Como não comunicar a reforma da Previdência

A comunicação do governo federal sobre a reforma da Previdência Social falhou miseravelmente.

Em maio de 2016, a CNI encomendou uma pesquisa ao Ibope, que revelou que 85% dos entrevistados discordavam de pagar mais impostos para manter as regras atuais de aposentadoria. Na mesma pesquisa, 65% concordavam com o estabelecimento de uma idade mínima para receber o benefício [1].  Já em maio deste ano, pesquisa do Datafolha revelou que 71% dos brasileiros eram contrários à mesma reforma. O que mudou tanto de um ano para o outro? Quatro pontos importantes ajudam a explicar por que a comunicação da reforma falhou.

Em primeiro lugar, ao contrário do que possa parecer, o resultado da pesquisa do ano passado sugere fortemente que, como é comum em se tratando de temas complexos, a maioria da população não tinha opinião formada sobre o assunto. E isso é compreensível: temas abstratos, que não fazem parte do dia a dia e cujos efeitos acontecem em um longo horizonte temporal, não integram o finito repertório de preocupações diárias que acompanha o cidadão comum. Para qualquer assunto complexo fora desse repertório, pode-se esperar, grosso modo, uma distribuição de opiniões em torno de uma curva normal, como ilustrado na figura abaixo: uma minoria bem informada a favor, uma minoria (provavelmente) beneficiada pelo sistema que é contra, e uma massa enorme de pessoas sem opinião formada.

Em segundo lugar, a pressão de quem é contrário a mudanças em um sistema social complexo é, via de regra, bem mais forte do que a de quem é favorável (por isso a seta vermelha maior na figura acima). Mudanças geram perdas. É um ensinamento básico da economia comportamental que a sensibilidade humana é mais forte em se tratando de possíveis perdas em relação ao status quo. Ganhar mil reais gera emoções menos intensas do que perder a mesma quantia. Mais ainda, as evidências sugerem que a ameaça de perdas é um excelente motor para propagar narrativas carregadas nas tintas em defesa do status quoUm erro frequente por parte de governos (talvez o mais comum) na comunicação desse tipo de mudança é ignorar o fato de que todo sistema vai reagir às tentativas de alteração. No caso da Previdência, assim que a proposta de reforma alcançou o Congresso Nacional e houve tempo para que o sistema fizesse sua esperada mágica, a figura acima se transformou em algo como essa a seguir, manifestada na pesquisa do Datafolha.

Para contribuir com a oposição às mudanças, aqueles que seriam (serão) prejudicados no curto prazo por uma eventual reforma têm um argumento relevante: por que apenas nós temos de pagar o pato? Um dos julgamentos automáticos que o ser humano faz o tempo todo é o de justiça (distributiva, no caso). Em um país em que o Legislativo e o Judiciário têm gastos enormes em proporção ao PIB e em que vigora a percepção de roubalheira no meio político, é compreensível a resistência de quem será atingido pela reforma. Como ouvi recentemente de um aposentado: se a crise fiscal é tão grave, por que não está todo o mundo cortando na carne?

O terceiro ponto que ajuda a explicar por que o governo federal falhou em sua comunicação está relacionado com o desenho das mensagens. Estudos mostram que o entendimento da mensagem e o consequente posicionamento da opinião dependem essencialmente do enquadramento (framing) adotado. A forma como um assunto é abordada muda radicalmente o apoio recebido. Nos EUA, o Frameworks Institute tem sido pioneiro na abordagem da comunicação de temas complexos e ideologicamente carregados. O que eles fazem? Desenham possíveis abordagens com base em valores humanos e as testam cientificamente. No Brasil, por outro lado, geralmente a comunicação é aquela baseada no que eu chamo de paradigma de jogar milho aos pombos: distribui-se a informação ao público e espera-se que ele “entenda” o ponto e mude seu comportamento ou visão sobre o assunto. O fato de a mensagem ser bonitinha (isto é, feita por agências de publicidade) e ser repetida à exaustão não muda nada. Tudo se passa como se o mais importante fosse apresentar informações e esclarecer as dúvidas da população, agindo como o sol que leva embora a neblina da manhã. Essa abordagem ignora as evidências de que o valor adequado, ativando as emoções adequadas, pode mudar as percepções das pessoas sobre temas complexos, facilitando as mudanças sociais.

Em quarto lugar, a abordagem da reforma da Previdência parece ter falhado em atender os requisitos que o pesquisador Edward Maibach, da George Mason University (EUA), tem mostrado como fundamentais na comunicação de cientistas sobre temas complexos. Esses requisitos são: as mensagens precisam ser simples – a ponto de conseguirem ser reproduzidas fielmente pelos membros dos públicos de interesse – e repetidas por uma variedade de fontes que as pessoas percebam como confiáveis. Da mesma forma, recomenda-se que a comunicação seja desenhada de baixo para cima, usando o ponto de vista dos públicos que se pretende atingir.

O Brasil caminha para um estrangulamento fiscal, especialmente se não conseguir enfrentar a questão previdenciária a tempo. O problema é, no fundo, um conflito entre gerações. É o mesmo problema, diga-se, por trás da (desesperadora) tíbia ação diante das mudanças climáticas. Deixamos de agir hoje para jogar a conta para as gerações futuras. O curioso é que pouca gente considera um cenário descrito pelo pesquisador Jørgen Randers, um dos grandes estudiosos dos efeitos das mudanças climáticas, em seu recente livro “2052”: e se a geração de jovens de hoje se recusar a assumir essa conta? (e aqui ele fala da previdência e não do clima!).

Infelizmente, é muito comum que sejam necessárias crises fortes para romper a inércia individual e a miopia dos sistemas políticos. O Brasil não vai aprovar uma reforma previdenciária efetiva (e muito menos outras importantes e também complexas, como a tributária) sem que a percepção de crise seja escandalosamente real e adequadamente comunicada.

Hamilton Carvalho – Estuda sistemas sociais complexos. É doutorando em Administração pela FEA-USP, mestre em Administração pela mesma instituição, conselheiro da International Social Marketing Association e membro da System Dynamics Society.

Notas:

[1] http://economia.ig.com.br/2016-05-18/85-sao-contra-pagar-mais-impostos-para-manter-regras-da-aposentadoria.html

[2] http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/05/1880026-71-dos-brasileiros-sao-contra-reforma-da-previdencia-mostra-datafolha.shtml

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