Capitalismo progressista

Falar abertamente sobre sexo, sem qualquer filtro de ocasião, é um interdito social. É feio, é constrangedor. Falar sobre a morte é outro interdito, não ousamos evocar, sem pretexto de força maior, o nosso desespero definitivo. Sexo e morte, o começo e o fim, estão selados em um acordo de silêncio, impulsos que sobrevivem na meia luz da intimidade.

Há, porém, um terceiro tabu social, talvez mais compulsório que os outros dois, e mesmo assim pouco percebido enquanto interdição: o tabu do poder. Mais compulsório, porque ele se disfarça de instrumento para dissimular sua natureza – eu exerço poder para realizar algo, como se o objetivo do poder ultrapassasse seu mero exercício. Do ponto de vista individual, isso é uma mentira, um disfarce de recato que preserva sua verdade interdita: perseguimos o poder, na vida de todos os dias, porque o poder é delicioso.

O poder é projeção. O poder é deferência. O poder é uma sucessão de sorrisos bajuladores que enaltecem as qualidades que você não tem. É, em suma, uma sensação superior de si projetada nos sinais de submissão do outro. A História enterrou diversos sistemas sociais, todos eles construídos e arruinados na luta pela soberania, esse combustível fundamental da cronologia humana.

O sistema capitalista de organização social não é exceção, evidentemente, mas inaugura uma inesperada novidade histórica: ao invés do extrativismo improdutivo orquestrado pelo chicote, a economia de mercado converte a produção de utilidade para o outro, em mecanismo de acumulação para si, de sorte que o antagonismo fundamental pelo poder, a mais importante constante histórica, se realiza sobretudo na oferta de valor socialmente reconhecido. Pela primeira vez na história, trabalhar para outrem é o gatilho de eficiência para o enriquecimento egoísta.  

A natureza humana, sedenta que é de privilégio, deve ser conduzida, disciplinada e, mais do que isso, estimulada por instituições sociais virtuosas. Conquanto isso seja verdade, a deslumbrante e assustadora engrenagem de acumulação capitalista catapulta vertiginosamente as desigualdades e assimetrias sociais, a ponto de ameaçar o fundamento de virtude do sistema. Hoje, o pináculo social humano não está engajado na organização produtiva de bens e serviços, mas deslocando, realocando e especulando fortunas financeiras, verdadeiros PIBs tropicais a serviço de uma histeria imediatista. O capitalismo não tem mais uma elite, ele tem, isso sim, uma aristocracia de mercado, não uma metáfora retórica para inflamar indignações, mas “aristocracia” no sentido forte do termo: um grupo ínfimo de indivíduos inatingíveis e improdutivos que vive exclusivamente de renda e especulação, tal qual seus congêneres feudais, nobres, mandarins, sultanatos. Na curva de degradação do capitalismo, eu ganho dinheiro porque tenho dinheiro, sem qualquer suor de eficiência.     

É exatamente por isso que os valores ideológicos associados à esquerda precisam infiltrar e qualificar as instituições do capitalismo. Se é verdade que a aristocracia financeira empilha os índices indiscutíveis de deferência, prestígio e poder, é igualmente verdadeiro que nós, o restante da humanidade, conservamos a prerrogativa da quantidade, silenciosamente difusa nas indignações cotidianas: somos, em qualquer quadrante histórico, a maioria absoluta, detemos o império do número. Precisamos, pois, instrumentalizar esse capital essencial de pressão política para exigir (aliás, construir, protagonizar) instituições sociais bem configuradas, que produzam bem-estar social sem prejuízo da prosperidade econômica.

O mais fatal erro ideológico se chama ingenuidade: quem tem poder quer mais poder e detém os mecanismos para ampliá-lo, é irresistível, faz parte da nossa natureza. A elite não é “má”, no sentido moral e simplório do termo, ela é, isso sim, inescrupulosa, porque o poder é essencialmente inescrupuloso – nenhum poder admite limites para a própria realização, ele é obrigado a acatar limites, e só o faz a contragosto, dado certo arranjo complexo de forças. Se participássemos do salão aristocrático, reproduziríamos rigorosamente o mesmo discurso de merecimento, aquele em que natureza e privilégio se confundem em sinônimos de hipocrisia. O contraponto à escalada irracional de acumulação não deve partir de uma visão dicotômica e reducionista do “nós contra eles”, os bons contra os maus, os burgueses e os proletariados, dado que a organização social é infinitamente mais complexa, descontínua e conflituosa; deve, antes, lutar a batalha institucional, de sorte que o sistema recupere sua vocação de trabalho para o todo, e não para a fração improdutiva de arrendatários financeiros. A esquerda precisa resgatar o capitalismo de sua elite.

Quais são esses valores de resgate? Se o capital número é o mais importante contrapeso social às aspirações de hegemonia do poder, é preciso garantir o máximo de desenvolvimento, qualificação e oportunidade para o conjunto das pessoas, independentemente de fatores discricionários e irrelevantes como gênero, etnia, nacionalidade, ou orientação sexual. O discurso político progressista enaltece a injustiça moral das desigualdades sociais, e eles estão absolutamente corretos. Mas as desigualdades de oportunidades não são apenas injustas, elas são, fundamentalmente, idiotas. Quantos engenheiros, quantos matemáticos, quantos médicos, artistas, intelectuais, cientistas, a sociedade brasileira não desperdiça nas rachaduras do subdesenvolvimento, da intolerância, e do racismo?

A riqueza de um país é, pura e simplesmente, a riqueza de sua população. O Brasil será um país rico quando o Brasil profundo protagonizar as ambições nacionais, resolver as equações de desenvolvimento, e arquitetar as aspirações de grandeza. Igualdade real de oportunidades para negros, pardos, mulheres, LGBT´s, indígenas, pessoas com deficiência, é excelente para negros, mulheres, LGBT´s, etc, mas é ainda mais indispensável para o Brasil como um todo, para o sonho coletivo de país próspero. Nesse sentido, as políticas afirmativas direcionadas aos segmentos de vulnerabilidade não são concessões de filantropia que homenageiam o vitimismo, mas estratégias de Estado para o aumento da produtividade, a geração de riqueza, e o fomento de coesão social, as trilhas seguras que nos encaminham às margens do progresso.

Os valores progressistas são, além disso, os mais contundentes freios de prudência contra o suicídio climático. Enquanto o imediatismo inconsequente subsidiar as mais importantes escolhas políticas e econômicas, a humanidade será refém de sua própria alucinação material, como se a escassez absoluta, essa muralha definitiva do progresso, não estivesse aguardando nossa arrogância consumista na esquina da extinção. Falar em “humanidade”, no entanto, dilui a responsabilidade moral pelo aquecimento em uma igualdade francamente inexistente: o capitalismo é o regime da produção, do consumo e do descarte, e essa admirável máquina destrutiva trabalha em velocidades absolutamente distintas, a depender do país, região, classe de renda, etc. A desigualdade real de consumo (não só entre nações, mas entre unidades federativas, cidades, regiões, classes, indivíduos, etc.) deve distribuir proporcionalmente as obrigações de sustentabilidade, e se converter, assim, em mais um contrapeso institucional à irracionalidade acumuladora. A verdade é que somos completamente viciados em consumir, uma evidente patologia psicológica que, coletivamente compartilhada, dissimula normalidade. Essa naturalização do excesso, porém, distorce completamente o nosso julgamento sobre o que significa desenvolvimento e bem-estar. Quando destruímos hectares amazônicos para extrair minério de ferro, as métricas do PIB aplaudem crescimento: séculos de vegetação e milênios de geologia arrasados, e estamos “mais ricos” no comparado dos últimos doze meses. A cegueira extrativista, na sua devoção ao curtíssimo prazo, ignora completamente o desespero do futuro – estamos insofismavelmente mais pobres quando o PIB cresce às custas do aniquilamento ambiental.   

Em terceiro lugar, o fundamento da arquitetura política contemporânea, tanto no plano da representação democrática, quanto no da efetivação de pesos e contrapesos institucionais, foi pensado pelos humanistas pré-Facebook, pré-Google, pré-politicamente correto, pré-pós-verdade. Os conflitos redistributivos atuais – todo conflito é, por natureza, redistributivo, ainda que não necessariamente material – exige um arranjo institucional célere, capaz de produzir decisões que alcancem a diversidade extraordinária de expectativas e demandas de uma sociedade cada vez mais complexa. Se os grupos de vulnerabilidade não se veem representados pelas instâncias de decisão política, o laço de fidelidade democrático se fragiliza. É preciso reduzir, ao máximo, o entulho jurídico que enrijece as relações sociais reais, de modo a reconhecer a autonomia da diversidade em decidir, de modo livre, suas respectivas aspirações existenciais. Numa sociedade em que todos têm opinião e, mais do que isso, mecanismos tecnológicos para disseminação, discussão, e gritaria, as instituições precisam absorver, de modo qualificado e responsável, a arena política on-line, sem que para isso se ajoelhe aos populismos de ocasião. A voz do anonimato deve transbordar seus anseios de prosperidade e reconhecimento no canteiro semiárido da democracia, e convertê-la, assim, em século XXI.       

A História conduz uma caprichosa coreografia de imprevistos. Hoje, os valores progressistas de esquerda são, transparentemente, o repositório ideológico dos valores liberais, só que envernizados de juventude. Quer gostemos disso, quer não, é o discurso das esquerdas (as arejadas) que enaltece o indivíduo como a unidade moral de escolha: o Estado não tem o direito de apagar a fumaça do meu baseado; eu decido sobre o meu útero; meu afeto mora onde está o meu desejo; o livre deslocamento de fronteiras é uma prerrogativa humana essencial. Ao fim e ao cabo, as franjas de esquerda devem pressionar as instituições do capitalismo para que o capitalismo cumpra sua promessa original de virtude, qual seja: a igualdade fundamental de oportunidades entre os indivíduos. Enquanto a máquina irracional de desigualdade estiver destruindo o horizonte humano em benefício da aristocracia financeira improdutiva, a beira do abismo será a trilha de irresponsabilidade que conduzirá nossas decisões políticas. Todo sistema social, independentemente do seu conteúdo histórico particular, é sempre refém de suas elites, porque são as elites que se aproximam da perigosa fronteira do insaciável: a arbitrariedade financeira e especulativa é o grande Leviatã do nosso tempo, e conduz o sistema a um processo de flagrante degradação institucional, de sorte que os contrapesos progressistas são, nesta quadra histórica, os freios possíveis para resgatar a melhor promessa do capitalismo.   

Felipe Eduardo Lázaro Braga É graduado em Ciências Sociais, e Mestre em Sociologia. Escreve sobre arte contemporânea, e trabalha com pesquisa de mercado e opinião. 

 
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