Roubando holofotes da cúpula do G20, no Japão, líderes da União Europeia e do Mercosul anunciaram em Bruxelas na última sexta-feira (28 de junho de 2019) a conclusão do histórico acordo de comércio entre os blocos. Um suspiro de alívio para alguns, e uma grande surpresa para muitos, o fim das negociações iniciadas há 20 anos é um golaço para os 32 países envolvidos.
É normal que ninguém se lembre quando tudo isso começou, lá em 1999. No Brasil aquele era o tempo em que o dólar valia R$1,55, as pessoas se preparavam para o “bug do milênio” e passava Terra Nostra na TV. Do lado europeu então, o euro estava recém sendo adotado como moeda para transações comerciais e financeiras e a UE, que hoje tem 28 Estados-membros, tinha apenas 15.
Fast-forward para 2019. A União Europeia hoje responde por 22% do PIB mundial em termos nominais, possui acordos comerciais com mais de 70 países e o comércio internacional (soma de importações e exportações) corresponde a 88% de seu PIB¹. Já deste lado do Atlântico, o Brasil figura como uma das economias mais fechadas e menos integradas às cadeias globais de valor do mundo – com a proporção de comércio internacional em relação ao PIB de apenas 29%, atrás de parceiros emergentes como Índia (42%), Chile (58%) e China (38%).
Apesar de terem um dia partilhado de ambições similares no tocante à integração econômica, a UE e o Mercosul tomaram rumos bastante distintos. Nos últimos anos, o bloco sul-americano enfrentou um dilema quase existencial entre estreitar laços comerciais entre seus membros, modernizando o mercado comum para a nova realidade econômica global ou optar por uma segunda e disruptiva alternativa, com cada um em seu voo solo. A conclusão do acordo com a UE indica que, felizmente, optou-se pela primeira.
O maior acordo do mundo
A magnitude do que foi acordado não cansa de impressionar. Até para a UE, que possui mais de 30 acordos de comércio em vigência, nada se compara às dimensões do que foi negociado. Exportadores europeus se beneficiarão de uma economia anual de €4 bilhões, pagos hoje em tarifas sobre suas exportações ao Mercosul – ganhos quatro vezes maiores do que aqueles alcançados no acordo com o Japão, o maior negociado pelo bloco europeu até então. O acordo UE-Mercosul cria a maior área de comércio preferencial do mundo em termos populacionais, abrangendo um mercado de cerca de 773 milhões de pessoas, e um PIB de US$ 20 trilhões, quase um quarto da economia mundial.
Após duas décadas de negociação, praticamente nada ficou de fora. A UE irá liberalizar 95% de suas linhas tarifárias² para as exportações do Mercosul, sendo inclusas nesta conta 100% dos bens industriais e 82% dos produtos agrícolas. Para setores considerados sensíveis no mercado europeu foi concedida abertura parcial, por meio, por exemplo, de cotas tarifárias para carne bovina, etanol, açúcar, frango, entre outros produtos. Já o Mercosul liberaliza cerca de 91% de suas linhas tarifárias para as exportações europeias, incluindo 90% dos bens industriais e 95% dos produtos agrícolas. Os cronogramas de redução de tarifas variam de acordo com o setor, tendo sido concedidos prazos de transição para produtos sensíveis.
Apesar de ser descrito por alguns analistas como um acordo de primeira geração, como são designados na linguagem acadêmica acordos antigos, com foco na redução de tarifas de importação, isso não faz jus aos aspectos modernos do acordo UE-Mercosul. Foram incluídas no acordo matérias voltadas ao funcionamento de cadeias de valor, como disposições de cooperação regulatória, que visam minimizar custos de operadores econômicos por meio do alinhamento ou reconhecimento mútuo de regulações e da redução de processos burocráticos. No setor automotivo, por exemplo, foi negociada a aceitação mútua de testes de avaliação de conformidade, que hoje são duplicados, feitos aqui e lá também.
Além disso, o acordo inclui um capítulo dedicado a desenvolvimento sustentável, que trata de questões importantes ao comércio internacional contemporâneo, como normas e objetivos internacionais em matéria de padrões trabalhistas e de combate a mudanças climáticas. O compromisso com o Acordo de Paris será reforçado com a assinatura do acordo UE-Mercosul, e o mesmo ocorre com as convenções fundamentais da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Gregos e troianos
Agradamos então a gregos e troianos assinando um acordo de liberalização econômica que inclui disposições progressistas e conscientes? Isso só vamos descobrir quando o texto chegar aos parlamentos para ratificação.
O que sabemos, porém, é que a integração de cadeias produtivas para além de fronteiras tem sido acompanhada de uma demanda cada vez maior de grupos da sociedade, incluindo consumidores, por maior transparência e responsabilidade. O capítulo sobre comércio e desenvolvimento sustentável, exigência para acordos negociados pela UE, demonstra que o comércio não ocorre em um vácuo de valores e tampouco ignora anseios da sociedade moderna.
Como nem tudo são rosas, há claro aqueles setores específicos que serão impactados negativamente pelo acordo, especialmente no curto prazo. O período de transição para acordos de comércio existe justamente por isso. Do lado europeu, onde o setor mais sensível é a agricultura, o anúncio do acordo veio acompanhado de um pacote de €1 bilhão para apoiar agricultores a fazerem ajustes necessários em caso de perturbações no mercado resultantes do acordo. Do lado do Mercosul, alguns setores da indústria terão até 15 anos para se adaptar às novas condições de concorrência, antes das novas regras valerem. Essa foi uma façanha conquistada por nossos negociadores, já que a UE não costuma conceder transições tão longas assim em suas negociações. Seria nosso charme latino?
Importar é o que exporta
A conclusão de um acordo desta magnitude, porém, requereu um verdadeiro alinhamento astrológico.
Houve no Brasil uma mudança gradual, porém, tangível, de posicionamento por parte de importantes grupos de interesse sobre a relevância da inserção do país na economia global. Representantes do setor produtivo abandonaram em sua maior parte a nostalgia verticalista de querer que todas as etapas de produção ocorram em território tupiniquim, mesmo aqueles em que não somos competitivos. A consciência de que importação é tão importante quanto exportação para a competitividade da nossa indústria é um paradigma hoje quase consolidado. Nas palavras do presidente da CAMEX (Câmara Interministerial de Comércio Exterior), Carlos Pio, “sempre se pregou no Brasil que exportar é o que importa; hoje, queremos mostrar a todos que importar é o que exporta”.
Essa mudança, porém, ocorreu a duras penas. A começar pela recente crise econômica, que trouxe consigo um lado bom: fez diversos negócios questionarem estratégias que não olhavam além do mercado interno. Já para setores que já exportavam, mostrou que o foco apenas no Mercosul os deixava dependentes de bons momentos econômicos principalmente na Argentina. Em paralelo a isso, aqueles que exportavam para outros vizinhos da América Latina viram suas parcelas de mercado diminuírem conforme seus parceiros assinaram seus próprios acordos de comércio, inclusive com a UE.
Além disso, a inegável mudança de estratégia da atual administração sobre política econômica e inserção internacional também foi importante, dando um “empurrãozinho” à mudança de percepção dos setores produtivos quanto às prioridades da agenda política. Acordos de comércio reforçarão esta dinâmica ao tornarem a sobrevivência da indústria dependente de um ambiente de negócios saudável, e não mais da proteção tarifária, que impede a concorrência de importados à custa do consumidor.
Parabéns aos envolvidos
Por seu caráter sensível e, ao mesmo tempo, denso, acordos de comércio são um exercício de paciência e perseverança, e na maior parte dos casos existem num continuum entre mandatos de diferentes governos. No caso do Mercosul, focando apenas na fase recente iniciada em maio de 2016 com a segunda troca de ofertas, o Brasil passou por três governos diferentes, que seguiram negociando o mesmo texto.
Os times negociadores se encontraram regulamente de 2016 para cá em rodadas de negociação alternadas em Bruxelas e nas capitais do Mercosul, fazendo progresso lento e constante. O atual governo manteve a seriedade do projeto, juntamente com os demais lideres de países do Mercosul. A Argentina liderou as negociações do lado Mercosul desde janeiro, por ocupar a presidência pro tempore do bloco. Não fosse o ímpeto também de nossos vizinhos, um impasse teria sido criado, como tantas outras vezes.
E é por isso que não terminaremos esse artigo dando um “tapinha nas costas” com os devidos parabéns a ninguém. Projetos desta magnitude não costumam ter uma cara ou um dono e por isso possuem a vantagem de serem julgados por seus méritos, mais do que pela sigla daquele que os assina. Torçamos para que os méritos desse acordo sejam concretizados, e que ele possa representar o início de um novo (e positivo) capítulo na história do comércio brasileiro. #parabénsaosenvolvidos.
Rachel Borges de Sá
É mestre em Economia Política Internacional pela London School of Economics e editora do Terraço Econômico.
Priscila Quaini Jacobitz
É mestre em Economia Política Internacional pela London School of Economics e especialista em comércio internacional, baseada em Bruxelas.
Notas ¹Dados do Banco Mundial. ²Linha tarifária é a representação precisa e detalhada de um produto de acordo com o sistema harmonizado (SH) de comércio internacional.