A Lei do Bem e o risco moral de não tratar iguais como iguais

A aprovação de uma medida de lei em países democráticos, costuma – e até certo modo deve – ser feita de maneira um tanto lenta. Muita discussão tem que ocorrer, até chegar a um consenso final, que no caso seria a aprovação ou não de determinada lei.

Apesar de todo esse processo, que tenderia a filtrar possíveis falhas nas propostas,  os motivos que levariam a promulgação de uma lei continuam levantando questões altamente sensíveis, sujeitas a muitas indagações. Como, por exemplo, a presença do risco moral (moral hazard), que envolve o governo e os possíveis beneficiários de uma lei.  

Isso decorre de as leis não necessariamente serem aprovadas pensando “a nível de Brasil” – o que não é nenhuma novidade – mas para corresponder a interesses bem mais restritos, alguns representados por lobbys, constituindo numa forma de não tratar iguais como iguais. Essa tendência pode ser identificada a partir da observação de comportamentos coordenados, ex-ante à promulgação de uma determinada lei, e a eficácia (ou falta) desta, ex-post à promulgação.


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Mas será mesmo que existe alguma relação entre esses comportamentos coordenados, representados por contribuições financeiras em campanhas eleitorais, e excesso de “boa vontade” na aprovação de certas leis? Ou isso seria apenas mera especulação, misturada com coincidência?

Para tentar responder a essa pergunta, vamos analisar o trâmite da aprovação da Lei do Bem (2005), para poder identificar se houve a presença de elementos que poderiam caracterizar a presença de risco moral.

O que seria a Lei do Bem?

A Lei 11.196/05, chamada de Lei do Bem, foi elaborada originalmente tendo por objetivo incentivar à inovação. Por meio dessa lei, seria fornecido incentivo para a cooperação entre universidades e empresas, além de incentivos fiscais à inovação para pessoas jurídicas optantes do sistema de lucro real que realizarem pesquisa e desenvolvimento de inovação tecnológica (P&D).

Essa lei foi aprovada em 21 de novembro de 2005, após apenas treze sessões na Câmara dos Deputados, tempo considerado curto para a aprovação de uma lei. Tendo contado no total, com 198 parlamentares, que participaram em todas as fases de aprovação da referida lei.

Mas onde está o risco moral?

Apesar de ter sido formulada originalmente com o nobre objetivo de inovar e trazer dinamismo a vários setores da economia brasileira, a proposta da Lei do Bem possuía um conjunto de inconsistências, que não foram devidamente discutidas no processo de sua aprovação.

Umas dessas inconsistências estava sobre os reais beneficiários desta lei. Será mesmo que precisavam desse benefício? A resposta é não, dado que as empresas que tiveram maior acesso aos incentivos fiscais, eram justamente grandes empresas, que já desenvolviam P&D com os seus próprios recursos.

Os próprios requisitos exigidos para se ter acesso aos incentivos impuseram grandes restrições a participação de micro e pequenas empresas. Dado que entre os requisitos estão a utilização do regime de Lucro Real – algo geralmente utilizado por empresas de grande porte -, além da necessidade de se investir em P&D.   

Como consequência, as empresas privilegiadas pela lei eram justamente as que já tinham condições de investir em P&D, o que promoveu o fortalecimento de distorções, com a intensificação da assimetria de informação e a maior concentração de mercado. Algo que pendeu positivamente para as grandes empresas, que tiveram acesso a recursos públicos em detrimento de micro e pequenas.

Mas esse privilégio guarda relação com a contribuição (o investimento) feito pelas empresas contempladas com a lei, nas campanhas eleitorais dos parlamentares, nesse caso as campanhas relativas as eleições de 2002 (a 52º Legislatura). Para mostrar isso, vamos utilizar a assiduidade dos parlamentares nas votações relativas a lei.

Conhecendo a assiduidade desses parlamentares, vamos verificar a origem das doações realizadas em suas campanhas.

Como mostra a figura, a maior parte da receita das doações recebidas pelos políticos que participaram da votação da lei foi derivada de empresas. Esse dado em si, pode não dizer muita coisa, mas quando complementado com o valor total das doações – foram de R$ 23.678.477,42 – e o total de empresas financiadoras – 1.866 empresas nacionais e estrangeiras -, indicam um alto financiamento realizado por um número restrito de empresas. Assim, os principais financiadores das campanhas desses parlamentares teriam sido grandes empresas com grande interesse na aprovação desta lei.

 

Outra informação bem interessante são os partidos dos parlamentares que participaram dessas votações. A heterogeneidade dos partidos, que contemplou de partidos de esquerda como o PT, a partidos em tese liberais como o PFL (atual DEM), demonstra que o poder do risco moral pode superar diferenças ideológicas supostamente irreconciliáveis.

O papel da mídia

Um agente que teria grande poder para inibir o risco moral entre empresas e governo, ainda mais naquela época – não havia a disseminação de redes sociais – era a mídia. Revistas e jornais poderiam ter destacado as falhas da elaboração da lei, ou pelo menos ressaltado o seu grande objetivo: incentivar a inovação.


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Mas isso não ocorreu. A grande ênfase dada pela imprensa foi a de que a Lei do Bem era extremamente necessária para o desenvolvimento brasileiro, e que portanto, deveria ser implementada. A questão da inovação também foi deturpada, sendo substituída por “parceria entre público e privado”, palavra que estava na moda naquela época.

Para demonstrar esse descaso da mídia com os verdadeiros objetivos da lei, é possível observar na figura abaixo uma nuvem de tags contidas em reportagens que tratavam sobre a Lei do Bem, com as palavras mais escritas no âmbito das notícias.

Como foi analisado por Clemente e Silva (2018), nos textos das 41 reportagens retiradas dos jornais Folha de São Paulo e Estado de São Paulo, informando sobre os aspectos do projeto de lei, as palavras mais escritas foram: “governo”, com 86 repetições e a palavra “empresas”, com 76 repetições. Palavras importantes, que impactam na formação de opinião do público-leitor também foram repetidas diversas vezes: “investimentos” (43 vezes), “Câmara” (42), “tributos” (28), “desoneração” (27), “benefícios” (25), “Senado” (25), “FIESP” (21), “acordo” (20), “contribuições” (19). A palavra “inovação”, que em teoria deveria ter sido a mais repetida, foi repetida apenas 17 vezes.

A verdadeira inovação

Evocando uma reflexão muito difundida pelo grande economista Marcos Lisboa: “O Brasil precisa aderir a uma agenda republicana”. Nessa agenda não há espaço para coordenações construídas entre governo e empresas (e mídia) com o objetivo de aprovar privilégios.

Dessas coordenações, a única inovação que costuma ser feita é a manutenção do tratamento privilegiado dado para grupos restritos. Inovação de verdade seria tratar de maneira igual os iguais.

Felippe Clemente Pós doutor pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) Lucas Adriano Editor do Terraço Econômico Referências Bibliográfica *Clemente, F.; Silva, E. H. As contribuições eleitorais e os incentivos à inovação no Brasil. Trabalho de Pós-Doutorado, Departamento de Economia, Universidade Federal de Viçosa, 2018.    

Lucas Adriano

Mestre em Economia e bacharel em Ciências Econômicas na Universidade Federal de Viçosa (UFV). Vindo de Ponte Nova (MG), cruzeirense e fã de observar a abordagem econômica sendo utilizada nos mais diversos assuntos. Espera um dia poder dar a sua contribuição para a Ciência Econômica.
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