A autonomia do Banco Central e o pão de cada dia dos brasileiros

Você no Terraço | por Cecilia Melo Fernandes

No dia 11 de Setembro de 2014, o PT divulgou um vídeo no qual uma família está muito feliz fazendo sua refeição. Porém, é só o tema da autonomia do Banco Central surgir com “banqueiros” discutindo em paralelo, que a família prontamente entra em desespero, pois aparentemente o assunto deles é o “salário”, “emprego” e todas as variáveis importantes da vida da família. Em seguida, a comida some da mesa, em meio a um clima perturbador. (Assista aqui: https://www.youtube.com/watch?v=gxsGkWJrVbg).

A boa notícia é que não, não faltará comida na mesa de ninguém caso a autonomia do BC seja assegurada, fique tranquilo. A outra boa notícia é que a discussão pela primeira vez se estendeu de grupos isolados de economistas à sociedade em geral. Até mesmo autoridades de outras áreas têm emitido opiniões fortes a respeito. A má notícia é que este tema tem sido muito mal debatido, por vezes muito se opina mas pouco se conhece dos conceitos básicos. Um pouco como colocar a carroça na frente dos bois. Um exemplo, que resume também recorrentes opiniões a respeito, é a declaração do respeitado teólogo Leonardo Boff, que quando indagado , emitiu a seguinte opinião:

Acho uma falta total de brasilidade. Significa renunciar à soberania monetária do país e entregá-la ao jogo do mercado, dos bancos e do sistema financeiro capitalista nacional e transnacional. Um presidente/a é eleito para governar seu povo e um dos instrumentos principais é o controle monetário que assim lhe é subtraído. Isso é absolutamente antidemocrático e comporta submissão à tirania das finanças que são cada vez mais vorazes, pondo países inteiros à falência como é o caso da Grécia, da Espanha, da Itália, de Portugal e outros.

Porém, o mais interessante é que antes de dar essa resposta tão assertiva, Boff se questionou: “Eu me pergunto, autonomia de quem e para quem?” Vamos lá, Prof. Boff, é justamente isso que vou procurar responder neste texto.

[caption id="attachment_1667" align="aligncenter" width="640" class=" "] Leonardo Boff, o monetarista, em rara aparição sem barba[/caption] Separando Maçãs de Bananas

O ponto de partida da confusão do debate é que há de se distinguir entre independência operacional, independência de objetivos e autonomia do Banco Central. Independência operacional se dá quando o BC tem plena liberdade para escolher os instrumentos para conduzir a política monetária de forma a atingir o seu objetivo (o que, no contexto do regime de metas, significa alcançar a meta de inflação). O instrumento mais usado é a taxa de juros, e no Brasil se dá através da definição da Selic. Já a independência de objetivos se refere à liberdade de estabelecer qual seria este objetivo. No caso, a própria meta da inflação e seus limites.

Dos 27 bancos centrais que adotam o regime de metas no mundo (incluindo o Brasil), todos eles têm independência operacional. Desses, em 15 o governo e o banco central definem a meta de inflação em conjunto. Este é também o caso do Brasil, onde a meta é determinada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), composta pelo Presidente do Banco Central, o Ministro da Fazenda e o Ministro do Planejamento, todos escolhidos pelo presidente da República. Dessa forma, quando a inflação não termina o ano dentro dos limites da meta estabelecida pelo CMN (hoje entre 2,5% e 6,5%), o Presidente do Banco Central deve explicar as razões e as providências tomadas em uma carta aberta ao Ministro da Fazenda.

Por fim, quando se trata da autonomia estatutária do Banco Central, o Brasil é a exceção à regra geral, assim sendo o único país onde os membros da diretoria e do Presidente do Banco Central não tem mandatos fixos. Assim, de todos os países que seguem o regime de metas, só no Brasil o Presidente da República pode demitir toda a equipe quando for de seu entendimento fazê-lo.

E aqui desata-se o primeiro grande nó. O que acontece, para surpresa de muitos, é que os três candidatos à presidência se dizem a favor da independência operacional do Banco Central (até sair este texto, pelo menos). Assim, o maior ponto de discórdia, é na verdade em relação à autonomia do BC. Enquanto Dilma se posiciona contra, Marina promete estabelecer regras definidas acordadas em lei. Pretende assim estabelecer um mandato fixo para o presidente do BC e normas para nomeação e destituição para membros da diretoria. Pretende também ir além e institucionalizar a independência operacional. Aécio Neves cita a “necessidade da autonomia operacional” nas diretrizes de seu programa de governo, mas sem dar maiores detalhes. Assim, ao contrário do que acontece hoje, o Presidente da República não poderia demitir a equipe, a menos que seja por motivos extraordinários.

Qual a lógica disso? 

Em resumo, argumenta-se que é necessário a existência de um órgão crível separado do governo para assegurar a estabilidade monetária, para que as decisões não sejam fundamentadas por interesses de curto prazo, ou melhor dizendo, eleitorais. Por exemplo, se o governo é responsável também pela emissão de moedas, é possível que financie suas obras simplesmente emitindo moedas, o que causa um grande descontrole inflacionário. E aí, o limite é o céu. Isso ocorreu de certa forma no governo de Juscelino Kubistchek, para financiar seu grande projeto 50 anos em 5. Naquele momento, o que importava mais era o que iria acontecer antes de terminar o mandato, não o futuro da inflação. Pois bem, ali foi plantada uma semente do quadro de hiperinflação que se desenvolveu no Brasil posteriormente.

Mais precisamente, a história desta lógica se inicia quando Kydland e Prescott (1977) e Barro e Gordon (1983) propuseram que o governo tem sempre um incentivo a causar “inflações surpresa”, que geram alguns benefícios no curto prazo, mas que geram consequências piores no longo prazo. No entanto, como esse governo não estará ali no longo prazo para assumir as consequências, por que não fazer? Em outras palavras, segundo os autores, os governos sofrem de “viés inflacionário”. Isto, assumindo que as pessoas (ou agentes) têm expectativas racionais, ou seja, tomam decisões considerando não apenas os fatores passados, mas suas expectativas futuras, utilizando assim todas as informações possíveis disponíveis.

Mais concretamente, e de maneira bem resumida (a teoria é densa), o principal benefício que os governos adquirem no curto prazo, segundo os autores, é um súbito aumento da atividade econômica e a possibilidade da diminuição da taxa de desemprego para abaixo da taxa natural. No entanto, como não existe almoço grátis, no longo prazo a situação se inverte, há um custo para o bem-estar social, pois a taxa de desemprego assim como a inflação, tornam a aumentar. Isso fere a reputação da autoridade monetária. Qualquer semelhança com os últimos acontecimentos não é mera coincidência.

Assim, a solução proposta é que ao invés de que o governo tome medidas espontâneas (ou no economês, discricionárias) levando-o a causar as tais “surpresas” quando convier, o melhor é que haja uma regra a ser seguida no que diz respeito à inflação. Assim, com objetivos claros, as pessoas já sabem o que esperar. Se suas expectativas confiam que o governo se esforçará para cumprir a meta proposta com a regra definida, suas ações serão movidas por isso, o que é uma grande parte do sucesso para os preços se manterem estáveis. É como se fosse quase uma “profecia autorrealizável” (esta que pode aqui ser boa ou ruim), pois os próprios agentes têm uma grande influência na concretização dos objetivos através de suas próprias ações. Mas para isso acontecer, o governo precisa ter credibilidade.

Dessa forma, o próximo passo foi a conclusão de que a condução da política monetária fosse delegada à uma autoridade independente e com grande reputação, ou seja, o Banco Central. Os principais economistas dessa linha são Rogoff (1985) e Walsh (1995), entre muitos outros que também têm sua importância para essa extensa literatura. No mais, há inúmeros estudos empíricos que mostram um melhor desempenho no controle inflacionário de longo prazo com o BC independente, do que o contrário. Na prática, o Chile é o melhor exemplo na América Latina a esse respeito.

E na prática, como será?

Portanto, o que se pretende com isso é garantir com o peso da lei que a diretoria do BC fique livre de pressões provenientes de medidas eleitoreiras do governo e impedir que em última instância, fiquem vulneráveis a demissões, garantindo assim o cumprimento do seu trabalho. Se o Planalto valorizar mais as eleições do que a estabilidade de longo prazo da economia brasileira (convenhamos, o que normalmente ocorre), o governo pode muito bem ameaçar os diretores do BC e pressioná-los a aumentar estímulos monetários caso seja de seu interesse.

Assim, agora que já esclarecemos a dúvida do Prof. Leonardo Boff, que se pergunta “de que e para quem” é a tal da autonomia do BC, vamos voltar aos seus outros argumentos, que como dito, resumem bem as críticas que se têm feito por aí contra a autonomia, ou independência, ou seja lá o que for, do BC.

Ao contrário do que se diz, essa nova estrutura não significa renunciar à soberania monetária do país e entregá-la ao mercado, aos bancos e ao “sistema financeiro capitalista nacional e transnacional” (seja lá o que isso quer dizer). Apesar de não haver um plano definido com exatidão nem por Aécio nem por Marina, é esperado que o Executivo continuará definindo as metas, e apontando quem formará a equipe de diretores assim como Presidente do Banco Central.

Isso também rebate o argumento de que a medida é “absolutamente antidemocrática”, pois se espera apenas que os diretores tenham mandato fixo, de 3 a 4 anos, com as nomeações e destituições previstas por lei. Normalmente, caso haja a necessidade da substituição de um dos diretores, esta requer um motivo extraordinário e a aprovação do congresso, que pode tanto rejeitar quando aceitar o pedido. No mais, o Banco Central tem sempre que explicar suas medidas e resultados para o governo (lembre-se: credibilidade e transparência é essencial no processo).

Pior que isso, afirmar que será “subtraído do Presidente o controle monetário” é assumir que o Presidente já tem atualmente o controle monetário, o que não é verdade. Aliás, é bom dizer, foi o presidente Lula que conduziu a fase áurea da autonomia do BC, o que permitiu um desempenho muito melhor da política monetária do que vemos hoje.

Ligar isto ao tema da crise na Europa de maneira simplista, é um outro absurdo e assunto para todo um outro post.

Por fim, Prof. Boff talvez tenha razão que é “total falta de brasilidade”. De fato, deixaremos de ser sim o único país do mundo do regime de metas que não tem a autonomia nesse formato garantida por lei (que triste! Menos uma jabuticaba na nossa árvore).

Leonardo Boff e seus simpatizantes na questão tem todo o direito de criticar a medida. No entanto, é altamente recomendável que se posicionem com base em argumentos fundamentados, e não ideológicos. Caso sejam contra a todas as maneiras de independência do BC, sugiro que proponham um sistema alternativo e mais eficiente ao de metas de inflação. Não que este sistema seja perfeito, mas é o que temos agora. Caso consigam, revolucionarão mais de 30 anos de teoria monetária.

Cecilia Melo Fernandes Economista formada na EESP-FGV, possui mestrado pela Universidade de Amsterdã, com especialização em economia monetária

Referências: Barro, R. J. 1983. “Inflationary Finance under Discretion and Rules,” Canadian Journal of Economics, Canadian Economics Association, vol. 16(1), pages 1-16, February. Kydland, F. E & Prescott, E.C. 1977. “Rules Rather Than Discretion: The Inconsistency of Optimal Plans,” Journal of Political Economy, University of Chicago Press, vol. 85(3), pages 473-91, June. Rogoff, K. 1985. “The Optimal Degree of Commitment to an Intermediate Target.” Quartely Journal of Economics 100, 1169-90. Walsh, Carl E, 1995. “Optimal Contracts for Central Bankers,” American Economic Review, American Economic Association, vol. 85(1), pages 150-67, March.

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