A quarentena diagonal endógena

É provável que o economês esteja no pódio dos dialetos profissionais menos compreensíveis pela população em geral (data máxima vênia, é público e notório o ocupante do seu degrau mais alto). Em alguns casos, porém, os termos incompreensíveis proferidos por economistas escondem conceitos simples. Um caso desses ocorreu no início de 1999. Gustavo Franco deixara a presidência do Banco Central e fora sucedido por Chico Lopes, num período de seguidas crises em países emergentes e de forte pressão sobre o Real que, na época, era atrelado ao Dólar. Pois bem, ao assumir, Lopes anunciou o fim do regime de câmbio fixo e a adoção da banda diagonal endógena.

Como é? Que diabos é isso? Foi o que passou na cabeça da maioria das pessoas. Vamos por partes. O novo sistema teria uma banda fixada diariamente na qual a taxa de câmbio flutuaria livremente, e não a um valor fixo. Ao longo do tempo, essa banda iria se deslocando para cima, ou seja, o Real seria gradualmente desvalorizado, daí o fato dela ser diagonal. Esse deslocamento da banda, porém, seria definido com base nas próprias condições de mercado, por isso a banda era endógena. Em suma, a banda seria um meio termo entre o câmbio ancorado ao dólar e a flutuação inteiramente livre.

O regime não funcionou e foi abandonado em poucos dias. A despeito disso, pode se dizer que as melhores soluções não costumam estar nos polos dos espectros de possibilidades. O meio do caminho tende a conter as melhores opções. Mais de vinte anos após o seu fracasso, a ideia de banda diagonal endógena parece uma saída interessante para um outro problema completamente diferente.

Há duas visões polares sobre como deveríamos lidar com a questão da pandemia de COVID-19. Um grupo acredita que todos deveriam ficar confinados em casa o tempo que for necessário, enquanto outros querem as pessoas nas ruas e trabalhando. Os problemas de ambas as visões são óbvios o bastante para podermos não mencioná-los. 

De certa forma, já adotamos uma solução intermediária no Brasil. Escolhemos alguns setores da economia para seguirem funcionando, fechamos os demais, não restringimos a mobilidade e torcemos para que o achatamento da curva seja suficiente para evitar o colapso do sistema de saúde. Mas é provável que fosse melhor abordar o problema sob outra perspectiva.

Não é razoável que a política de enfrentamento à pandemia ignore o fato de que as taxas de necessidade de atendimento médico e de UTIs estão intimamente ligados à idade e outras condições do infectado. O corte por setor da economia expõe pessoas vulneráveis e inutiliza outros com pouquíssima propensão a desenvolver manifestações graves da doença.

A política ideal deveria combinar a restrição de mobilidade baseado em faixas etárias com uma modularização das atividades econômicas considerando a indispensabilidade, os riscos de contaminação inerentes ao seu exercício e o perfil etário da sua força de trabalho. Simplificando, teríamos algo como: o setor A pode funcionar com os trabalhadores de até X anos, o B com os trabalhadores de até Y anos e as pessoas com menos de Z anos podem ir e vir livremente. Tudo estimado de forma a garantir níveis seguros de ocupação da infraestrutura hospitalar, levando em consideração as idiossincrasias locais.

Com o passar do tempo, a proporção de pessoas economicamente ativas ou com mobilidade já expostas ao vírus e com resposta imunológica do organismo seria relevante, gerando ociosidade de leitos. Nesse ponto, seria possível um ajuste para cima dos limites de idade antes estabelecidos, de acordo com os mesmos critérios. Assim, a banda de idades liberadas para exercer as diferentes atividades descreveria uma trajetória diagonal crescente ao longo do tempo.

Evidentemente, como os modelos estatísticos são imprecisos por natureza, os novos dados gerados ao longo do processo poderiam ser usados para melhor calibrá-los e, com isso, nortear a evolução das restrições. Podemos dizer que essa banda diagonal seria endogenamente determinada ou, simplesmente, endógena.

Outra medida que deveria ser herdada da economia e, em particular, das boas práticas dos bancos centrais, é relacionada à transparência. O(s) governo(s) deveria(m) explicitar quais são as suas melhores estimativas para a trajetória de todas as restrições. Isso ajudaria os indivíduos e empresas a se planejarem, reduzindo o custo em termos de atividade econômica e desemprego.

Equilibrar o número de vítimas fatais e o impacto econômico é uma questão moral extremamente complexa. A matemática, nesse caso, é tão útil quanto o é para somar bananas com maçãs. Em economia, há o conceito de otimalidade de Pareto, segundo o qual um solução é ótima quando não é possível melhorar em uma dimensão sem piorar outra. Não é esse o caso da política que estamos adotando.

Independentemente dos vieses pessoais, não é admissível que salvemos menos vidas que o possível dada a crise econômica que aceitamos ou, analogamente, que tenhamos uma retração na economia maior que a necessária para o não ultrapassarmos o nível de mortalidade para o qual nos resignamos. Não há economês, juridiquês, mediquès ou filosofês capaz de justificar uma política com tais resultados.

João Marco Braga da Cunha

É mestre em economia pela FGV-Rio e doutor em engenharia elétrica pela PUC-Rio.

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