Magna Carta: a liberdade faz 800 anos

Alipio Ferreira Cantisani | Terraço Econômico Magna Carta: a very short introduction. Nicholas Vincent, Editora Oxford, 136 páginas, R$47

Estamos em 1944. Tropas aliadas desembarcaram com sucesso na Normandia, iniciando a derrota do Eixo no front ocidental. O rei da Inglaterra, George VI, pressentia o fim da Segunda Guerra Mundial. Numa tarde chuvosa londrina, o monarca aguardava do primeiro-ministro Winston Churchill detalhes sobre a viagem que George VI sugerira fazer pessoalmente à Normandia, onde encontraria seus heroicos soldados. O secretário do rei adentrou seu gabinete com um curto telegrama de Churchill: “Majestade, a segurança do Rei será melhor preservada com Sua permanência na Grã-Bretanha. Seu fiel servidor, Winston”. George VI calou-se – em momentos de estresse, a gagueira costumava voltar –, e marchou incisivo rumo ao pátio do Palácio de Buckingham. O secretário entendeu o pedido: “de volta ao Palácio de Windsor”. Conta-se que o rei não disse nada durante todo o trajeto entre Londres e Windsor, até que nas proximidades do palácio, o rei se descontrolou. Com uma violência que não lhe era peculiar, abriu a janela do veículo murmurando palavras insoletráveis. O motorista exasperado parou o veículo, enquanto o secretário procurava acalmar o nobre chefe. Com o punho em riste, o rei expressou sua ira contra o pasto tranquilo que beirava a estrada: “Foi aqui onde tudo começou!” Estavam passando por Runnymede[1].

Ao opor-se aos desejos do rei, Winston Churchill não estava em nada inovando. Rei já não podia fazer tudo o que queria desde pelo menos 700 anos antes na Inglaterra, e com o passar dos séculos os poderes do monarca foram minguando até que este se tornasse a figura decorativa que hoje estampa camisetas e canecas. O que George VI talvez não tenha entendido é que na clareira de Runnymede, onde a Magna Carta foi assinada em 15 de junho de 1215, não só o poder do rei foi severamente restringido: de forma mais geral e profunda, é o arbítrio do Estado foi posto em xeque.

Em opúsculo publicado pela editora da universidade Oxford, o historiador britânico Nicholas Vincent nos traz de volta ao contexto político da Inglaterra medieval e nos ajuda a melhor apreciar algo que os seus autores sequer pretendiam: a Magna Carta, assinada há exatos oitocentos anos, viria mudar a história da Inglaterra e do Mundo. Ela tornou-se um totem da liberdade do indivíduo contra a tirania do governante.

Em 1215, a Inglaterra estava – mais uma vez – à beira do caos. Não havia nem cinquenta anos desde a última guerra civil entre barões e rei, e novamente exércitos se armavam em rebelião. Os reis ingleses da Idade Média eram maus políticos, e o rei João – apelidado de “Sem-Terra”, o rei do Robin Hood – conseguia ser pior do que todos seus antecessores. Acuados numa época belicosa, os reis recorriam a expedientes nada populares para angariar recursos e estabelecer seu poder. Os métodos favoritos eram: expropriação de propriedade alheia, aumento de impostos e uso político da Justiça – leia-se cobrança de propinas para favorecer uma das partes.

João Sem-Terra era tão maravilhosamente perverso no seu exercício do poder que nunca mais na história da Inglaterra houve rei chamado João. Para além dos seus métodos impopulares de locupletar-se, o rei tinha no currículo a usurpação do poder enquanto seu irmão, o rei Ricardo Coração-de-Leão, lutava numa Cruzada fracassada em Jerusalém. Some-se à sua ficha o infanticídio de um nobre francês adolescente que participara de uma rebelião contra ele e a cobiça desenfreada de mulheres e filhas de seus próprios barões. Para apimentar nosso herói, dizia a lenda que a dinastia do rei João descendia de ninguém menos que Satã himself.

[caption id="attachment_4150" align="aligncenter" width="777"]O historiador Nicholas Vincent O historiador Nicholas Vincent[/caption] A guerra civil de 1215-1217

Embora rico, poderoso e mulherengo, João vivia um inferno astral. O rei da França lhe havia conquistado praticamente todas suas propriedades no continente. Para pagar pela reconquista da Normandia, o rei fez o que melhor sabia para encher seus cofres: “vendeu” Justiça, aumentou impostos e confiscou propriedades. Impaciente, ainda se recusou a reconhecer o arcebispo que o papa escolhera, expropriando as terras da Igreja forçando o arcebispo a exilar-se na França. Tudo deu errado: o rei sofreu uma escorchante derrota na França, foi excomungado pela Igreja Católica, e o papa ainda decretou greve da Igreja: missas não podiam mais ser celebradas em público. Conta-se que o rei chegou a enviar três embaixadores ao Marrocos pedindo ajuda ao califa em troca da conversão da Inglaterra ao islamismo (o califa teria achado a proposta maluca). Fato é que o rei eventualmente cedeu em 1213, transformando o reino em protetorado papal e jurando partir numa Cruzada santa para reconquistar Jerusalém, algo que ele nunca fez.

Após essa paz humilhante com a Igreja, o rei pôde respirar um pouco, mas os barões queriam também sua dose de magnanimidade real. Afinal, depois de engolir os desaforos e crimes do rei, ainda tiveram que financiar a campanha desastrosa na França. Um grupo de barões apossou-se de Londres, forçando o rei a negociar. Foi assim que, em junho de 1215, reunidos nos campos de Runnymede, sob os auspícios da Igreja, entre a residência real em Windsor e o QG rebelde em Londres, João Sem-Terra assinou a Magna Carta.

Mas o que havia de tão especial nesse documento? De fato, havia belas palavras e promessas contidas no documento, mas pouco disso era novidade. Cada rei inglês publicava, quando de sua coroação, um documento prometendo ser bom, justo e razoável (justiça e razoabilidade eram dois conceitos importantes para o pensamento político medieval). Mas já no primeiro ano de mandato, só sabiam aumentar impostos e distribuir maldades. A Magna Carta foi muito além de vagas promessas, com garantias muito objetivas de liberdades aos barões e súditos. Quiçá até por isso, em menos de dois meses de sua publicação, o rei – com permissão do papa, formalmente seu novo chefe – a renegou e prosseguiu a guerra contra os barões.

João Sem-Terra não venceu a guerra, morrendo em 1216, e deixando o problema para os regentes que governaram em nome de seu filho, o pequeno Henrique III. O pequeno Henrique foi coroado num clima de medo: havia sérios riscos de as forças reais perderem a guerra, e no meio tempo os barões haviam oferecido a coroa ao rei francês (!) em Londres. Como gesto diplomático, os regentes reeditaram a Magna Carta com suas largas concessões. Ao vencerem a guerra em 1217, reeditaram-na novamente. Quando o rei atingiu a maioridade em 1225, novamente editou a Magna Carta, com várias atualizações. A mensagem era clara: mais do que uma promessa de boas intenções, aquilo era um documento jurídico crível, legitimado pelo seu reiterado anúncio e suas repetidas publicações. A Magna Carta foi ainda reeditada outras vezes no século XIII, e quando os reis deixaram de republicá-la simplesmente referiam-se a ela: ela se tornara parte integrante da ordem jurídica do país, um documento constituinte da Inglaterra. (Mesmo no Brasil juristas referem-se à Constituição Federal como Magna Carta, entre outros títulos nobiliárquicos como Carta Suprema, Texto Maior, Palavra Sagrada, etc.)

O incrível conteúdo da Magna Carta

Diferentemente do que se imagina para o documento que fundou toda uma tradição de liberdade política no Ocidente, a Magna Carta não é um ordenamento de princípios abstratos, embora alguns ali estejam contidos. Seus artigos visam resolver questões práticas e urgentes, tal como se espera de um tratado de paz. O primeiro artigo da Carta Magna é uma concessão de liberdades à Igreja, ecoando os conflitos do rei com o arcebispo: “a Igreja da Inglaterra será livre e gozará plenamente de suas liberdades e direitos”. Mesmo tendo autorizado o rei a anular a primeira edição da Magna Carta, o papa apoiou suas reedições subsequentes. A participação da Igreja na confecção da Magna Carta foi crucial para a legitimidade do documento, assim como sua divulgação e conservação[2].

Em alguns trechos, Magna Carta parece um processo de impeachment. Os barões exigem a demissão imediata de uma dúzia de ministros e conselheiros do rei, citados nominalmente[3]. Os artigos da Carta ainda descrevem em detalhe o procedimento a ser seguido caso o rei não respeite as liberdades e garantias concedidas no documento: nesses casos, “[um conselho de] 25 barões, em conjunto de toda a nação, apossar-se-á de todos os meus [do rei] bens e pressionar-me-á de todas as maneiras que puderem, isto é, expropriando meus castelos, terras e posses e quaisquer outras coisas – com exceção de minha pessoa, minha esposa e meus filhos – até que [a injustiça] seja corrigida”[4].

De onde inventaram que o tal conselho de barões deveria ter 25 pessoas é um mistério – a teoria mais aceita relaciona esse número com citações bíblicas –, mas esse foi certamente o dispositivo mais controverso da Carta, e provavelmente o que levou o rei a renegá-la. Esse documento já não podia ser tratado como as promessas vagas de bondade, justiça e razoabilidade que todo rei fazia no começo de mandato. Agora, caso o rei fugisse a seus compromissos, os barões poderiam legitimamente insurgir-se contra ele para exigir dele o cumprimento do combinado.

Outros dispositivos interessantes da Magna Carta incluem a proibição da venda da justiça (“Justiça não será vendida, negada ou protelada a ninguém”[5]), a proporcionalidade entre penas e delitos[6] e, mais importante, o direito ao devido processo legal: “Nenhum homem livre será preso, expropriado, banido, exilado ou punido de qualquer forma, e nada será empreendido contra ele, exceto por virtude de julgamento por seus pares segundo as leis da terra”[7]. O rei se compromete a enviar regularmente (quatro vezes ao ano) oficiais de justiça às diversas regiões do reino para que resolvam casos locais de heranças e desapropriação[8], e promete que somente nomeará juízes com notório saber jurídico: “não nomearei juízes, policiais ou oficiais que não conheçam bem a lei do reino e desejem observá-la corretamente”[9].

Finalmente, a Magna Carta traz uma porção de regras detalhadas que especificam, por exemplo: o exato valor que o rei pode cobrar em caso de transferência de propriedade para um herdeiro (o ITCMD inglês)[10]; as condições em que um devedor não será obrigado a pagar juros a um Judeu[11] e a exigência para que haja somente uma unidade para vinho, trigo e cerveja em todo o reino[12]! Hallellujah!

[caption id="attachment_4151" align="aligncenter" width="657"]Queen Elizabeth II, ao receber o convite para a comemoração do aniversário da Magna Carta Reação de Queen Elizabeth II, ao receber o convite para a comemoração do aniversário da Magna Carta[/caption] O legado

A Magna Carta é um documento relativamente curto (cerca de 4.000 palavras) com provisões extremamente detalhadas sobre assuntos diversos. Provavelmente não foi pensada como o fundamento da liberdade do indivíduo perante o Estado, como hoje é encarada. Certamente o uso – abundante na Magna Carta – da palavra “liberdade” guarda pouco em comum com o significado que hoje lhe atribuímos. Mesmo assim, ela instaurou um mito que os reis já não podiam ignorar.

Como observou o economista Russ Roberts, que entrevistou Nicholas Vincent, “há algo de extraordinariamente eloquente e belo no fato de o rei conceder que não deve haver tirania”. Ainda que na prática ele frequentemente descumpra sua promessa, “a declaração pública faz diferença.” Repetidas por décadas a fio, as garantias de que o rei não descumprirá a lei e todo indivíduo terá direito a justiça, formaram o mito de que a Inglaterra é um país livre; deram aos indivíduos uma ideia na qual puderam se apegar e basear suas aspirações.  Segundo Vincent, esse mito da liberdade explica por que “as pessoas acreditam que terão justiça diante de uma corte americana ou inglesa, e não numa corte na Coreia do Norte: porque há essa tradição muito antiga, muito resistente, de que cortes protegem a justiça e a liberdade do indivíduo”.

Séculos depois de sua publicação, a Magna Carta era usada cada vez mais na Inglaterra como um documento fundador da liberdade contra a tirania do soberano. A ideia de liberdade na Magna Carta atravessou as fronteiras da Inglaterra. A promessa do rei João de que impostos não poderão ser elevados sem consentimento “do reino”[13] é vista como o ancestral da ideia de no taxation without representation que eventualmente levou os americanos a se insurgirem contra o domínio britânico. A Magna Carta é citada ainda hoje em países de Common Law como um documento fundamental da liberdade individual, mesmo que no princípio ela não tivesse esse objetivo explícito. Nicholas Vincent conta que nos anos 1940, quis-se transformar o dia 15 de junho em festa nacional, ao que oficiais britânicos se opuseram com receio de que isso fosse alimentar movimentos de independência nas colônias britânicas, em especial na Índia.

Hoje a Magna Carta é vista como patrimônio político e cultural da Inglaterra. Sua importância é tal que, apesar de seus termos antigos – foi inclusive escrita em latim – e suas provisões antiquadas, três de seus artigos seguem oficialmente ativos no código de leis do Reino Unido. Para Vincent, trata-se de uma presença simbólica, quase supersticiosa, como se a revogação total da Magna Carta fosse um mau presságio para a liberdade.

Originais da Magna Carta (em suas várias edições) são expostos em diversos locais da Inglaterra, e também em Washington e Camberra. São pergaminhos venerados e guardados sob forte vigilância. Resquícios de uma negociação entre barões, bispos e rei que culminaram nessas preciosas ideias da inviolabilidade da lei, dos direitos individuais inalienáveis e dos limites ao poder do Estado.

Hoje, 15 de junho de 2015, comemora-se o aniversário de 800 anos da Magna Carta, o documento legal mais importante da História, assinado e negociado pelo rei mais detestado da Inglaterra. Para fazer-lhe um pouquinho de justiça, terminemos com suas próprias palavras:

Artigo 63: Pelo acima dito, desejo e ordeno que a Igreja da Inglaterra seja livre e os homens do reino tenham todas as supracitadas liberdades, direitos e concessões, correta e pacificamente, livre e tranquilamente, integral e completamente para si mesmos e seus herdeiros, em todas as coisas e lugares, e para sempre. Além disso, fez-se o juramento, de minha parte de da parte dos barões, de que todas essas coisas serão observadas em boa fé e sem intentos vis. Assinado por mim no campo de Runnymede, entre Windsor e Staines, no dia quinze de junho do décimo sétimo ano do meu reinado.

Long live the king! alipio       [1] Eu romanceei a história, mas em linhas gerais ela é verídica e está relatada no livro. [2] Mais do que o rei, a Igreja tinha condições de espalhar a boa nova em todas suas unidades espalhadas pelo reino, e é graças à conservação de documentos originais nos arquivos de catedrais que se possuem ainda hoje diversas edições originais da Magna Carta. [3] Art. 50 [4] Art. 61 [5] Art. 40 [6] Art. 20 [7] Art. 39 [8] Art. 18 [9] Art. 45 [10] Art. 2º [11] Art. 10º [12] Art. 35 [13]Art. 12

Alípio Ferreira

Formou-se em economia pela EESP-FGV, onde desenvolveu sua paixão por números primos e poesia alemã. Foi editor-chefe da revista Gazeta Vargas, associação cultural formada por alunos das escolas de Administração, Economia e Direito da FGV-SP. Escreveu um artigo sobre plebiscitos suíços no Valor Econômico e foi funcionário público. Almeja glória e poder para todo o sempre. Hoje é mestrando em economia na Universidade de Tilburg, nos Países Baixos. Escreveu para o Terraço Econômico entre 2014 e 2017.

Um Comentário

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