Temos nos deparado na imprensa global com diversos artigos sobre a guerra comercial entre Estados Unidos e China, seus atos e consequências, e alguns desses artigos, inclusive, citando a “Armadilha de Tucídides”, expressão popularizada recentemente e extraída do seguinte trecho de seu célebre tratado histórico:
“Foi a ascensão de Atenas e o medo que isso incutiu em Esparta que tornou a guerra inevitável”
Tucídides, nascido em 460 a.C. foi um importante historiador e general ateniense, reconhecido por ter escrito “História da Guerra do Peloponeso”, onde descreve com riqueza de detalhes e rigor histórico a guerra entre Atenas e Esparta, no século V a.C.
“Aos homens que desejam ver claramente o que ocorreu e ocorrerá novamente, com toda a possibilidade humana, de maneira idêntica ou semelhante.” –
Tucídides em História da Guerra do Peloponeso
Durante a guerra Tucídides era o general responsável pela proteção da região da Trácia e sua cidade principal, Anfípole. Em 424 a.C. o brilhante general espartano Brásidas, em um ataque veloz e surpresa, toma a cidade de Anfípole e consequentemente boa parte da região. A derrota de Tucídides não é perdoada em Atenas, e a democracia decide manda-lo para o exílio. Brásidas é até hoje reconhecido como um gênio militar e grande orador, sendo por Platão comparado ao próprio Aquiles.
Enquanto durava seu exílio, torna-se historiador. Tucídides, que registrava eventos e discursos importantes desde o início da guerra, estava convencido de que a História deveria ser uma narrativa de fatos, dados em riqueza de detalhes e o mais próxima do real acontecido, servindo assim como um estudo documentado e fidedigno do passado. Isso ainda não era comum entre os gregos, Heródoto, seu contemporâneo e famoso historiador, é reconhecido pelos tons épicos e exageros em suas descrições e por colocar em destaque as ações dos deuses gregos, tidos em suas narrativas como personagens reais.
Segundo as palavras de Thomas Hobbes, que fez a primeira tradução completa do grego para o inglês de sua obra, Tucídides fora “o maior historiógrafo que já existiu”. Considerado o pai do realismo político e vastamente estudado nas teorias das relações internacionais, morre pouco tempo depois do fim da guerra, deixando sua obra inacabada.
A Guerra Grega
A Guerra do Peloponeso Iniciou-se em 431 a.C. A Liga do Peloponeso, liderada por Esparta, foi a coalizão grega que resistiu à invasão persa em 479 a.C., o que fez Esparta torna-se a Cidade-Estado líder de toda a Grécia.
Atenas, que já começara a desenvolver o seu poderoso império marítimo, formou a Liga de Delos, que sob sua liderança também enfrentava os persas, expandia territórios e passava a prosperar e exercer cada vez mais influência na região. Enquanto a Liga de Delos crescia e prosperava, Esparta percebia com cada vez mais insatisfação a ameaça que Atenas oferecia á sua hegemonia.
A guerra, portanto, tornou-se inevitável. Esta guerra envolveu quase todos os Estados Gregos, um número sem precedentes de recursos, homens, estratégias e investimentos logísticos surpreendentes. Um desenvolvimento incomparável do poder naval, seus métodos e estratégias, com batalhas desenvolvendo-se por toda a Grécia e Ásia Menor. Anteriormente, as batalhas não demandavam de muitos combatentes, sem grandes estratégias ou estruturas de distribuição, não havendo diversas áreas de combates ou estratégias diversas e magistralmente bem definidas por ambos os lados.
27 anos após o início da guerra, Atenas sucumbe perante Esparta. O declínio ateniense marca a definitiva ascensão espartana, mas não sem consequências para todo o mundo helênico. Todos esses anos de guerra, batalhas e conflitos causam desgastes incomparáveis, a ruína econômica de diversas Cidades-Estado e potências gregas, perda militar e total desestruturação da unidade grega frente a outros impérios.
Enquanto a Grécia tentava recuperar-se, o Império Macedônico, sob o comando de Filipe II, pai de Alexandre, organizava-se e tornava-se cada vez mais poderoso. Aproveitando da instabilidade e pobreza grega do pós-guerra, invade e domina quase toda a Grécia, terminando assim com a independência e liberdade da maior parte das Cidades-Estado do mundo grego.
Fadados a repetir o passado?
Com o início da Guerra Fria, surge um grande interesse de diversos pesquisadores, historiadores e militares sobre as guerras do passado. Essas pessoas notaram as incríveis semelhanças entre os conflitos de Atenas e Esparta e as disputas dos Estados Unidos e OTAN frente à União Soviética e seus aliados.
Em 1947, George C. Marshall, o então Secretário de Estado dos Estados Unidos, diz: “Duvido seriamente de que um homem que não tenha pelo menos repassado na sua mente a época da Guerra do Peloponeso e da queda de Atenas possa refletir com plena sabedoria e profundas convicções a respeito de certos temas das relações internacionais de hoje”. Essa e outras incríveis comparações podem ser vistas no excelente artigo Thucydides: The Reinvention of History, de Donald Kagan.
Mas Estados Unidos e União Soviética não declinaram em conflito. Mantiveram desavenças e ameaças constantes, uma profunda antipatia, porém União Soviética sempre fora um perigo militar aos EUA e OTAN, nunca uma ameaça ao seu poder e influência econômico e financeiro. O que levaria à definitiva queda da União Soviética no início dos anos 90.
Uma situação bem diferente do que acontece hoje nas relações EUA-China. China oferece aos Estados Unidos não somente uma ameaça bélica, mas principalmente uma ameaça aos antes incontestáveis modelos econômicos e até políticos de todo o Ocidente. A ascensão da China coloca em xeque o funcionamento da democracia ocidental, sua estrutura política e o que era tido como verdade no desenvolvimento dos mercados e das economias dos países.
É a ascensão de um país com modelos e estruturas completamente diferentes dos atuantes e que pode ultrapassar a atual maior e mais poderosa economia do mundo. É, de facto, uma ameaça à uma potência nunca antes vista no mundo moderno.
Se a Armadilha de Tucídides se concretiza quando um poder desafia a hegemonia de outro poder previamente estabelecido, vemos se formar a possibilidade de uma guerra inevitável perante o medo que a ascensão militar e econômica da China (anteriormente Atenas) oferece á hegemonia militar e econômica dos Estados Unidos (Esparta).
Em “Destined For War: Can America and China Avoid Thucydides Trap?”, Graham Allison afirma que o que define ou não a Ordem Mundial para esta geração é se China e Estados Unidos conseguem evitar cair na Armadilha de Tucídides.
Graham demonstra que no decorrer da história, quando, nessas circunstâncias, outras nações e países conseguiram evitar o iminente conflito armado, foram necessários enormes e dolorosos ajustes nas ações e decisões entre os rivais, tanto do desafiante quanto do desafiado.
Tucídides concentrou-se em mostrar o estresse causado pela mudança no equilíbrio de poder e na tensão gerada pelo crescimento constante da potência desafiadora. E deste modo nunca houve uma mudança tão ascendente e veloz no cenário global quanto a evolução e crescimento dos chineses.
No decorrer da história, a maior parte das vezes em que esses padrões se realizaram, a rivalidade entre os poderes resultou em guerras e conflitos armados.
O maior exemplo pode ser o advento da Primeira Guerra Mundial. Inglaterra e França após a Revolução Industrial exerciam sua hegemonia e poder absolutos, mas o crescimento e desenvolvimento vertiginoso e incomparável do Império Alemão no decorrer dos anos causou tamanha tensão entre as nações que o assassinato de um arquiduque fora o estopim para o início da maior e mais violenta guerra até então.
Mas Armadilha de Tucídides não é fatalista e os poderes podem evitar a guerra se agirem de modo apropriado.
Durante as grandes navegações, explorações e perigosas rotas de comércio do século XV as disputas de poder entre Portugal e Espanha eram bem intensas.
Nos início dos anos de 1490, O Império Espanhol crescia e aumentava seu poder marítimo e influência nas rotas de comércio de todo o mundo, ameaçando a autonomia e liderança portuguesa colocando as duas nações a ponto de iniciarem uma guerra. Tudo se intensificou ainda mais com a descoberta do Novo Mundo, e o conflito entre as duas nações pelo poder e as novas terras descobertas parecia inevitável.
Para evitar a guerra houve até intervenção Papal. Com os líderes das duas nações sentados frente a frente e buscando soluções que não fosse o conflito armado surgiram os tratados e divisões das novas terras descobertas e de parcerias, como a Bula Inter Caetera e o Tratado de Tordesilhas.
A parceria entre as duas nações se manteve e perdurou por muito tempo, fazendo florescer a união estratégia e proteção mútua entre os dois países, a chamada União Ibérica. Os tratados e acordos evitaram o conflito entre as duas potências.
Aprendendo com o passado para mudar o futuro
Por mais que a influência da China se estenda cada vez mais pelo Pacífico Ocidental, Xi Jinping já demonstrou seus planos para as novas rotas de comércio que pretende desenvolver por outros países e continentes e tem atestado sua visão cada vez mais expansiva sobre a influência da China no mundo. Quanto mais a China se expande, mais entra em conflito com os americanos e os países já sob a influência destes.
Isso sem falarmos no investimento chinês para ter a maior armada naval do mundo. O desenvolvimento das estratégias e da qualidade e tecnologia bélica dos chineses têm melhorado significativamente no de correr dos últimos anos, com navios e porta-aviões cada vez maiores e mais sofisticados, os quais desempenho e capacidade são tão ou quanto maiores que dos ocidentais.
Todo esse investimento e crescimento demonstram o quanto os chineses planejam avançar sua influência pelo mundo e manter os americanos longe dos territórios próximos, como caso decidam usar força contra a autonomia de Taiwan.
Enquanto se fala sobre uma segunda Guerra Fria, a interdependência das economias americana e chinesa eleva os conflitos em outro nível, que mais tem influenciado a economia e do desenvolvimento global neste século, o setor tecnológico.
No centro atual desses conflitos está a gigante chinesa Huawei. Os Estados Unidos estão exercendo sua influência para evitar que a tecnologia desta empresa seja usada em países ocidentais e parceiros, afirmando sobre a parceria da empresa com o governo chinês e a utilização da tecnologia para hackear os indivíduos e empresas dessas nações.
O governo dos Estados Unidos além de processar criminalmente a companhia e a diretora financeira, Meng Wanzhou, filha do fundador da empresa, exerceu sua influência para que ela fosse presa no Canadá em dezembro de 2018.
As batalhas travadas contra a Huawei demonstram o quanto o setor tecnológico é fundamental para essa Guerra Fria moderna, onde o roubo de dados e informações de governos e empresas podem ser tão nocivos para um país quanto uma detonação nuclear.
Perante tudo isso impera no Ocidente o temor de que a China possa dominar tecnologias fundamentais para o desenvolvimento e o futuro, desde blockchain e internet, até AI e viagens espaciais. A economia e a estratégia do mundo estão intimamente ligadas a estes embates e inovações, com a China dominando cada vez mais o desenvolvimento tecnológico e revolucionário global.
Mas tudo dependerá do contínuo crescimento chinês. Os dados do governo não são confiáveis há tempos, e os sinais de que sua economia pode estar enfrentando problemas podem demonstrar que o atual modelo seguido no país não continua tão efetivo como tem sido nos últimos anos.
Se houver uma queda no crescimento chinês Xi Jinping poderá ter dois caminhos para seguir: acalmar o desenfreado crescimento e tentar organizar a casa ou aumentar ainda mais a assertividade de seus planos e tentar evitar a todo custo a diminuição da influência e poder do país.
A rivalidade EUA-China se manterá, a tendência de um é tentar diminuir e minar o poder e influências do outro. Ou eles tentarão encontrar maneiras de equilibrar seus interesses ou terão uma relação cada vez menos amigável e mais conflituosa, levando-nos, infelizmente, à Armadilha de Tucídides.