Você no Terraço | por Vivian Garrido Moreira
O Brasil é um país jovem. Não tanto por se mostrar ao mundo há pouco mais de 500 anos, mas porque nós, brasileiros, estamos só agora começando a visualizar e manejar com mais propriedade nossa ação política no interior da democracia. Os que, por algum motivo, chegaram mais cedo ao grau de “doutor”, mesmo que sem possuir efetivamente um doutorado, rechaçam: “Que país pode ir para frente quando o Zé Pipoqueiro é candidato à deputado?” Esquecem entretanto que, em história, não se vai para frente em linha reta. O problema não é o Zé. Este, apenas materializa aquele, de forma visível. O problema aparece sempre que a maioria dos brasileiros se encontrar refletida na (não) história política de quem quer que seja.
Recentemente, Getúlio Vargas foi homenageado no cinema pelos 60 anos de sua morte. Um suicídio, segundo o próprio, motivado pela “pressão constante e incessante de interesses que lhe impediam a ação”. Rememorar este episódio nos traz à lembrança um Brasil nada distante e incrivelmente pouco experiente. Getúlio nos deixou no apogeu de seu regime democrático, pelo menos para os padrões de um ditador, que em 3 anos e meio procurou esfumar a imagem daqueles outros quinze, nos quais rasgar a Constituição era coisa normal. Se de 1930 a 1945 seu poder executivo era também legislativo e judiciário (quiçá divino?), de 1951 a 1954 o esforço para reversão pode não ter sido suficiente até hoje. Não exatamente por culpa daquele velho Getúlio ditador, assim como também não tem culpa o Zé Pipoqueiro; mas sim, pelo difícil, penoso e lento processo de transição para uma democracia madura. Tanto, que é possível resumir, em um ou dois parágrafos, essa aspirante democracia brasileira.
Simples. Antes do “velho Getúlio”? Republica do café-com-leite, com reconhecidas oligarquias locais que, ainda assim, foram o que de mais democrático, pelo menos oficialmente, tivemos: pouco mais de 35 anos com eleições “diretas”, repletas de fraudes por todos os lados, e um fim nada democrático, com o assassinato de um vice (João Pessoa) abrindo o espaço para o golpe de Estado de 1930. Democracia? Antes disso, dois militares. Antes, império. Após o “velho Getúlio”? Um general (Dutra), o “novo Getúlio”, um vice empossado em função de uma morte, um outro (Juscelino) que depois morre estranhamente num acidente de carro, e mais um (Jânio) que renuncia porque “forças terríveis levantam-se contra mim…” Forças terríveis?
Se a trégua parecia permitir um governo de, enfim, 3 anos para Jango deve ter sido mera coincidência (sim, entre o “novo Getúlio” e Jango foram nada menos que 5 presidentes empossados por até, aproximadamente, um ano e apenas JK permaneceu por mais tempo que isso). Apontado como comunista, sai Jango, e claro, morre estranhamente, para a implantação de “meros” 21 anos de ditadura militar. Muito tempo? Não! Pouco, pelo menos segundo levam a crer as palavras atribuídas a Tancredo Neves no filme mencionado acima:
“Se não fosse o suicídio de Vargas, 1954 já teria sido 1964. As lideranças de 64 são as mesmas lideranças de 54, com os mesmos objetivos Para mim, este é o aspecto mais importante do suicídio de Vargas”
O mesmo Tancredo que pareceu brindar, finalmente, a volta da democracia em meados de 1980 soma mais uma morte, claro, estranha, ao polpudo dossiê de mortes, atentados ou assassinatos de políticos no Brasil. Se o golpe militar teria ou não se dado em 1954, não fosse o desfecho trágico de Vargas, isso, no máximo, só aumentaria o grau de fragilidade dessa democracia tão sofrível que ainda temos hoje. E ainda a história, tão fresca na memória de um Brasil pós golpe: um vice-presidente (Sarney), justo originado do partido militar, visivelmente confuso com a imensa responsabilidade de preencher o “buraco” deixado por Tancredo. Uma economia desnorteada, uma inflação desenfreada, dívida externa descontrolada… será que há mesmo espaço para pensar em democracia? Talvez sim… com a esperança de um novo Brasil nas Diretas Já. Talvez sim… com a eleição de uma figura jovem, na idade e na política, que imporia a autoridade de um “caçador de marajás”. Talvez não… se me permitem lembrar de outra figura inusitada que prometia a “vassourinha” para varrer a corrupção, mas sucumbiu antes disso. Venceu o não. Após império, ditaduras, oligarquias e muitas mortes, um impeachment de um presidente da República. Não, isso não aconteceu há 150 anos, mas há pouco mais de 20.
Todos essas ocorrências são como feridas que fragilizam a saúde do tecido social, tornando lenta sua cicatrização e prolongando o tempo de retomada ou mesmo constituição da identidade cultural e democrática de um povo. Sem fazer força, é fácil dizer que somente após a queda de Collor pudemos presenciar mandatos presidenciais com começo, meio e fim, um após o outro, sem suspeitas mortes oficiais e com eleições diretas.
Quem são os nossos políticos? Zé Pipoqueiro? Algum outro menos estigmatizado? De onde vieram? Vieram de um país com pouquíssimas gerações de política consolidada democraticamente. Consolidada por um mínimo de continuidade, o suficiente para, pelo menos, formar algumas gerações confiantes de que fazer política vale a pena. São tão órfãos de um “exemplo” quanto eu e talvez você, caro leitor. Tão novos neste cenário, quanto inexperientes foram seus pais. Sem trocar o devido uso do acento agudo: inexperientes seus pais, jovem seu país.
Como que, num surto de revolta, ainda que legítima, podemos esperar que a história consolide mudanças quase num passe de mágica e em duas décadas? O Brasil caminha sim, hoje melhor do que ontem, consolidando-se no mundo como país em desenvolvimento. Não faz parte do velho mundo e não possui sólidas instituições de mil anos, do que se aproximam algumas universidades britânicas, por exemplo. Se, por isso ou aquilo, diz-se que “esse país não vai para frente”, é contra-factual que tenha retrocedido ou estagnado. Lembrando daquela inflação, ali pertinho na década de 80, daquela dívida externa, até tão pouco já nos anos 2000, do desemprego aberto que a acompanhava, podemos repensar essa crítica contumaz. Se pensarmos nos analfabetos, talvez os pais do Zé pipoqueiro, eles diminuíram quase que continuamente nos últimos 20 anos, período em que, em pontos percentuais, já caíram aproximadamente pela metade. Mas talvez o que mais choca é a lembrança da fome e da pobreza. Segundo o Banco Mundial, pode-se constatar uma redução do número de brasileiros vivendo abaixo da linha de pobreza de 25% para 9% da população entre 2001 e 2012. Em 2014, pela primeira vez na nossa história, um relatório da ONU mostra o Brasil fora da mapa da fome no mundo. A crítica é sempre bem-vinda e necessária, sem dúvida. Precisamos e merecemos dias melhores. Mas olhando para trás, em meio a tantos capítulos tristes de nossa frágil luta por dignidade enquanto sujeitos da história, vamos evoluindo aos poucos. Os graves problemas debelados (ou neste curso) vão, paulatinamente, oxigenando nossas ações a fim de que tenhamos espaço para pensar e agir como a democracia representativa que somos.
Agora, em 2014, vamos eleger democraticamente mais um presidente da República. Que sucede um mandato de quatro anos, por mais quatro anos. Que divide constitucionalmente seu poder com dois outros poderes e não está autorizado a rasgar a Constituição, dissolver o Congresso, extinguir partidos políticos, nem censurar este artigo que você está lendo. Uma conquista inestimável. Assim esperamos!
Vivian Garrido é economista, mestre pela UFRJ e doutora em Desenvolvimento Econômico pela USP com doutorado sanduíche na University of London
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