A maioria silenciosa e as franjas retumbantes

“Caetano (Veloso), quem são verdadeiramente os seus inimigos?”. Foi assim que o jornalista Geraldo Mayrink iniciou uma pergunta ao artista, em 1978. Décadas mais tarde, a resposta do filho ilustre da Santo Amaro da Purificação  viralizou: “Não, você é burro, cara. Que loucura!”, e por aí foi. Piadas à parte, é interessante pensar que os inimigos de uma pessoa podem ser tão bons indicativos de sua personalidade quanto o são os amigos. Na mesma resposta, instantes após os (cômicos) insultos iniciais, Caetano menciona o diretor Cacá Diegues, ao esquivar-se na questão da chamada patrulha ideológica.

O mesmo Cacá Diegues, em um artigo publicado no final de junho de 2020, mostrou quem ele considera serem seus inimigos. O tema da peça foi o que ele vê como a ascensão da barbárie na forma de uma nova direita “imperial, populista, autoritária e eufórica com suas vitórias”. Na sua visão, esse novo eleitorado de direita, o qual ele, pejorativamente, chama de gado, seria fruto do que Fukuyama denominou como fim da História, a vitória do capitalismo sobre o comunismo marcado pela queda do muro de Berlin. Além disso, o cineasta alega que os líderes dessa corrente teriam sido eleitos “graças à internet e, sobretudo, graças à difusão de mentiras organizadas através dela”. É provável que muitos dos leitores que chegaram ao final do texto tenham reagido de forma parecida com Caetano diante da pergunta de Mayrink.

Quem são seus inimigos? Essa pergunta é um bom ponto de partida para entendermos o cerne do conservadorismo. Samuel Huntington, que fez uma revisão do movimento conservador através da história em seu artigo “Robust Nationalism”, de 1999 , mostrou  que essa corrente ganha força sempre que existe uma ameaça a ordem, a cultura e as instituições. Tal fenômeno é visto desde o século XVI, quando os pluralistas medievais se insurgiram contra os monarcas absolutistas, e tantas outras vezes e em diversos países, onde as instituições e o status quo era atacado. Nesse mesmo artigo, ele cita  outro brilhante acadêmico, Owen Harries, afirmando que “a real antítese do conservadorismo não é o liberalismo ou o socialismo, mas o radicalismo”.

Saindo da teoria para a realidade brasileira, podemos nos perguntar o que causou esse movimento pendular recente, do que podemos chamar de maioria silenciosa, da esquerda para a direita. Qual foi o fenômeno recente na política brasileira que levou conservadores e liberais se juntarem contra uma esquerda que vinha de vitória nas últimas quatro eleições presidenciais? Se você pensou em Internet, errou. Foi o radicalismo: bravatas de todas as espécies, narrativa de que o impeachment foi golpe, ameaça em não cumprimento de ordens judiciais, lançamento de uma falsa candidatura de um presidiário à presidência, a sombra constante das milícias do MST e dos sindicatos e uma insistência débil em um receituário econômico comprovadamente implosivo. Soma-se a isso o manifesto desejo de perpetuação no poder, valendo-se, secretamente, de expedientes nada democráticos.

Como o próprio Caetano relatou, em um programa de TV há alguns anos, “… os que têm vinculação com as ideologias de esquerda são, às vezes, perigosamente atraídos por ideias não democráticas e muitas vezes consideram a democracia uma formalidade burguesa que precisa ser superada”. As democracias morrem de dentro para fora. Em resposta a essa real ameaça, o governo conservador brasileiro está simplesmente cumprindo seu papel histórico ao mobilizar-se para desaparelhar o Estado que, durante 14 anos, foi vassalo do projeto de partido do PT. 

É evidente que existem radicais na direita que clamam pela volta do regime militar, da mesma forma que há radicais na esquerda que querem a ditadura do proletariado. Discutir essas franjas ideológicas é pura perda de tempo. Infelizmente, no cenário nacional, o palco é dos extremistas, estejam eles bradando pela volta do AI-5 ou exigindo um impeachment sem fundamento. E como o radical “acha feio tudo que não é espelho”, a maioria silenciosa é chamada de fascista de um lado e socialista enrustido por outro. 

Assim, nosso debate político reduziu-se a uma briga de jardim de infância. Falta maturidade para perceber quem é verdadeiramente o inimigo do povo: um Estado inchado, ineficaz, corrupto, repleto de agentes que “exercem seus podres poderes” em benefício próprio. O movimento pendular da maioria silenciosa no Brasil está, aos poucos, voltando para o centro, mas ainda sem nenhuma figura representativa. Faltam líderes probos e eficientes que, sem nenhum radicalismo, lutem para diminuir as regalias que cercam o poder e usem os recursos do Estado para maximizar o bem-estar da população. É pedir muito?

Eduardo Sholl Machado

Cientista político e mestre em relações internacionais pela IE University.

João Marco Braga da Cunha

Doutor em engenharia elétrica pela PUC-RJ e mestre em economia pela FGV.

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