O quid pro quo de Trump & Bolsonaro e uma torcida inusitada

Em meio a camisas de futebol, um número elevado de citações religiosas, jantares pomposos e até um “rolezinho” fora do script pelas ruas da capital federal, a visita do presidente Bolsonaro à terra do Mickey e de George Washington foi marcada por um curioso foco na diplomacia econômica – área que fascina essa que vos fala, mas raramente ultrapassa as barreiras da seção internacional dos grandes jornais.

Curioso, pois apesar da obviedade inicial, muitas visitas de Estado (o que na verdade essa não foi, sendo classificada como uma visita técnica) passam o mais longe possível da concretude, e assuntos de natureza econômica, como o comércio bilateral e agendas de fóruns multilaterais, são frequentemente tidos como conflituosos demais para figurarem em declarações conjuntas produzidas refletindo os resultados da visita (os famosos Joint Statements).

Com frequência, estes dão lugar à troca de elogios ou intenções amplas e gerais, como “a cooperação pelo bom funcionamento das economias”, ou até mesmo algumas palavras enfeitadas para celebrar fatos de questionável relevância econômica, como a chegada de um urso panda ao zoológico do país parceiro (de fato, isso ocorreu entre China e Reino Unido em recente Diálogo Ministerial de cunho econômico e financeiro).

Foi com surpresa então que segui em manchete de jornais a discussão sobre a barganha entre EUA e Brasil em relação à acessão brasileira à Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE) e a posição do país como membro da Organização Mundial do Comércio (OMC). Trocando em miúdos o internacional-economês, Donald Trump sugeriu ao parceiro Tupiniquim a troca de apoio à acessão formal à OCDE pela renúncia do Brasil ao tratamento especial e diferenciado oferecido para países autodeclarados emergentes na OMC. Mas o que isso significa?

Isso significa que o Brasil decidiu trocar uma organização pela outra, abandonando o mecanismo multilateral de comércio global entre países e deixando de usufruir de seus instrumentos, para dar lugar a um fórum de países ricos? Não.

Para evitar a confusão de alhos com bugalhos, vale lembrar primeiramente que as duas instituições não são mutuamente excludentes. Com propósitos e papeis bem diferentes na economia global, a OMC e a OCDE não guardam qualquer relação entre a entrada em uma instituição e a saída da outra.

Enquanto a primeira tem como objetivo ser um fórum multilateral para negociação de comércio, oferecendo uma plataforma para resolução de conflitos entre seus membros em prol de um sistema comum de regulação do comércio global, a segunda tem como foco a disseminação de melhores práticas e padronização de arcabouços institucionais visando a cooperação econômica e o desenvolvimento não somente para seus países membro, mas também para a economia global como um todo.

Em outras palavras, seguindo ou não os conselhos do amigo da Casa Branca, o Brasil poderia ser membro das duas organizações simultaneamente, como assim são os outros membros da OCDE.

Tampouco significa que o Brasil abandonará seus direitos de participar de discussões da OMC. Deixando de lado a moralidade da barganha, a gradual redução do tratamento especial e diferenciado (TED) da OMC (que inclui condições favorecidas na negociação de acordos de livre comércio e períodos maiores para adaptação a resoluções resultantes de disputas) para economias hoje de escala global como México, China e Brasil pode representar um bote salva vidas para a própria organização.

Ao ajustar seu formato para uma realidade econômica global hoje muito diferente da quando de sua criação, a organização estaria endereçando uma fonte de grande conflito entre seus países membro, em especial os EUA. Para o Brasil, o efeito seria relevante (afetando o agronegócio, por exemplo, via regras mais rigorosas para subsídios agrícolas), porém remediável – apenas 1% das exportações brasileiras fazem uso do sistema geral de preferências com menores taxas de importação, por exemplo.

E quanto a OCDE? É verdade que o agora apoio dos EUA para a aplicação do Brasil para se tornar membro da organização não se traduz em uma entrada automática. A decisão unânime dos países membro de aceitar um novo pedido é apenas o primeiro passo na verdadeira saga para virar membro pleno da OCDE.

A partir de então, o país passa por um processo de análises pelos inúmeros comitês da organização, que avaliam o alinhamento do potencial novo membro aos padrões e melhores práticas defendidos pela Organização. Tal processo pode levar meses, ou até mesmo anos – a depender do alinhamento prévio do país aos denominados instrumentos legais.

Mas vale a pena tanto esforço? Para a humilde autora que vos fala, sim. Tornar-se membro da OCDE vai além de um valioso “selo de aprovação” para a atração de potenciais investidores estrangeiros, sendo o seu próprio processo de acessão uma importante ferramenta para necessárias e há muito adiadas mudanças no arcabouço institucional brasileiro.

Dizendo de outra maneira, o árduo caminho para aceder à OCDE se tornará então alavanca para o aprimoramento e modernização do ambiente de negócios no Brasil, em áreas que tocam desde transações financeiras, comercialização de serviços e tributação internacional, à melhores práticas ambientais, sociais e de educação. Um verdadeiro “bode expiatório às avessas”. Por fim, um assento na OCDE traz o Brasil à mesa na hora certa, levando-nos a participar efetivamente da definição de discussões que pautarão a agenda da economia global – ao invés de chegarmos apenas para a sobremesa, nos adaptando a pautas pré-estabelecidas nos bastidores.

Em conclusão, não pretendo aqui prever impactos de uma potencial mudança de direcionamento da política externa e comercial brasileira (o que requererá mais do que uma primeira visita técnica), tampouco determinar como total sucesso ou fracasso a visita de Bolsonaro aos EUA, até mesmo porque muitas outras importantes agendas fora de meu raso conhecimento foram também abordadas, como defesa e política externa (vide o acordo sobre a base de Alcântara e discussões sobre Venezuela).

Porém, confesso que, lembrando o que disse recentemente ao ver uma foto de Bolsonaro e Trump na sala Oval, “nunca pensei que fosse torcer por esses dois”.    

Rachel Borges de Sá – Editora Terraço Econômico

Rachel de Sá

Mestre em Economia Política Internacional pela London School of Economics, mestranda em Economia, Desenvolvimento e Políticas Públicas pelo IDP, e graduada em Relações Internacionais pela PUC-SP. Idealizadora do canal do Terraço Econômico no Youtube, acredita que educação financeira é para todos, e sempre busca explorar a linha tênue entre ciência política e economia.

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