Sempre que o debate fiscal avança no Brasil (por ora na direção de consolidação fiscal mesmo durante um ciclo recessivo), alguns economistas apresentam soluções mágicas para tirar-nos do atoleiro. E uma delas é que o Brasil deveria adotar o conceito de superávit primário estrutural.
Primeiro, uma definição: tal conceito é baseado na ideia de que se uma economia está rodando acima de seu potencial (um ciclo expansivo), a poupança feita pelo governo com o resultado primário deve ser maior que sem esse ajuste. E a recíproca é verdadeira: em uma recessão, o governo poderia incorrer em superávits menores ou até em déficits para mitigar os efeitos recessivos.
Parece maravilhosa a ideia, mas ela esbarra em dois pontos fundamentais: (i) qual o cálculo que devemos fazer para ajustar o resultado primário que podemos ter, a depender do ciclo econômico e (ii) quem garante que em um ciclo expansivo o governo irá realmente economizar mais?
O primeiro problema preocupa pouco. Basta definirmos a regra de cálculo e segui-la. O segundo ponto é mais crítico e parece que os proponentes desse tipo de argumento se esquecem dos interesses envolvidos no governo, do incentivo a gastar mais durante um boom econômico, etc.
Pensando nisso, solucionamos o primeiro problema e calculamos um resultado primário estrutural a título de curiosidade, da seguinte forma: resultado primário (em % do PIB) + hiato do produto (em %). Uma simples fórmula somente para demonstrar como o Brasil se saiu. Calculamos o hiato do produto como o PIB Real menos o PIB Real expurgando os efeitos cíclicos (utilizamos o filtro Hodrick-Prescott, veja aqui a explicação).
Abaixo, o gráfico do resultado primário trimestral, plotando o déficit/superávit realizado versus o encontrado em nossa continha de padeir…economista:
[caption id="attachment_9365" align="aligncenter" width="1384"]Observamos que, de 1997 até 2010 o superávit primário obtido ficava em linha com o superávit primário estrutural. Ora o realizado ficava acima, ora abaixo, mas no geral, seguiu o que o ciclo econômico indicava como um bom balizador. Exceto durante a crise de 2008 (com seus efeitos em 2009), não houve grandes diferenças entre o observado e o estrutural.
Para ser mais preciso: a média do desvio entre o resultado primário observado e o estrutural até 2010 foi de 0,2% – isso significa que o resultado realizado ficou, em média, 0,2% acima do que um superávit fiscal estrutural indicaria. Já a partir de 2010, esse desvio ficou em -0,3% – ou seja, o resultado primário obtido ficou abaixo do resultado estrutural. Fenômeno nem um pouco transitório.
Se a diferença parece pequena, lembre-se que estamos trabalhando com dados trimestrais neste exercício e uma diferença de -0,3% ao longo de 6 anos (ou 24 trimestres) se torna muito relevante.
Mas como os dados trimestrais sofrem um pouco com a sazonalidade, vamos ao mesmo gráfico, porém com dados anuais para termos uma ideia mais nítida do que acontece com nossas contas públicas:
[caption id="attachment_9366" align="aligncenter" width="1383"]O que observamos é basicamente o mesmo padrão, mas de forma mais clara: até 2010 o resultado primário observado se situava ligeiramente acima do indicado pelo resultado estrutural, enquanto após 2010, praticamos um resultado primário significativamente menor que o possível, caso ajustado pelo ciclo econômico.
Voltemos à questão: durante o período de sobreaquecimento da economia brasileira (2010 em diante), a nossa lição de casa seria praticar superávits fiscais maiores, mas fizemos o contrário. E isso nos colocou na situação atual: uma crise fiscal evitada basicamente com uma medida drástica (a famigerada PEC 241/55), que tem a missão de atar as mãos do governo no gasto público.
Não se engane, leitor. As propostas de “resultado primário ajustado pelo ciclo” surgem justamente daqueles que fecharam os olhos para a gastança no período que o tal resultado ajustado indicava que era necessária maior poupança por parte do governo. Difícil de acreditar no malabarismo intelectual agora. Mais difícil ainda é acreditar que dar ao governo o poder de definir tanto a meta de superávit em proporção do PIB quanto o cálculo do PIB ajustado pelo ciclo utilizado (no caso de ajuste para se obter o resultado estrutural) iria resolver nossos problemas fiscais.