar-se de uma rápida conclusão a partir da mistura de informações sobre um processo complexo, muito além da vã existência brasileira, e permeado de sutilezas diplomáticas não capturadas por uma manchete.

Comecemos pelos fatos. Como amplamente veiculado, o presidente Donald Trump anunciou apoio ao início do processo de acessão do Brasil à OCDE em março deste ano. Na ocasião, a moeda de troca acordada entre Bolsonaro e seu parceiro norte-americano seria: abrir mão do Tratamento Especial e Diferenciado (TED) aplicado à países que se autodeclaram emergentes (caso do Brasil) na Organização Mundial do Comércio (OMC). Aliás, comentei sobre esse mesmo tema num artigo passado.

O tempo passou, e nada do Brasil na OCDE, detalhe importante, e tampouco dos outros países pleiteantes do mesmo pedido (alguns deles esperando há um pouco mais de tempo, como é o caso de nossos vizinhos argentinos).

Após mais alguns capítulos desta novela, comentados por mim anteriormente, chegamos à bomba de hoje: uma carta do secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, enviada ao secretário-geral da OCDE. Na carta, enviada antes da reunião do Conselho da Organização no final de agosto e que tratava da ampliação da OCDE, Pompeo reiterava a proposta dos EUA, destacando apoio ao início da acessão da Romênia e da Argentina. Sim, sem mencionar o Brasil!

Chegamos então ao início dos boatos: o processo de acessão do Brasil (ou qualquer outro país) à OCDE é muito mais complexo, político e, com o perdão da redundância, processual do que pode parecer à primeira vista. Na esteira processual, o primeiro passo é o apoio ao início da acessão. Porém, tal decisão unânime sobre um novo pedido é apenas o primeiro passo numa verdadeira saga para tornar-se membro pleno da organização. A partir de então, o país passa por análises dos inúmeros comitês da entidade, que avaliam o alinhamento do potencial novo membro aos padrões e melhores práticas defendidos pela Organização. Isso pode levar meses, ou até mesmo anos – a depender do alinhamento prévio do país aos denominados instrumentos legais.

Nesse sentido, não apenas o Brasil, mas diversos outros países enviam pedidos formais para tornar-se membros da organização, e aguardam um retorno positivo – que, novamente, requer unanimidade. No caso brasileiro, o pedido foi enviado em maio de 2017, durante o governo Temer. Como se pode notar, é aí que entram, então, os fatores políticos.

Durante o governo Temer, e efetivamente até a visita do Presidente Bolsonaro aos EUA no início deste ano, os EUA eram os principais “bloqueadores” do pleito brasileiro. O motivo? A falta de alinhamento dos valores do governo brasileiro aos valores da OCDE (o que costumam chamar de like mindedness no linguajar diplomatiquês). Os EUA apoiavam a acessão de países com os quais defendiam compartilhar ideais econômicos difundidos por membros da OCDE, inclusive ninguém menos do que a Argentina (como vemos nos detalhes do anúncio formal de apoio americano aos hermanos).

Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, nações do velho continente também passaram a pleitear a entrada formal na organização, cujo objetivo é a disseminação de melhores práticas e a padronização de arcabouços institucionais, visando a cooperação econômica e o desenvolvimento da economia global. Acompanhados também pelo Peru, os então aspirantes a membros de OCDE somavam Romênia, Bulgária e Croácia.

Nesse contexto, temos o cenário criado entre meados de 2017 e hoje: 35 países-membros, quatro parceiros-chave (Brasil, China, Índia, África do Sul e Indonésia), e seis países com pedido de adesão formal sob consideração do conselho da entidade. Como era de se esperar, mergulhado no caldo político oriundo de pleitos acumulados nos últimos anos, encontra-se a discussão mais ampla sobre a necessidade de ampliação da organização.

Na opinião do atual secretário-geral da OCDE, Angel Gurría, e de outros membros do conselho, a ampliação não é apenas desejada como necessária e urgente, de modo que esta possa adaptar-se e refletir a realidade de constante mudança na economia global, visando a maximização do bem-estar e do desenvolvimento econômico. Nesse sentido, diferentes propostas para a ampliação da organização foram apresentadas no período, com defensores da ampliação abrangente apoiando o início do processo dos seis pleiteantes.

Enquanto isso, o governo de Donald Trump guardou seu apoio a sete chaves, destacando a questão do alinhamento de “valores econômicos” e os potenciais riscos para a organização de uma ampliação rápida e abrangente. Tornando clara a posição de apoio a poucos aspirantes, os EUA adicionaram uma última pitada de pimenta-malagueta ao caldo: a questão a sucessão da chefia da organização – presidida há 13 anos por Gurría. Nas palavras fictícias do presidente norte-americano: “no acession before sucession” (nenhuma acessão, antes da sucessão).

Por fim, podemos nos segurar ao processo de sucessão? Novamente, o lado complexo da diplomacia entra em campo e o processo para a escolha do secretário-geral revela-se um tanto subjetivo (escolha de membros do conselho, via indicação) e quanto nebuloso (aconteceria entre o início de 2020 e o meio de 2021). Ou seja, infelizmente, um evento impossível de prever!

Em suma, os EUA retiraram o apoio à acessão do Brasil à OCDE? Não. Os EUA apoiaram, explicitamente, o início do processo de acessão do Brasil? Também não. A OCDE se posicionou contra o Brasil por qualquer que seja o motivo? Novamente, não.

Pois bem, o Brasil foi trocado pela Argentina? Tampouco. A possibilidade de troca aumenta, na realidade, no sentido contrário, dado o provável não alinhamento aos padrões da OCDE (e muito menos ao apoio norte-americano) de um novo governo kirchnerista na Argentina. Finalmente, não é possível concluir nada, além de que esse processo é muito mais amplo, complexo e político do que supõe nossa vã sabedoria – e vai muito além de nosso umbigo tropical? Provavelmente.

Rachel de Sá

Mestre em Economia Política Internacional pela London School of Economics, mestranda em Economia, Desenvolvimento e Políticas Públicas pelo IDP, e graduada em Relações Internacionais pela PUC-SP. Idealizadora do canal do Terraço Econômico no Youtube, acredita que educação financeira é para todos, e sempre busca explorar a linha tênue entre ciência política e economia.

Um Comentário

  1. Sim, mas a notícia do apoio dos EUA foi vendida como uma conquista enorme. Agora entendemos que ela pode virar um apoio formal em, sei lá, 2045 ou mesmo nada. O que interessa mesmo é o nosso alinhamento com as boas práticas da OCDE. Acredito que este alinhamento não é a prática deste governo. Nossa política externa é fraquíssima e não nos permite comemorar nada. Fiquemos, pois, mais conscientes.

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