A decepção da população com a classe política brasileira não é novidade, tampouco surpresa, mesmo diante de peculiaridades que escancaram um problema histórico, que parece estar culturalmente impregnado no sistema como um todo. A partir deste contexto, a atuação do Congresso e do Executivo toma cada vez mais atenção do eleitorado brasileiro, devido aos possíveis inúmeros escândalos de corrupção, e aprovação de medidas que representam retrocesso para o sistema democrático.
Em um texto publicado em março deste ano, intitulado “nepotismo à brasileira e a falsa meritocracia na política”, expus alguns desses absurdos que passam despercebidos pela população, que se encontra exaurida de ter que enfrentar esses problemas, os quais já foram normalizados ao longo do tempo. Nele, citei um trecho do, até então, pouco conhecido, líder do governo Bolsonaro na câmara dos deputados, Ricardo Barros (PP-PR), que defende abertamente a prática de empregar familiares no setor público e, também, a iminência da normalização disso através da brecha aberta pela proposta apresentada curiosamente pelo seu rival político, o deputado Carlos Zarattini (PT-SP). O substitutivo de Zarattini acaba com as punições do artigo 11, restando apenas a possibilidade de condenar gestores públicos se o ato tiver causado prejuízo financeiro ou houver enriquecimento ilícito. Passados três meses da publicação, o projeto de Zarattini foi aprovado na câmara dos Deputados com apoio de Barros que hoje, por coincidência, se encontra no centro do debate sobre o esquema de corrupção envolvendo a compra da vacina Covaxin.
Mesmo diante dos impactos financeiros da crise do novo coronavírus, a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2022 foi aprovada com uma reserva de R$ 5,7 bilhões para o “Fundo Eleitoral”. Esse valor é quase três vezes o destinado para as eleições municipais do ano passado, que foi de R$ 2 bilhões.
O Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) foi criado em 2017, em resposta à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que proibiu doações de empresas para campanhas políticas na esteira do escândalo do “Petrolão”. Teoricamente, esse novo modelo estimula o curso natural democrático, o qual vinha sendo contornado com financiamento das grandes empresas privadas, que visavam manter suas representações políticas em benefício de facilitações. Vale lembrar que modelos de financiamento público de campanhas existem em mais de uma centena de países no mundo, inclusive na Alemanha, e mesmo defensores de fora do meio político apontaram que a medida pode diminuir a influência do dinheiro sujo nas candidaturas. Por isso, é imprescindível frisar a importância do fundo, entretanto, um aumento substancial completamente fora de hora e até desnecessário, pode abrir espaço para que os políticos órfãos do financiamento das grandes empresas gritem pela volta do antigo modelo, que já mostrou seu alto potencial de promover grandes esquemas de corrupção.
Insolitamente, o presidente da república assumiu uma posição pública de oposição ao aumento do fundo, contrariando seus principais aliados que, segundo os registros de votação, votaram a favor da ampliação do FEFC. Tal movimento levantou questionamentos se a gritaria do governo não passa de um jogo de cena para tentar salvar algo de sua imagem junto ao seu eleitorado.
No texto passado já citado, escrevi que o campo político reflete o problema da gigantesca desigualdade social brasileira e, pelo visto, inverter as prioridades em prol de sua própria classe parece ser a grande especialidade da casa do povo. Hoje, olhando para os debates antepostos para a volta do recesso parlamentar, pela classe política de Brasília, temos em destaque à “PEC do voto impresso” e os imbróglios em torno da discussão do valor do fundo eleitoral.
Preocupados demais com seus objetivos eleitoreiros, o executivo e o legislativo, em sua grande maioria, seguem bastante atentos às pautas inoportunas, enquanto as prometidas grandes reformas estruturais capazes de atenuar os impactos econômicos/sociais da crise e, também ineficiências históricas, seguem ‘estacionadas’ em segundo plano.
Geralmente reconhecido como fundador do pensamento e da ciência política moderna, Nicolau Maquiavel já afirmou que “a ambição do homem é tão grande que, para satisfazer uma vontade presente, não pensa no mal que daí a algum tempo pode resultar dela”. O trecho pode ser facilmente associado à classe política brasileira, que certamente o afirmaria em outras palavras: ‘Farinha pouca, meu pirão primeiro’.
Marlon Cecilio de Souza
É economista pela UERJ e pós-graduando em política e sociedade pelo IESP-UERJ. Atualmente trabalha como analista de crédito no Bank of New Yok Mellon.
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