A Importância do Federalismo

A Constituição Brasileira de 1988, em seu Artigo 60, coloca como cláusula pétrea que a forma do Estado no Brasil deve ser uma forma federativa. Com isso a Constituição manteve o modelo político herdado da Primeira República, onde adotamos a ideia de transformar o Estado brasileiro de um estado unitário como era no Império para um estado federativo, espelhando o exemplo dos Estados Unidos. A Federação é entendida, seguindo seu modelo ideal, como um conjunto de entidades autônomas compostas por União, Estados e Municípios. Essas entidades estão teoricamente organizadas de forma horizontal, com nenhuma sendo subordinada a nenhuma das outras e com somente a Constituição acima de todos.

A maioria das pessoas tende a subestimar a importância do federalismo. Elas tendem a ver no federalismo apenas uma forma interessante de garantir a autonomia de regiões heterogêneas, com culturas diversas, e uma forma a la Montesquieu de divisão dos poderes, impedindo a União de exercer um poder exagerado sobre todo o território. Contudo o federalismo é bem mais do que isso.

Para entender o verdadeiro valor do federalismo primeiramente é necessário abandonarmos uma certa visão romântica da política que carregamos conosco. A maioria das pessoas tendem a ver o Estado como uma entidade transcendental, quase da mesma forma como os antigos viam Deus. O Estado, por meio de seus mandamentos sagrados (leis), imporia um sistema inerentemente justo e eficiente;  pois ele é onipotente (consegue garantir eficácia perfeita das leis), onisciente ( ele tem conhecimento perfeito sobre tudo que ocorre no país e sobre as relações de causa e efeito dos problemas que se propõe a solucionar) e ele é onibenevolente ( pois ele age segundo o “interesse público”). Amém!

Contudo, como todo brasileiro deve estar percebendo agora, essa não é uma análise muito correta sobre a natureza do Estado. Ele parece mais um conjunto de agente auto-interessados que buscam maximizar seu tempo no poder para avançar pautas obscuras e contra o interesse público enquanto roubam dos “cofres públicos” (cheios do dinheiro de nossos impostos) para fins pessoais. Não existe Robin Hoods no poder, muito menos representações terrenas da pureza cristã. Já que esse modelo idealizado do Estado é falho, é bom olharmos com outras lentes para ele.

Uma boa maneira de ver o Estado é como um negócio qualquer. O Estado, da mesma forma que empresas privadas, está no negócio de nos ofertar coisas: bens e serviços públicos. Ademais, ele nos oferta governança. Ele, teoricamente, provêm a sociedade com uma série de bens essenciais para o bom funcionamento da mesma; como proteção dos direitos de propriedade, resolução de conflitos entre partes, ruas, ordem policial, etc. Todavia, existe uma diferença notável entre a empresa estatal e a empresa privada: o Estado é um monopólio legal e coercitivo. Quando uma empresa privada lhe oferta um produto “ruim”, você pode simplesmente deixar de consumir esse produto e passar a consumir o que é ofertado em melhor qualidade por um concorrente. Com o Estado isso não ocorre. Todos os membros de uma unidade política estão sujeitos a consumir apenas os bens ofertados pelo governo da mesma. Estamos todos reféns da qualidade ou não do governo.

Por essa razão é bom que a tomada de decisão por parte dos agentes políticos em controle do Estado sejam boas. Agora imagine um Estado centralizado. Todas as decisões são tomadas por uma única pessoa ou por um conjunto bastante restrito de indivíduos na capital administrativa. Imagine que esse Estado é o Brasil. Os tomadores de decisão na capital regulam tudo, da moeda nacional até o comércio de palitos de dente. Contudo, como bem sabemos, o território do país está longe de ser algo homogêneo. O Brasil possui uma extrema diversidade de ambientes, comunidades, culturas, empresas, pessoas, etc. Como o administrador central poderá, por exemplo, saber o que um indivíduo no interior do Acre deseja ao mesmo tempo que administra os desejos de todos os habitantes de São Paulo?  E se o problema inicial mudar inesperadamente, exigindo uma nova compreensão do mesmo e a tomada de uma decisão completamente diferente? Como ele poderá conhecer o problema dessas pessoas e administrar os desejos muitas vezes conflitantes sobre o uso dos recursos dessas diferentes pessoas e grupos?  A resposta é bastante simples: ele não pode. Somente um supercomputador de ficção científica poderia lidar com essa quantidade de informação e mesmo ele não poderia ter conhecimento acerca das preferências inerentemente subjetivas e insaciáveis dos indivíduos .Como todo administrador de empresas sabe, a centralização da organização impõe limites ao poder de decisão do gestor. Ele só consegue administrar intervalos de controle bastante curtos e estruturas simples. Um país como o Brasil está longe de ter um intervalo de controle curto e de ser uma estrutura administrativa simples.

Os erros de tomada de decisão poderão se acumular como resultado e produzir consequências socialmente indesejadas. Construção de estádios de futebol onde as pessoas do local não gostam de futebol, estradas que vão para lugar nenhum, regulações que não fazem sentido, tributos elevados cujas receitas “somem” e divisão de recursos indevida entre as várias partes que compõem o Estado. Uma sociedade poderia lidar com alguns desses problemas por algum tempo, mas existe um ponto em que eles se tornam insuportáveis. Como coloca Albert Hirschman:

“Não importa quão bem estabelecida as instituições básicas de uma sociedade sejam, alguns agentes, ao tentarem assumir o comportamento que deles se espera, estão fadados ao fracasso, ainda que por razões acidentais de quaisquer tipo. Cada sociedade aprende a viver com certa parcela desse funcionamento deficiente ou desse mau comportamento; mas para que tal comportamento inadequado não se alimente e não leve à deterioração geral, é preciso que a sociedade seja capaz de forçar esses agentes ineptos tantos quantos for possível a assumirem as atitudes e métodos exigidos para seu bom funcionamento (Pág 13)”.

Nossos antepassados lidavam exatamente com esse tipo de problema. Nos Reinos Absolutistas da Era Moderna, como França, Espanha e Portugal, as pessoas estavam reféns do chamado problema de sucessão. Mesmo que o atual rei fosse um soberano virtuoso e governasse  bem seu reino, existia o risco de seu herdeiro ser inapto ou nascer louco. Como todo poder estava centralizado no rei e seus ministros na capital administrativa, todos os seus súditos nas diferentes regiões do reino corriam o risco de serem vítimas de suas decisões ruins ou ataques de loucura. Foi justamente por terem vivido sob o reinado de soberanos absolutistas ruins que pensadores como Locke, Montesquieu e os Pais Fundadores dos Estados Unidos colocaram como ponto principal de seu projeto político a limitação do poder do governante e a fragmentação do poder central em várias esferas concorrentes entre si.

Da mesma forma que em empresas privadas, uma boa solução para os problemas da centralização do Estado  é delegar a autoridade (e responsabilidade) da tomada de decisão aos que estão mais próximos dos problemas. A solução é a descentralização. Da mesma forma que é bom para um proprietário de uma empresa em crescimento que ela descentralize  a tomada de decisão entre gerentes de unidades autônomas, é interessante para os proprietários do Estado ( teoricamente nós, os cidadãos) que as decisões sejam tomadas a nível local. Governadores e, sobretudo, prefeitos têm um melhor conhecimento acerca das necessidades e demandas das pessoas que moram em uma determinada localidade, como as cidades de São Paulo e Salvador, do que os burocratas distantes de Brasília. Eles têm que lidar com um volume menor de informações do que um planejador central que tem que fazer o planejamento de um país inteiro e por isso podem tomar melhores decisões sobre o uso dos recursos públicos escassos. É interessante principalmente que essas unidades descentralizadas não sejam coordenadas por um deus ex machina na capital administrativa da União, mas que concorram entre si em várias áreas; tributária, regulação, etc. Essa é a essência do federalismo.

Essa concorrência entre unidades descentralizadas é importante por duas razões. Primeiramente ela é uma garantia essencial para a integridade do indivíduo contra opressões de forças coercitivas abusivas. Ela permite que uma pessoa escolha entre um “bom” e um “mal” provedor de governança da mesma forma que ela escolhe entre uma “boa” e uma “ruim” barra de chocolate. Vamos ilustrar isso com um exemplo meramente hipotético.

Suponha que o estado do Rio de Janeiro está passando por uma grave crise de saúde, com hospitais sucateados e pessoas morrendo aos montes de uma nova doença, e que o governador é um psicopata que nem sequer reconhece a existência da doença. Esse governador gasta os recursos do estado de maneira péssima, seus secretários parecem sequer fazer ideia do que estão fazendo e o governo não consegue sequer prover bens públicos básicos, como segurança e estabilidade institucional. Seria um horror se você, como cidadão do estado, tivesse que viver nesse governo, certo? Por sorte, você tem a possibilidade de pegar suas coisas e se mudar para um estado vizinho como São Paulo, onde os gestores públicos reconhecem o problema da doença e os recursos públicos são administrados corretamente. Assim, por causa da estrutura federativa e descentralizada de nosso país, você tem a liberdade de escolha para não ser vítima do governo ruim do Rio de Janeiro. Você pode escolher o tipo de governança que no qual deseja viver.

Muito mais do que isso, uma estrutura política descentralizada permite que você não seja vítima de uma opressão tão ruim quanto um governo inapto: a tirania das maiorias. Certamente existe aqueles que irão apoiar as decisões do governador psicopata e que tentarão impor o julgamento delas sobre você. Em um cenário que você não tivesse como sair do Rio de Janeiro, você seria inevitavelmente perseguido por essa maioria caso discordasse do governador.

Um exemplo histórico do papel da descentralização de garantir a liberdade individual é o caso dos judeus ibéricos. Entre 1478 e 1834 os judeus foram sistematicamente perseguidos pela Inquisição na Espanha e em Portugal. Muitos foram mortos por professar sua fé e vários foram forçados a se converter ao cristianismo. Para sorte deles, muitos também puderam sair da Península Ibérica e reconstruir suas vidas em países mais liberais e tolerantes, como a República dos Países Baixos (Holanda). A descentralização internacional e concorrência entre os países europeus, a diversidade institucional europeia, salvou os judeus de um genocídio ainda maior.

Em países onde os indivíduos não têm a possibilidade de escolher entre diferentes formas de governança, a única possibilidade de mudança é influenciar o planejador central. Nesses países os indivíduos têm que gastar uma grande parte de seu tempo com política, tentando fazer sua voz e demandas serem ouvidas por meio de movimentos sociais. A política toma conta da vida individual e os conflitos ideológicos entre indivíduos se tornam mais acentuados, com cada um tentando impor sua vontade por meio do planejador central.

A segunda razão é que a concorrência é excelente para melhorar a qualidade dos bens ofertados. Da mesma forma como empresas privadas só tem incentivo para inovar e melhorar seus processos se estiverem enfrentando a concorrência de outras empresas por consumidores, os agentes políticos só têm incentivos para melhorar a capacidade estatal (state capacity) de ofertar bens de qualidade se estiverem enfrentando concorrência de outras unidades políticas. Um governador que coloque um monte de regulações ruins e tributos pesados ou não provenha bons bens públicos verá uma boa quantidade de pessoas e empresas deixando sua jurisdição e indo para alguma vizinha que garanta melhor governança. Logo, para não perder sua preciosa fonte de tributação e eleitores, esse governador terá o incentivo a fazer seu dever de casa. Ele terá que melhorar a qualidade dos bens ofertados ou os processos de administração se quiser trazer de volta as pessoas e atrair mais de outras unidades concorrentes.

O Brasil ainda tem muito o que melhorar em seu modelo federalista. A concorrência entre os estados, sobretudo na área tributária, é imperfeita e causa graves distorções, sobretudo por causa das garantias de ajuda financeira da União. Os governadores, sabendo que podem ser salvos financeiramente pelo Tesouro nacional, praticam uma guerra fiscal que dilapida as finanças estaduais e gera enormes distorções na alocação de recursos. A competição entre as unidades só consegue realizar bons resultados em nível federal quando você não tem recursos compartilhados via União em caso de colapso fiscal. Sem isso, a irresponsabilidade é tentadora.

Além disso a União ainda concentra boa parte dos recursos, enquanto que as atribuições de prover a maioria dos bens públicos cabe aos estados e sobretudo aos municípios.

É de vital importância que a pauta da reforma federativa seja de interesse do público. Somente com um verdadeiro sistema federativo é que poderemos ter uma governança de melhor qualidade. É necessário que exista mais Brasil e menos Brasília.


Referências:

BUCHANAN, James M. Federalism as an ideal political order and an objective for constitutional reform. Publius: The Journal of Federalism, v. 25, n. 2, p. 19-28, 1995;

– HAYEK, Friedrich August. The use of knowledge in society. The American Economic Review, v. 35, n. 4, p. 519-530, 1945;

– HIRSCHMAN, Albert O. Saída, Voz e Lealdade: reações ao declínio de firmas, organizações e estados. Editora Perspectiva, 1973;

– JOHNSON, Noel D.; KOYAMA, Mark. States and Economic Growth: capacity and constraints. Explorations in Economic History, v. 64, p. 1-20, 2017;

– QIAN, Yingyi; WEINGAST, Barry R. Federalism as a Commitment to Reserving Market Incentives. Journal of Economic Perspectives, v. 11, n. 4, p. 83-92, 1997.

 

 

 

  

Sávio Coelho

Analista Financeiro e de Dados. Tem interesse nas áreas de teoria da firma, política fiscal e finanças quantitativas.
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