Desafios da esquerda no Brasil pós-Lula

Lula está morto. O atestado de óbito, assinado em Porto Alegre, data de 24 de janeiro de 2018, mas não houve nem haverá velório ou enterro. No melhor estilo “Um Morto Muito Louco”, seu cadáver insepulto desfilará lépido, frequentando a cena política e sendo tratado como se vivo estivesse. Assim como ocorreu com Quincas Berro D`água, seus colaboradores do vício carregarão seu corpo em sua orgia derradeira, no caso, uma simulação de candidatura à presidência. Seu nome aparecerá em pesquisas de intenção de votos e sua carcaça será vista em palanques, passeatas e caravanas. Nesse ponto, é provável que o prolixo defunto repita Mark Twain, alegando que os relatos sobre sua morte são desmedidamente exagerados, mas, fato é que não há exagero algum. Por mais que ele e seus pares neguem, a morte está consumada. Por sua relevância em vida, seu falecimento estremeceu o tabuleiro da política brasileira, especialmente a bombordo, como era de se esperar.

É inegável que Lula seja o grande caso de sucesso da esquerda nacional, tendo vencido duas eleições presidenciais e conseguido emplacar sua sucessora, diga-se de passagem, uma estreante nas urnas. Seu êxito deveu-se, por um lado, ao seu pragmatismo, que o permitiu absorver o receituário econômico dito neoliberal e lançar mão de métodos nada republicanos para garantir a governabilidade. Por outro lado, o seu carisma conquistou eleitores com diferentes prioridades no campo social, o que não é nada trivial. Isso porque o eleitorado brasileiro possui uma idiossincrasia inconveniente aos sinistros: as camadas mais pobres, profundamente sensíveis às políticas de transferência de renda e redução da desigualdade, são extremamente conservadoras e, via de regra, rejeitam a agenda de proteções às minorias e afins.

Um exemplo dessa característica revela-se em uma pesquisa publicada pelo Datafolha no início do ano, segundo a qual o apoio à pena de morte é de 58% entre os entrevistados com renda mensal de até cinco salários mínimos, contra 42% entre aqueles que ganham mais de dez salários mínimos. Outra pesquisa realizada pelo mesmo instituto, em novembro de 2017, mostrou que apenas 34% dos brasileiros com nível superior apoiam a punição a mulheres que fizerem abortos, enquanto 71% dos que só tem o ensino fundamental pensam dessa forma. Em suma, pacote social “puro sangue” da esquerda, combinando distribuição de renda com políticas em prol das minorias, tem pouca aceitação do eleitorado.

O ex-metalúrgico venceu essas e outras barreiras e, ao ser eleito presidente, assumiu uma posição solar no campo da esquerda, com seu brilho ofuscando a luz de todos aqueles que o orbitavam. Sua aura espraiou-se para além das fronteiras do Brasil, convertendo-o em uma personalidade política global, uma espécie de embaixador das nações em desenvolvimento, numa época em que o Brasil virou moda. Agora que “o cara” (na opinião de Barack Obama) implodiu como uma pequena supernova, seu sucesso e o consequente protagonismo revelaram-se um problema. Diante da inexistência de outros nomes com musculatura suficiente para assumirem a sua posição, a fragmentação parece inevitável. Com um eleitorado disperso, as chances de uma nova presidência esquerdista são bem remotas.

Ainda não está claro como a esquerda juntará os cacos, mas é possível delinear algumas condições de contorno. O fracasso retumbante das concessões heterodoxas na política econômica de Dilma, materializado em uma das mais profundas e duradouras crises da nossa história, vacinou o eleitorado, se não com uma dose completa, pelo menos com uma dose fracionada, capaz de garantir a imunização por alguns anos. Nesse período, qualquer candidato de esquerda que tenha a pretensão de ganhar uma eleição majoritária terá que se curvar à ortodoxia, como fez Lula. Enquanto uma das facetas do seu pragmatismo tornou-se inexorável, a outra parece inviável. O método de governar através de compra de apoio parlamentar com dinheiro, utilizado proeminente, mas não exclusivamente, pelo petista, tornou-se arriscado demais após a Operação Lava Jato. Por bem ou por mal, um eventual governo de esquerda que prospere no atual cenário terá que se enquadrar (ou se espremer) nesse espaço.

Dito isso, restam pontos de interrogação relevantes no que tange à agenda social. Sem o carisma de Lula, é impossível agradar a todo o eleitorado potencial da esquerda simultaneamente. A estratégia mais promissora é a colocação das questões de distribuição de renda sob o holofote, deixando temas menos consensuais na penumbra, razoavelmente escondidas da parcela menos sofisticada do eleitorado. Em certa medida, foi isso que Lula fez, mas nada garante que funcionará com os outros. Primeiramente, porque os formadores de opinião engajados nos temas das minorias não serão com eles tão condescendentes quanto foram com o ex-presidente. Em segundo lugar, porque há um novo elemento no jogo político, com um discurso abertamente conservador, altamente aderente aos anseios das camadas mais pobres do eleitorado. Deixar essas pautas em segundo plano pode não ser uma opção. Fica claro que não será nada fácil repetir os feitos do Filho do Brasil.

Diante desse panorama, não é descabido indagar-se sobre a possibilidade de que Lula tenha sido um evento irrepetível, ou seja, que, dadas as preferencias do eleitorado, o papel que cabe à esquerda no Brasil seja, não o protagonismo, mas sim a oposição, servindo de contraponto e materializando partes de sua agenda dentro processo republicano de barganha. Caso a resposta a essa pergunta seja afirmativa, a morte de Lula marcaria o fim da era da esquerda no poder por aqui. Ainda é cedo, porém, para qualquer conclusão a esse respeito.

É preciso deixar o defunto esfriar.

 João Marco Cunha Mestre em economia pela FGV-Rio e Doutor em Engenharia Elétrica pela PUC-Rio.
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