Apesar da impressão de que o mundo poderia acabar com a entrada em vigor das tarifas impostas pelo governo americano, a verdade é que isso continua bem longe de acontecer — ao menos por esse motivo. A história, embora não se repita, rima, e nos momentos de incerteza econômica frequentemente nos deparamos com políticas no mínimo questionáveis. Ações protecionistas, ora tão condenadas, já foram — e continuarão sendo — utilizadas por todos os espectros políticos. Dois episódios emblemáticos nesse sentido são a Lei Tarifária Smoot-Hawley, aprovada nos Estados Unidos (EUA) em meados de 1930, e, mais recentemente, por Donald Trump, com o chamado tarifaço ou, como o republicano apelidou, “reciprocidade”.
Para entendermos a citada lei da década de 1930, é preciso relembrar o contexto daquela época. O pânico que se alastrou após o tombo de quase 13% do índice Dow Jones em meados de outubro de 1929 — e que fez com que a bolsa americana perdesse quase metade de seu valor até novembro daquele mesmo ano — exigia medidas drásticas. Em meio a isso, o Congresso norte-americano negociou um conjunto de aumentos de tarifas que, inicialmente, visavam proteger os agricultores da concorrência estrangeira — o discurso é o mesmo há, no mínimo, 100 anos, como podemos perceber. Como era de se imaginar, outros grupos também buscaram usufruir dessas benesses, o que acabou gerando um efeito cascata para uma ampla gama de produtos manufaturados e, de carona, seus produtores.
Levando a alcunha dos mais ferrenhos defensores da causa, o senador Reed Smoot e o deputado Willis Hawley, o dispositivo foi sancionado pela caneta do 31º presidente americano, Herbert Hoover, em junho de 1930. Na prática, a lei aumentou o imposto de importação de 40% para quase 60%, além de expandir vertiginosamente o número de produtos sujeitos a alíquotas ao adentrar o território americano.
Sem surpresa, o somatório de uma depressão econômica com medidas que desencadearam uma guerra comercial não poderia apresentar resultado diferente senão o de contrarrespostas severas por parte de outras nações. Mais de 25 países retaliaram a ação norte-americana na mesma moeda — impondo tarifas sobre produtos provenientes dos EUA. É preciso destacar, uma vez mais, que os tempos eram outros, e a globalização que conhecemos quase não existia à época da lei objeto desta análise. O Canadá, por exemplo, levantou uma tarifa sobre cerca de 20 produtos americanos (algo próximo a 1/3 das exportações da principal economia do mundo em direção ao seu vizinho do Norte). A Espanha e a França, na esteira da decisão de Washington, aplicaram tarifas sobre uma das principais indústrias dos EUA naquele momento: a automobilística.
Não é preciso dizer que o comércio global sofreu um duro golpe, o que potencializou os danos causados pela grave crise de 1929. Se não fosse a Lei Smoot-Hawley, talvez — e aqui resta claro que não teremos o contrafactual para ponderar — a lenta recuperação após a queda de mais de 65% das exportações e importações americanas entre 1929 e 1934 poderia ter sido amenizada. A desaceleração do comércio enfraqueceu a economia e agravou a retração econômica do país. No entanto, a crise econômica já havia se instalado antes da lei, o que a descarta como causadora do episódio, obviamente. Mas não a exime de ter sido, quem sabe, uma das potencializadoras do dano vivenciado à época.
De volta ao ano de 2025, o contexto econômico que temos é totalmente diferente daquele visto em meados de 1930. Apesar de a pandemia de Covid-19 ter deixado uma marca bastante profunda nas relações comerciais de economias centrais e emergentes — trazendo à baila uma grande dúvida: até que ponto vale a pena ser tão dependente de um país distante, com características culturais e políticas avessas às minhas? — o comércio flui como o sangue dentro das veias. Não me parece que um embargo total ao país A ou B seja possível, vide o movimento que fora tentado contra a Rússia logo após a violação do território ucraniano nos primeiros meses de 2022. Sempre haverá um atravessador ou algum agente interessado em fazer negócio com outrem que acesse produtos tidos como relevantes ao seu apetite.
Os EUA passam por um momento econômico positivo. Apesar da restrição da política monetária — que aprofunda o problema da dívida pública norte-americana — o mercado de trabalho não parece apontar para um quadro semelhante ao visto em períodos de recessão no curto prazo. As próximas peças movimentadas neste grande e complexo tabuleiro geopolítico poderão ser lembradas futuramente como as responsáveis, ou não, por potencializar uma crise iniciada a partir da decisão de Trump de empeçar uma guerra comercial bastante ampla.
Será a mão firme de Jerome Powell, ao não cortar juros no tempo e na intensidade desejada pela Casa Branca, a “responsável” por uma crise vindoura? Será um bloqueio chinês do envio de materiais produzidos em terras raras para os EUA o ponto de ebulição para uma nova crise entre as duas potências? Virá, talvez, do Leste Europeu ou do Oriente Médio o recrudescimento de tensões que desafiarão as perspectivas econômicas ora traçadas para 2026?
Essas e outras perguntas ficarão, ao menos por ora, sem resposta. O que sei, em tese, é que tanto o tarifaço de Trump quanto a Lei Smoot-Hawley foram formulados para proteger a produção nacional e estimular o consumo interno. Contudo, o contexto econômico da proposta de Trump é totalmente diferente. Embora separados por quase um século, os dois episódios mostram como o protecionismo exacerbado pode ter efeitos — ou ao menos perspectivas — colaterais importantes. A história ensina que, embora proteger a indústria nacional possa parecer vantajoso no curto prazo, o isolamento comercial e a retaliação internacional podem prejudicar sobremaneira. Que esses e outros episódios semelhantes sirvam de lição para o Brasil, que, apesar de estar sofrendo com as elevadas alíquotas comerciais, conhece bem os livros que tratam sobre ideias econômicas ruins. Aliás, em tempos de dificuldades — vide o atual momento — sempre aparece alguém para revisitar os alfarrábios dos planos perfeitos que não dão certo.
Daniel Bozz
Mestre em Economia do Desenvolvimento pela PUC-RS, MBA em Finanças, Investimento e Banking pela PUC-RS e graduado em Ciências Econômicas pela Universidade de Caxias do Sul. Há mais de 15 anos atuando no mercado financeiro.